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PROPOSTA PARA UMA COMPREENSÃO SIMBÓLICA DO MITO DE ADÃO E EVA




O objetivo deste texto é propor uma possível leitura do mito de Adão e Eva, sem pretensões de ser absoluto, é apenas uma proposta de uma compreensão simbólica possível do mito. Primeiro, é preciso dizer que mito não significa mentira, um mito pode mesmo ser, e geralmente é, histórico. O que acontece, é que os mitos narram acontecimentos históricos reais em uma linguagem figurada, repleta de elementos extraordinários. Esse parece ser o caso do mito de Adão e Eva, que pode ser compreendido como o mito de como foi fundada a civilização humana.

De acordo com o mito, após criar todo o mundo em que os primeiros humanos iriam viver, com terra, rios, árvores, um belo céu e animais para servir o humano, Deus criou então aquele a quem tudo isso deveria servir: o próprio humano, Adão. O mundo surge como uma totalidade utensiliar a serviço do humano. Adão é criado da terra, assim como no mito de Hígino, em que Cuidado forma o humano a partir da terra e em que Júpiter (Zeus) lhe sopra o espírito.
       Esse humano continha em si mesmo, tanto o masculino (animus) como o feminino  (anima) , o texto diz:

“Então criou Deus Adão à sua imagem; à imagem de Deus o criou: macho e fêmea os criou.”
- Gênesis 1,27

       Adão tem em si o masculino e feminino, é por isso que a mulher pode ser criada a partir dele, da sua costela. Por assim dizer, a mulher habita dentro do homem. E a mulher, à medida que vem do homem, carrega o homem dentro de si. Todos nós reunimos em nós mesmos o masculino e o feminino. Se o gênero para o qual se orienta a nossa consciência é o masculino, o gênero para o qual se orientará o nosso inconsciente será o gênero oposto, o feminino. Do mesmo modo, a orientação consciente feminina significa a orientação inconsciente masculina. Sendo assim, todos nós somos constitutivamente “andrógenos” e “bissexuais”.
            Isso significa que aquele que se identifica como homem, adota, em nível consciente, características culturalmente associadas ao sexo masculino, enquanto reprime aquelas características que são geralmente associadas ao feminino e vice-versa. O mito de Gênesis nos mostra que nascemos com as duas disposições: o masculino e o feminino, o animus e a anima.
            Assim, o mito diz que havia no princípio o humano primordial andrógino e que num segundo momento esse humano original se cindiu em dois. Esse símbolo é importante e explica a associação do feminino com o mal. Os mitos geralmente falam de uma unidade primordial em que tudo era harmônico, a divisão dessa unidade cria uma dualidade, passam a haver dois princípios conflitantes: o bem e o mal. É assim desde o início da criação: unidade e dualidade. Deus separa luz e trevas, céu e terra, terra e mar, dia e noite, etc. A dualidade significa que um dos princípios passa a ser identificado com o bem e o outro com o mal. No mito, é o homem que vai ser associado com o bem e a mulher com o mal.
       A noção de que éramos originariamente andróginos aparece também no Banquete de Platão, na fala de Aristófanes:

Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça - pois as honras e os templos que lhes vinham dos homens desapareceriam — nem permitir-lhes que continuassem na impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.” Logo que o disse pôs-se a contar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição. Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro.

            Após a divisão do humano em homem e mulher, com a criação de Eva da costela de Adão, o mito bíblico prossegue com Deus impondo uma proibição. Deus aparece no mito como “Javé-Deus”. Javé é uma determinada figura de Deus no Antigo Testamento que é bem diferente da imagem do Deus cristão. Javé é apresentado na simbologia do Antigo Testamento como a completude e a totalidade e, nesse sentido, inclui o bem e o mal (confira: Isaías 45,7 e Lamentações 3,38), não é sem motivo que “ser como Deus” é “conhecer o bem e o mal”. Javé, portanto, não é somente bom, ele está mais para o símbolo de uma Consciência moral tirânica e limitadora. Ele começa por impor uma proibição: que o homem não coma do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal para que não venha a se tornar um deus. Lembremos que Zeus dividiu os andróginos justamente para que eles não fossem poderosos como os deuses, aqui se tem um interessante paralelo.
            É claro que quem vai desobedecer a ordem de Javé é aquela que representa o mal e quem a incita a isso é o próprio Javé. Na mentalidade veterotestamentária, Satanás aparece como um dos modos pelos quais o próprio Javé age. Satanás não é um ser real, um indivíduo separado, mas uma das formas que Javé assume. A serpente não é outro senão o próprio Javé em sua face do mal. Como exemplo dessa identificação, basta comparar os textos paralelos de 2 Samuel 24,1 e 1 Crônicas 21,1:

“Então a ira de Javé se tornou a acender contra Israel; e incitou a Davi contra eles”
“Então Satanás se levantou contra Israel, e incitou Davi a numerar a Israel.”

