O SIGNIFICADO DAS CRENÇAS RELIGIOSAS - CHARLES TALIAFERRO (TRADUÇÃO)
Antes do século XX, uma quantidade substancial de reflexão filosófica sobre questões de significado religioso (mas não todas) vinha sendo feita com base no realismo, isto é, sempre se tinha afirmado que as crenças religiosas seriam ou verdadeiras ou falsas. Xenófanes e outros pensadores pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, os Epicuristas, os Estoicos, Fílon de Alexandria e Plotino diferiam em suas crenças (ou especulações) sobre o divino, e eles e seus contemporâneos diferiam sobre o ceticismo, mas todos sustentavam (por exemplo) a existência ou não de uma realidade divina. Os filósofos judeus, cristãos e islâmicos, medievais e modernos, diferiam em termos de avaliação da fé e da razão. Eles também enfrentaram importantes questões filosóficas sobre a autoridade das alegações de revelação da Bíblia Hebraica, da Bíblia Cristã e do Alcorão. Na filosofia da religião asiática, algumas religiões não incluem alegações de revelação, como o budismo e o confucionismo, mas a tradição hindu confrontou os filósofos com a avaliação dos Vedas e dos Upanixades. Mas, na maioria das vezes, os filósofos do Ocidente e do Oriente pensavam que haviam verdades sobre a existência de Deus, da alma, da vida após a morte e sobre o que é sagrado (quer tais verdades fossem ou não conhecidas ou entendidas por qualquer ser humano). O realismo de algum tipo é tão difundido que o grande historiador da filosofia Richard Popkin (1923–2005) certa vez definiu a filosofia como “a tentativa de dar conta do que é verdadeiro e do que é importante” (Popkin 1999: 1). Filósofos importantes no Ocidente, como Immanuel Kant (1724–1804) e Friedrich Nietzsche (1844–1900), entre outros, desafiaram as visões realistas clássicas da verdade e da metafísica (ontologia ou ciência do ser), mas o século XX viu especialmente dois movimentos poderosos que desafiaram o realismo: o positivismo lógico e a filosofia da religião inspirada em Wittgenstein.
Antes de abordar esses dois movimentos, tomemos nota de algumas das nuances da reflexão filosófica sobre o tratamento do realismo em relação à linguagem religiosa. Muitos filósofos teístas (e seus críticos) afirmam que a linguagem sobre Deus pode ser usada de maneira unívoca, analógica ou equivoca. Um termo é usado univocamente sobre Deus e os seres humanos quando tem o mesmo significado. Pode-se argumentar que o termo "conhecer" é usado univocamente por Deus nas afirmações "Deus conhece você" e "Você conhece Londres", mesmo que o modo como Deus o conheça e o modo como você conheça Londres difiram radicalmente. Em termos da diferença posterior, os filósofos às vezes distinguem entre o que é atribuído a alguma coisa e o modo em que algum estado (como o conhecimento) é realizado. Os termos são usados analogicamente quando há alguma semelhança entre o que está sendo atribuído, por exemplo, quando se diz que “duas pessoas humanas se amam” e que “Deus ama o mundo”, o termo “amor” pode ser usado analogicamente quando houver alguma semelhança entre esses dois amores. Os termos são usados de maneira equívoca quando o significado é diferente, como na afirmação "Adão conhecia Eva" (que na Bíblia Almeida significava que Adão e Eva tiveram relações sexuais) e "Deus conhece o mundo" (embora deuses homéricos tivessem relações sexuais com humanos, isso não fazia parte das cosmovisões teístas). O labor teológico que enfatiza nossa capacidade de formar um conceito positivo do divino tem sido chamado de via positiva ou teologia catafática. Por outro lado, aqueles que enfatizam a incognoscibilidade de Deus abraçam o que é chamado de via negativa ou teologia apofática. Maimônides (1135–1204) foi um grande defensor da via negativa, favorecendo a visão de que conhecemos Deus principalmente por meio do que Deus não é (Deus não é material, nem mau, nem ignorante e assim por diante).
