O QUE SIGNIFICA "DEUS"?
O
objetivo deste texto é pensar um pouco sobre a noção de “Deus”. Para isso, será
preciso primeiro fazer uma consideração mais ampla sobre metafísica para
compreendermos a totalidade da realidade e entender "onde" entra
Deus. Uma breve compreensão metafísica tornará possível refletir um pouco sobre
o divino. Por fim, considerarei também brevemente a noção de Deus
como apresentada pelo teísmo filosófico.
I. METAFÍSICA GERAL
Para
compreender o que significa "Deus", é preciso primeiro ter uma noção básica de metafísica geral, entendo por metafísica a
compreensão abrangente da realidade. A totalidade da realidade, isto é, a
totalidade dos entes, chamamos de “mundo". No entanto, o mundo não é a mera soma dos entes, ele é o horizonte em que os entes se mostram. No horizonte do mundo há entes numa diversidade de modos de ser. Podemos falar de um lado dos entes que
já possuem um modo de ser determinado, os utensílios, os quais recebem seu sentido de ser a partir de sua funcionalidade no interior do mundo.
Há, no entanto, entes que possuem um sentido de ser puramente ideal,
como os números e as formas geométricas, que se originam das operações
sintéticas da consciência transcendental. Podemos falar ainda dos entes
que vivem, como os animais e, por fim, podemos falar do único ente que não
está determinado previamente, aquele cuja liberdade lhe permite determinar-se a
si mesmo em seu sentido de ser, este ente é o ser-aí, sem o qual o mundo não existiria.
Todos
os entes e sua relações constituem a totalidade do mundo. Esses entes estão
sujeitos a princípios básicos que estabelecem os limites de sua realidade. O
princípio fundamental de todos os entes é o princípio do fundamento,
que estabelece que cada ente tem seu fundamento, desse princípio fundamental
deduz-se todos os demais princípios da lógica ao qual todos os entes se encontram
sujeitos: o princípio de identidade (um ente é
idêntico a ele mesmo), o princípio da diferença (um ente é
diferente de um ente que não lhe é idêntico), o princípio da
não-contradição (um ente não pode possuir um determinado predicado e
ao mesmo tempo não possuí-lo) e o princípio do terceiro excluído (ou
um ente possui determinado predicado ou não o possui).
No entanto, o princípio do
fundamento requer um domínio anterior a ele mesmo. O fundamento dos entes é o ser. O ser é aquilo que está no
fundamento de aparição de todo ente. Mas o ser, não é, ele mesmo um ente. O ser
não está entre os entes do mundo, não é uma cadeira ou uma árvore, nem um
animal nem um ser humano, não é um número ou uma reta, o ser simplesmente não
é. O ser está no fundamento de todo ente e é inseparável do ente. Todo ente
“é”, o ser está, assim, sempre relacionado ao modo de ser de um ente. Nesse
sentido, é impossível conceber o ser separado do ente. Logo, quando o teísmo
filosófico fala de Deus como um Ser que transcende todos os entes, que existe
por si mesmo, ele está falando de algo completamente sem sentido, visto que o
ser jamais existe por si mesmo, antes é sempre ser de um ente.
No entanto, na medida em que o
ser não é um ente, ele não pode estar submetido aos princípios da lógica formal.
Se os princípios da lógica são derivados a partir do princípio do
fundamento, então o fundamento do princípio não pode estar sujeito a esses
princípios. O princípio de identidade, o princípio da diferença, o princípio da
não-contradição e o princípio do terceiro excluído, são princípios que falam
sobre o ente. Na medida em que o ser não é um ente esses princípios
simplesmente não fazem sentido quando falamos do ser.
Além
dos entes e do ser, experienciamos, no entanto, determinados fenômenos que não
são entes. Consideremos o “tempo”. Será que já vimos o tempo por aí? Será que o
tempo tem realidade efetiva assim como uma árvore ou mesmo um número? O tempo não é um
ente, não é uma coisa, mas surpreendentemente o tempo acompanha todo ente. Todo
ente é no tempo. O tempo se dá e sempre se dá junto aos entes, mas ao mesmo tempo não é um ente. A temporalidade
abre-nos para a descoberta daquilo que pode ser chamado de “Acontecimento”.