            A mulher é levada pela faceta do mal de Javé, justamente porque, como vimos, a mulher é que se identifica com o mal. Quando a mulher come do fruto, o mal passa a dominar a criação. Aqui se tem um paralelo com o mito de Pandora, a primeira mulher, que desobedecendo a proibição de Zeus, abre a caixa que espalha todos os tipos de males pelo mundo. No mito de Pandora, parece que Zeus intencionava desde o começo que a mulher trouxesse males ao mundo, no caso do mito bíblico, é importante lembrar que foi o próprio Javé-Deus quem colocou no Jardim a árvore que liberaria todos os males. A proibição não tem outra função senão incitar a curiosidade, a lei gera o desejo da transgressão.
            Mas que evento histórico seria encenado nesse mito? Talvez encontremos luz em Totem e Tabu de Sigmund Freud. Recorrendo ao darwinismo, Freud diz:

Essa tentativa (de explicar o horror do incesto) baseia-se numa hipótese de Charles Darwin sobre o estado social dos homens primitivos. Deduziu ele dos hábitos dos símios superiores, que também o homem vivia originalmente em grupos ou hordas relativamente pequenos, dentro dos quais o ciúme do macho mais velho e mais forte impedia a promiscuidade sexual. ‘Podemos na verdade concluir, do que sabemos do ciúme de todos os quadrúpedes masculinos, armados, como muitos se acham, de armas especiais para bater-se com os rivais, que as relações sexuais promíscuas em um estado natural são extremamente improváveis (…) Dessa maneira, se olharmos bastante para trás na corrente do tempo (…) a julgar pelos hábitos sociais do homem, tal como ele hoje existe (…) a visão mais provável é que o homem primevo vivia originalmente em pequenas comunidades, cada um com tantas esposas quantas podia sustentar e obter, as quais zelosamente guardava contra todos os outros homens. Ou pode ter vivido sozinho com diversas esposas, como o gorila, pois todos os antigos “concordam que apenas um macho adulto é visto num grupo; quando o macho novo cresce, há uma disputa pelo domínio, e o mais forte, matando ou expulsando os outros, estabelece-se como chefe da comunidade”. (Dr. Savage, no Boston Journal of Nat. Hist., vol. V, 1845-7, p. 423.) Os machos mais novos, sendo assim expulsos e forçados a vaguear por outros lugares, quando por fim conseguiam encontrar uma companheira, preveniram também uma endogamia muito estreita dentro dos limites da mesma família.’ (Darwin, 1871, 2, 362 e seg.)

Assim, o mito de Adão e Eva pode ser entendido como uma figura da fundação da civilização humana. No processo evolutivo, nossos ancestrais habitavam em hordas primitivas, que eram unidades dominadas por um patriarca que detinha o poder sobre as fêmeas da horda. A figura do patriarca aparece na imagem de Adão e sua posse sobre Eva simboliza o domínio do patriarca sobre as fêmeas. Mas ainda estamos em um período pré-civilizatório e esse estágio, na memória humana, é retratado pelo símbolo de um paraíso original, anterior à inscrição no real. 
Nas hordas primitivas, evidentemente não havia só o patriarca e as fêmeas, haviam também machos filhos do patriarca que eram interditados ao acesso às fêmeas da horda. Toda vez que um macho insurgia contra o patriarca, ele era expulso da horda. Na medida em que mais e mais machos foram expulsos da horda, começou a se formar um conjunto de rebeldes excluídos fora dela. Esses rebeldes são representados pela figura da serpente. A serpente é o terceiro excluído da relação triangular Adão-Eva-serpente. No mito, a serpente ataca o estado original, mostrando o desejo de possuir a mulher, Eva. Na horda primitiva, esse grupo de rebeldes se juntam e conseguem matar o patriarca. No entanto, havia um sentimento ambivalente, o patriarca, embora odiado por deter o poder das fêmeas, também era amado, pois ele era o pai de todos. Aliás, amor e ódio são duas faces de uma mesma moeda. Assim, ao matar o pai, nossos ancestrais sentem culpa. Quando isso aconteceu, nós nos tornamos humanos. Pela primeira vez sentimos culpa, fomos inscritos no real, numa realidade que não era mais a idealização de um paraíso, mas o mundo humano: passamos, assim, a conhecer o bem e o mal, isto é, nos tornamos seres morais.
No mito, Javé-Deus visita o Jardim após a transgressão original e nossos primeiros pais se escondem com culpa. Javé representa figurativamente a nossa consciência moral. No estado primitivo, após matar o patriarca, diante da culpa, nenhum rebelde ousou tomar seu lugar, nem tomar posse das mulheres. Antes, instituíram uma Lei, o chamado “tabu do incesto”, uma interdição, agora simbólica, que proibia o acesso às mulheres da horda. No lugar do patriarca, foi colocado um totem, um símbolo religioso, talvez um animal, que passava a representar a antiga autoridade. No mito bíblico, Deus sacrifica um animal, um cordeiro, que serve de expiação para a transgressão de nossos primeiros pais. Assim, o mito de Adão e Eva pode ser compreendido como uma encenação simbólica da fundação da civilização humana.



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Bruno dos Santos Queiroz

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