Enquanto alguns filósofos da religião na tradição continental se alinharam com a teologia apofática como Levinas (que não era teísta) e Jean-Luc Marion (1946–), uma quantidade substancial de pensadores (mas não todos) da filosofia da religião de orientação analítica tendeu a adotar a via positiva. Um dos desafios da teologia apofática é que ela parece afastar a filosofia de Deus das práticas religiosas, como a oração, a adoração, a confiança no poder e bondade de Deus, as peregrinações e as éticas religiosas. De acordo com Karen Armstrong, alguns dos maiores teólogos das religiões abraâmicas sustentavam que Deus:
...não era bom, divino, poderoso ou inteligente, em nenhum sentido que pudéssemos entender. Nós nem poderíamos dizer que Deus "existe", porque nosso conceito de existência é muito limitado. Alguns pensadores preferiram dizer que Deus era o "Nada" porque Deus não era outro ser ... Para esses teólogos, algumas de nossas ideias modernas sobre Deus pareceriam idólatras. (Armstrong 2009: x)
Um desafio a essa posição que pode ser constatado de imediato é que é difícil acreditar que os praticantes religiosos possam orar, adorar ou confiar em um ser totalmente inescrutável ou em um ser que não podemos entender de forma alguma. Para um filósofo realista, via filosofia positiva de Deus, que busca apreciar a força da teologia apofática, confira: “Competing conceptions of God: the personal God versus the God beyond being” (2015).
Passemos agora a dois movimentos filosóficos importantes que desafiaram uma filosofia realista de Deus.
I. POSITIVISMO
"Positivismo" é um termo introduzido por Auguste Comte (1798-1857), um filósofo francês que defendeu as ciências naturais e sociais contra a teologia e a prática filosófica da metafísica. O termo “positivismo” foi usado mais tarde (às vezes ampliado para Positivismo Lógico por A. J. Ayer) por um grupo de filósofos que se reuniam na Áustria, chamado Círculo de Viena, de 1922 a 1938. Esse grupo, que incluía Moritz Schlick e Max Planck, promoveu uma explicação empírica do significado, de acordo com a qual, para que uma proposição seja significativa, ela precisa ser uma declaração conceitual ou formal em matemática ou a respeito de definições analíticas (por exemplo: "triângulos têm três ângulos") ou a respeito de assuntos que possam ser empiricamente verificados ou falsificados. Afirmações ostensivamente factuais que não fazem diferença em termos de nossa experiência empírica real (ou possível) não têm sentido. Um filósofo britânico, que visitou o Círculo de Viena, A. J. Ayer popularizou esse critério de significado em seu livro de 1936, Linguagem, verdade e lógica. Nele, Ayer argumentou que as reivindicações religiosas e sua negação não tinham conteúdo cognitivo. Pelo seu ponto de vista, o teísmo, e também o ateísmo e o agnosticismo, eram bobagens, porque tratavam da realidade (ou irrealidade ou incognoscibilidade) daquilo que não fazia diferença para a nossa experiência empírica. Como alguém empiricamente pode confirmar ou desconfirmar que existe um Deus invisível e incorpóreo ou que Krishna é um avatar de Vishnu? Famosamente, Antony Flew empregou essa estratégia ao comparar o Deus do teísmo com a crença de que existe um jardineiro invisível e indetectável que não podia ser ouvido, cheirado ou descoberto empiricamente (Flew, 1955). Além de rejeitar as crenças religiosas tradicionais como sem sentido, Ayer e outros positivistas lógicos rejeitaram a importância das declarações morais. Segundo eles, declarações morais ou éticas eram expressões dos sentimentos das pessoas, não dizendo respeito a valores que teriam uma realidade independente dos sentimentos das pessoas.
A crítica do positivismo lógico à religião não está morta. Isso pode ser visto em ação em God in the Age of Science?: A Critique of Religious Reason de Herman Philipse (2012). Ainda assim, o critério de significado promovido pelo positivismo lógico enfrentou uma série de objeções (para detalhes, confira: Copleston 1960 e Taliaferro 2005).
Consideremos cinco objeções que foram fundamentais para a retirada do positivismo lógico de sua posição de dominância:
(i) Alguns pensadores argumentaram que o positivismo lógico se autorrefuta: A afirmação positivista de seu padrão de significado (proposições são significativas se, e somente se, são sobre as relações de ideias ou sobre assuntos sujeitos a verificação ou falsificação empírica) é, ela mesma, sobre as relações de ideias ou sobre assuntos que são sujeitos a verificação empírica ou falsificação? Indiscutivelmente não. Na melhor das hipóteses, o critério positivista do significado é uma recomendação sobre o que considerar significativo.
(ii) Alguns filósofos argumentaram que existem declarações significativas sobre o mundo que não estão sujeitas a confirmação ou desconfirmação empírica direta ou indireta: possíveis exemplos incluiriam declarações sobre a origem do cosmos ou, mais perto de nós, os estados mentais de outras pessoas ou de animais não humanos (sobre essa discussão, confira: Van Cleve 1999 e Taliaferro 1994).