Há
um acontecimento, um acontecimento que acontece e que ao acontecer doa o ser de
todas as coisas. Há um acontecer que produz toda a variedade de entes em seus
modos diversos de ser, que traz todas as coisas à existência, que está no
fundamento de aparição de todos os entes, um acontecer que, no entanto, não é, ele mesmo, um ente.
Sabemos que coisas acontecem, filosofamos
sobre as coisas e os seus modos de ser, mas esquecemo-nos completamente do
próprio acontecer. O dia começa, o sol nasce, as flores se abrem, a chuva cai,
o vento sopra, o tempo passa, os seres vivem, o mundo gira, nações caem e
reinos se levantam, pessoas nascem, crescem e morrem, há um acontecimento
constante e dinâmico, uma condição de possibilidade para que ser e tempo possam se dar. Há um acontecer, um fluxo dinâmico que fundamenta tudo o
que existe, o movimento ek-stático de todas os seres, o acontecimento apropriativo que
doa o ser, não sendo ele mesmo um ser, senão puro verbo, puro acontecer. O
acontecimento está por traz de todas as nossas ações, move os animais, palpita
na vegetação e fundamenta tudo que aparece.
II. O DIVINO
Só dizemos que o acontecimento
“é” por falta de palavras, pois o acontecimento não é, pois não é um ente. O
acontecimento acontece. Como o acontecimento não é um ente e, portanto, não
está sujeito aos princípios da lógica, ele não pode ser expresso pela linguagem
racional, o modo apropriado de falar do Acontecimento é a linguagem poética e
mítica. À medida que os indivíduos e as culturas se relacionaram com esse
acontecimento, elas lhe deram vários nomes. Lao Tse chamou esse acontecimento de “Tao”, veja o que ele diz em linguagem poética:
“O Tao
que pode ser expresso não é o Tao absoluto.
O Nome
revelado não é o ente nomeado.
O
Inominável nomeia a origem do céu e da terra.
O
Nominável é a mãe de todas as coisas.
Por isso
o ser permite a contemplação do misterioso princípio
E o não-ser
de seu vestígio."
“O
retorno é o movimento do Tao
A
suavidade é a atuação do Tao
Os seres
sob o céu nascem da existência
E a
existência nasce da não-existência.”
“Portanto
o ser e o não-ser se engendram
O difícil
e o fácil se completam
O longo e
o curto se comparam
O alto e
o baixo se dependem
O som e o
tom se harmonizam
O antes e
o depois se acompanham.”
(Tao Te
Ching, capítulos 1, 40, 2)
A
Religião se defronta com o
Acontecimento na qualidade de materializadora das derradeiras possibilidades
humanas de experiência com o acontecer. Isto significa que a Religião se
relaciona com o acontecimento a partir de símbolos
místicos que mediam essa relação, como os orixás que personificam o acontecimento
vivo na natureza ou a ideia de “Deus” das tradições monoteístas. Nós, cristãos,
cremos que o Acontecimento realmente se materializou, assumindo forma humana em
Cristo, o Verbo encarnado. Cremos ainda que o acontecimento é uma relação dinâmica eterna entre
três princípios para nós incompreensíveis, mas com os quais nos relacionamos no
símbolo da Trindade como uma tripessoalidade. Mas todas as religiões se relacionam com o Acontecimento
pela mediação de seus próprios símbolos e mitos, o que torna todas essas
diferentes formas de espiritualidade legítimas.
Interessante, por exemplo, é o
modo como o teólogo Karl Barth
descreveu o Espírito Santo em
sua Carta aos Romanos. Para ele, o Espírito é a genuína realidade,
embora imaterial, acontecimento incontestável, sem começo nem fim, não sujeito
ao tempo ou espaço e incomparável, o Absoluto no qual desaparecem as contradições e as antinomias, não sendo nem racional, nem irracional, mas, a origem e o fim, tanto da racionalidade quanto da irracionalidade. No hinduísmo há a noção de Brâman, o fluxo de expansão do qual
todas as divindades são apenas manifestações. No budismo fala-se do Sunyata, um não-ente, o vazio do
não-ser, o espaço aberto que fundamenta o ser. Esses são alguns dos símbolos do
divino nas diferentes formas de religiosidade.