(iii) Limitar a experiência humana àquilo que é estritamente entendido como empírico parece para muitos filósofos arbitrário ou caprichoso: C. D. Broad e outros defendiam um entendimento mais amplo da experiência para permitir o significado da experiência moral: sem dúvida, pode-se experimentar a injustiça de um ato, por exemplo, quando uma pessoa inocente se sente violada.
(iv) A rejeição de Ayer à importância da ética parece contrariar sua epistemologia ou descrição normativa de crenças, pois ele interpretou o conhecimento empírico em termos de ter direito a determinadas crenças: Se é significativo referir-se ao direito a crenças, por que não poderia fazer sentido referir-se a direitos morais, como, por exemplo, o direito de não ser torturado? E se estamos considerando um conceito mais amplo do que pode ser experimentado, na tradição da fenomenologia (que envolve a análise daquilo que aparece), por que excluir, por uma questão de princípio, a experiência do divino ou do sagrado?
(v) O filósofo seminal da ciência Carl Hempel (1905-1997) sustentou que o projeto do positivismo lógico era muito limitado (Hempel, 1950): Esta provavelmente é a objeção mais importante na história das ideias. O projeto do positivismo lógico seria insensível à tarefa mais ampla da investigação científica, que é conduzida adequadamente, não na escala tática de examinar reivindicações particulares sobre a experiência empírica, mas em termos de uma teoria ou visão coerente e global do mundo. De acordo com Hempel, devemos nos preocupar com a investigação empírica, mas vendo-a como definida por uma compreensão teórica geral da realidade e das leis da natureza. Essa não foi, por si mesma, uma posição que favoreceu o significado da crença religiosa, mas as críticas de Hempel ao positivismo removeram a barreira para os relatos metafísicos gerais da realidade, sejam esses relatos teístas, panteístas (grosso modo, Deus é tudo), naturalistas e assim por diante. Além disso, a crítica positivista do que eles chamavam de metafísica foi atacada como tão confusa quanto a metafísica que estava implícita em suas alegações sobre a experiência empírica; confira o clássico apropriadamente intitulado The Metaphysics of Logical Positivism (1954), de Gustav Bergmann (1906–1987).
Consideremos agora Wittgenstein (1889–1951) e a filosofia da religião inspirada em sua obra.
II. A FILOSOFIA DA RELIGIÃO INSPIRADA EM WITTGENSTEIN
Os primeiros trabalhos de Wittgenstein foram interpretados por alguns membros do Círculo de Viena como favoráveis ao seu empirismo, mas eles ficaram surpresos quando ele visitou o Círculo e, em vez de discutir seu Tratado lógico-filosófico, ele leu para eles a poesia de Rabindranath Tagore (1861–1941), um místico de Bengala (confira: Taliaferro 2005b: capítulo oito). De qualquer modo, o trabalho posterior de Wittgenstein, que não foi favorável ao empirismo do Círculo de Viena, foi especialmente influente na filosofia e na teologia pós-Segunda Guerra Mundial e será o foco desta seção.
Nas Investigações Filosóficas (publicada postumamente em 1953) e em muitas outras obras (incluindo a publicação de anotações feitas por seus alunos em suas palestras), Wittgenstein se opôs ao que chamou de teoria da imagem do significado. De acordo com essa teoria, as afirmações são verdadeiras ou falsas, dependendo de se a realidade corresponde ou não à imagem expressa pelas afirmações. Wittgenstein passou a ver essa visão do significado como profundamente problemática. O significado da linguagem deve, antes, ser encontrado não na fidelidade referencial, mas em seu uso no que Wittgenstein chamou de formas de vida. Como esta posição foi aplicada a assuntos religiosos, D.Z. Phillips (1966, 1976), B.R. Tilghman (1994) e, mais recentemente, Howard Wettstein (2012), procuraram substituir o debate e os argumentos metafísicos tradicionais sobre o teísmo e suas alternativas e focar na maneira como a linguagem sobre Deus, alma, oração, ressurreição, vida após a morte, e assim por diante, funciona na vida de praticantes religiosos. Por exemplo, Phillips sustentou que a prática da oração não é melhor compreendida como seres humanos buscando influenciar uma pessoa toda poderosa e invisível, mas sim como pessoas buscando obter solidariedade com outras pessoas diante da fragilidade da vida. Assim, Phillips se vê seguindo o pensamento de Wittgenstein, focando, não em qual imagem da realidade parece mais fiel, mas nas maneiras não-teóricas pelas quais a religião é praticada.
Perguntar se Deus existe não é fazer uma pergunta teórica. Se é para fazermos uma pergunta com sentido, então façamos perguntas sobre louvar e orar e busquemos saber se há algo nisso tudo. É por isso que a filosofia não pode responder à pergunta "Deus existe?" com uma resposta afirmativa ou negativa ... A declaração "Existe um Deus", embora pareça estar no modo indicativo, é uma expressão de fé. (Phillips 1976: 181)
Pelo menos duas razões apoiam essa filosofia de religião inspirada por Wittgenstein: (i) ao que parecia, essa metodologia era mais fiel à prática da filosofia da religião sendo verdadeiramente sobre a prática real das próprias pessoas religiosas; (ii) embora tenha havido um reavivamento de argumentos filosóficos a favor e contra o teísmo e conceitos alternativos de Deus, um número significativo de filósofos a partir de meados do século XX concluiu que todos os argumentos tradicionais e contra-argumentos sobre as reivindicações metafísicas da religião são inconclusivos. Se esse for o caso, a nova filosofia da religião inspirada em Wittgenstein teve a vantagem de mudar de terreno para o que poderia ser uma área mais promissora em termos de chegar a um consenso.
Embora essa abordagem não realista da religião tenha seus defensores hoje, especialmente no trabalho de Howard Wettstein, muitos filósofos sustentaram que a vida religiosa tradicional e contemporânea se baseia em fazer reivindicações sobre em que realmente consiste tal questão em um contexto realista. É difícil imaginar por que as pessoas orariam a Deus se, literalmente, pensassem que não há Deus (de qualquer tipo).
Curiosamente, talvez herdando a ênfase de Wittgenstein na prática, alguns filósofos que trabalham com religião hoje colocam maior ênfase no significado da religião na vida, ao invés de ver a crença religiosa como primariamente uma questão de avaliação de uma hipótese (ver Cottingham 2014).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Armstrong, Karen, 2009, The Case for God, New York: Anchor Books.
Bergmann, Gustav, 1954 [1967], The Metaphysics of Logical Positivism, Madison, WI: University of Wisconsin Press. Second edition, 1967
Copleston, Frederick C., 1960, Contemporary Philosophy: Studies of Logical Positivism and Existentialism, London: Burns & Oates.
Cottingham, John, 2014, Philosophy of Religion: Towards a More Humane Approach, New York: Cambridge University Press. doi:10.1017/CBO9781139094627
Flew, Anthony G., 1955, “Theology and Falsification”, in Flew & MacIntyre 1955: 96–130; originally published 1950 in the first volume of a short lived student journal, University, at Oxford University; reprinted in Mitchell 1971: 1–2.
Hempel, Carl G., 1950 [1959], “Problems and Changes in the Empiricist Criterion of Meaning”, Revue Internationale de Philosophie, 4(11): 41–63; reprinted as “The Empiricist Criterion of Meaning” in Logical Positivism, A.J. Ayer (ed.), Glencoe, IL: Free Press, 1959: 108–132.
Philipse, Herman, 2012, God in the Age of Science? A Critique of Religious Reason, Oxford: Oxford University Press. doi:10.1093/acprof:oso/9780199697533.001.0001
Phillips, D.Z., 1966, the Concept of Prayer, New York: Schocken Book.
Phillips, D.Z., 1976, Religion Without Explanation, Oxford: Blackwell.
Popkin, Richard H., 1999, The Pimlico History of Philosophy, London: Pimlico.
Taliaferro, Charles, 1994, Consciousness and the Mind of God, Cambridge: Cambridge University Press. doi:10.1017/CBO9780511520693
Taliaferro, Charles, 2005. Evidence and Faith: Philosophy of Religion Since the Seventeenth Century, Cambridge: Cambridge University Press. doi:10.1017/CBO9780511610370
Tilghman, Benjamin R., 1994, An Introduction to the Philosophy of Religion, Oxford: Blackwell.
Van Cleve, James, 1999, Problems from Kant, Oxford: Oxford University Press.
Wettstein, Howard, 2012, The Significance of Religious Experience, Oxford: Oxford University Press doi:10.1093/acprof:oso/9780199841363.001.0001
Traduzido de: Taliaferro, Charles, "Filosofia da Religião", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição de outono de 2019), Edward N. Zalta (ed.), URL = https://plato.stanford.edu/entries/philosophy-religion/
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