III. O DEUS DO TEÍSMO FILOSÓFICO
Evidentemente
que a noção de Deus que eu expus é muito diferente da noção de Deus do teísmo filosófico. O Deus do teísmo
filosófico é uma criação humana, ele surge de um processo de abstração e de uma
projeção das nossas próprias qualidades. O Deus do teísmo filosófico não é
outra coisa senão a nossa própria essência abstraída de suas limitações e tendo
suas qualidades elevadas a um grau infinito. Este Deus não possui realidade
efetiva, sendo apenas uma abstração criada por nosso intelecto.
Essa
abstração, após criada pelo intelecto, é racionalizada e os teístas criam
diversos argumentos filosóficos para justificá-la. Todos esses argumentos se
movem em especulação vazia, nada tem a ver com o acontecimento real que
experienciamos todos os dias, mas sim com um universo fantástico de puras
idealidades.
Esses
argumentos dependem de uma metafísica ideológica, diferente da metafísica geral
que apresentei. Essa metafísica não é só responsável por criar um outro mundo,
o mundo das formas e ideias imutáveis e eternas, como é capaz de afirmar que
esse outro mundo é a verdade, enquanto trata o mundo real, o verdadeiro mundo,
como aparência enganadora.
É
só a partir dessas puras idealidades criadas por abstrações do intelecto e
tomadas como a realidade verdadeira na mesma medida em que se nega a realidade
concreta, que os argumentos teístas se movem. É o exemplo de todo argumento ontológico, que só pode
operar no reino de idealidades. O argumento ontológico é absurdo, não simplesmente
porque se baseia na frágil suposição de que a existência é uma propriedade, mas
porque não passa de um um mero jogo de palavras, sem qualquer referência ao
mundo concreto.
É
só a partir das bases desse argumento ontológico que se constrói todos os
demais argumentos teístas. É só a partir dessa pressuposição ontológica que,
por exemplo, o argumento cosmológico
e o argumento teleológico podem
estender a causalidade para um domínio muito maior do que o mundo da
experiência ou operar o salto gigantesco de ir da experiência empírica para uma
ideia tão excelsa e abstrata como a ideia de Deus. Tal salto só é permitido por
uma metafísica que se deslocou completamente da realidade concreta.
Os
pressupostos do teísmo são puramente ideológicos e abstratos. Tal Deus não
passa do resultado de uma abstração operada pelo intelecto, de modo que o Deus
do teísmo nada mais é que um ideal, o próprio ideal do humano abstraído de suas
limitações.
O
humano é um ser intelectual, com vontade, poder e intelecto, mas finito e
limitado. O teísmo, então, abstrai o humano de sua realidade concreta e projeta
a ideia de um ser com intelecto, vontade e poder, mas não sujeito à finitude ou
limitação. Essa abstração, "o maior ser que o intelecto pode
conceber", permite que se construa a figura de um Ser supremo de poder,
vontade e intelectos infinitos, a quem é atribuído necessidade, existência
absoluta, autonomia, independência e perfeição.
Este
Deus só existe como idealização da essência humana abstraída. O Deus do teísmo
filosófico não existe na realidade concreta, não faz parte do mudo real, não
possui existência efetiva. Nesse sentido, estamos certos em admitir que Deus
não existe. Um ateu que nega a existência desse Deus está mais próximo do
verdadeiro divino, aquele vivido por crentes em suas realidades concretas e
materiais, do que está o teísta filosófico que só pode se relacionar com uma
abstração de seu intelecto.
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entender
que Deus está para além do domínio do ente, significa também dizer que Deus se encontra para além de nossa intuição sensível que só pode perceber os entes e de nosso intelecto que só pode compreender os entes percebidos. Deus está para além do domínio da lógica, não é um ente e não pode ser pensado de acordo com as categorias do entendimento. Falar dele já não é falar dele. O Deus que pode ser
pensado já não é o Deus absoluto. Impossível de ser representado, conceituado
ou entendido, Deus se relaciona conosco e nós com Ele a partir de símbolos e
mitos humanos e imperfeitos. Mas na dimensão do encontro puro, Eu-Tu, na
experiência viva da espiritualidade, no encontro patético com a Vida podemos experienciar o divino em sua imediatidade.
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