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TEORIA DO COMANDO DIVINO DAS OBRIGAÇÕES MORAIS - STEPHEN EVANS (RESUMO)


O que se segue é um resumo dos capítulos do livro God and Moral Obligation de Stephen Evans. O objetivo é apresentar as teses do texto original de forma compactada, sem constituir uma resenha crítica. Assim, o resumo busca refletir as ideias dos autores originais, sintetizando suas principais teses. A leitura deste resumo não substitui a leitura do livro. Ele está estruturado conforme a organização original, dividindo-se nas seguintes partes e subpartes: (i) A noção de obrigações morais (1. God and Moral Obligations); (ii) Teoria do Comando Divino (2. What is a Divine Command Theory of Moral Obligations); (iii) Relação entre Comandos Divinos e Lei Natural (3. The Relation of Divine Command Theory to Natural Law and Virtue Ethics); (iv) Respostas às Objeções à Teoria do Comando Divino (4. Objections to Divine Command Theory); (v) Alternativas à Teoria do Comando Divino (5. Alternatives to a Divine Command Theory). Referência: EVANS, C. Stephen. God and moral obligation. Oxford: Oxford University Press, 2013. 


I. A NOÇÃO DE OBRIGAÇÕES MORAIS  

  

Não é totalmente correto afirmar que, sem Deus, nada restaria da moralidade. No entanto, remover Deus da discussão moral exige que repensemos radicalmente o que entendemos por moralidade, ou até que aceitemos a possibilidade de perder a nela. Nesse contexto, o aspecto mais afetado é o da obrigação moral, ou seja, os deveres éticos (comonão mataroudizer a verdade”).   

, de modo geral, três interpretações distintas da tese de que a moralidade depende de Deus: (i) interpretação psicológica ou pragmática: afirma que a crença em Deus é necessária para que uma pessoa seja moral; essa posição, contudo, é claramente implausível, pois muitos ateus que agem moralmente; (ii) interpretação epistemológica: sustenta que Deus é a fonte do nosso conhecimento moral, por revelação, razão ou consciência moral dada por Ele, porém, essa tese acaba se tornando trivial se partirmos da premissa de que o teísmo é verdadeiro; (iii) interpretação ontológica: defende que as obrigações morais existem porque são fundamentadas por Deus; ou seja, sem Deus, essas obrigações não teriam base ontológicas.   

Obrigações morais se aplicam primariamente a ações ou tipos de ações, mas também podem referir-se a fins ou objetivos que devemos perseguir. Existem duas principais abordagens quanto à natureza dessas obrigações: (i) absolutismo: defende que deveres morais incondicionais e universais, que não admitem exceções; (ii) não-absolutismo: reconhece que obrigações morais podem entrar em conflito e que, em certos casos, uma obrigação pode ser superada por outra mais urgente 

O termoobrigação pertence a um campo de conceitos chamado deôntico, que inclui tambémpermitido”,proibido”,lícito”, entre outros. Além das obrigações morais, outros tipos, legais, familiares, sociais, cada um ligado a um sistema normativo específico dentro de um contexto social. A análise conceitual de termos comoobrigação moral” é objeto da metaética, uma área da filosofia que busca entender os fundamentos da moralidade, especialmente através da análise de conceitos comobem”,dever” e “justiça”.  

Nesse campo, duas posições principais sobre a natureza das obrigações morais: (i) cognitivismo: afirma que os juízos morais expressam proposições verdadeiras ou falsas, e que as obrigações morais são fatos objetivos; (ii) não-cognitivismo: sustenta que juízos morais não descrevem fatos, mas expressam emoções (emotivismo) ou funcionam como comandos (prescritivismo). O problema do não-cognitivismo é explicar a autoridade normativa dos juízos morais: o simples fato de alguém aprovar ou desaprovar algo não parece suficiente para justificar sua obrigatoriedade. o cognitivismo precisa fundamentar por que tais fatos morais possuem autoridade vinculante sobre nós 

A filósofa G. E. M. Anscombe argumentou que o conceito moderno de “obrigação moral” tem raízes teológicas, especialmente cristãs, e perde o sentido em um contexto secular. Segundo ela, uma diferença fundamental entre a ética aristotélica e a moral moderna. Para Aristóteles, o dever está ligado ao bem humano (eudaimonia), é teleológico, centrado no florescimento humano, e articulado por meio de conceitos comovirtude” e “vício”. a ética moderna concebe o dever de forma absoluta, como uma sentença ou veredito, centrada em termos comocerto/errado”,culpado/inocente”,obrigatório/proibido”.  

Essa transformação foi, segundo Anscombe, herança do Cristianismo, que reformulou a moral em termos de mandamentos divinos (por exemplo, o Decálogo). Assim, se não houver um legislador divino, a linguagem de “obrigação moral” se torna, para ela, análoga a um sistema legal sem autoridade legislativa. Como solução, Anscombe propõe que abandonemos o vocabulário de “obrigação moral” e retomemos uma ética das virtudes, nos moldes aristotélicos 

Contudo, essa solução parece insuficiente, pois ignora aspectos centrais do que entendemos por obrigação moral. Podemos extrair de seu próprio pensamento quatro características fundamentais da obrigação moral: (i) veredito binário: os juízos morais funcionam como sentenças, ou uma obrigação, ou não ; (ii) fim da deliberação: reconhecer uma obrigação moral encerra o processo deliberativo (exceto em casos de conflito de deveres); (iii) responsabilidade e culpa: a violação de uma obrigação moral gera culpa ou responsabilidade moral; (iv) universalidade: obrigações morais se aplicam a todos os seres humanos, independentemente de cultura, tempo ou lugar 

A ética aristotélica, com seu enfoque particularista, falha sobretudo na quarta característica: ela não captura a universalidade que caracteriza a moralidade moderna. Além disso, ainda que Aristóteles não tenha formulado um conceito de obrigação moral nos moldes atuais, isso não significa que a ideia estivesse ausente na filosofia antiga. Sócrates, mestre de Platão, que influenciou Aristóteles, operava com um senso de dever racional próximo do moderno Por fim, do ponto de vista epistemológico, também não é necessário aceitar um legislador divino para se reconhecer obrigações morais. Embora Deus possa ser a base objetiva para explicar a existência de deveres morais universais e incondicionais, ateus podem reconhecer esses deveres, mesmo sem os atribuírem a uma autoridade divina 

  

II. TEORIA DO COMANDO DIVINO   

  

A Teoria do Comando Divino (TCD) é a teoria que afirma que "X é moralmente obrigatório se e somente se Deus ordena X." A melhor versão da TCD foi proposta por Robert Adams, que defende que os comandos divinos não são arbitrários, mas refletem a natureza de Deus, que é essencialmente amoroso. Adams também adota a chamada Teoria Social das Obrigações, de acordo com a qual, obrigações surgem de relações sociais (ex.: pais-filhos, cidadão-Estado), sendo a relação Deus-criatura uma relação social fundamental que gera obrigações morais. Assim como um pai tem obrigações para com o filho por causa do vínculo social, não por uma ordem aleatória, da mesma forma, nossa obrigação moral de "amar o próximo" vem da relação com Deus, nosso criador e sustento 

A TCD é uma teoria forte na medida em que consegue explicar as características da obrigação moral: (i) objetividade: se obrigações são comandos de Deus, um fato objetivo sobre sua existência e conteúdo; (ii) sobreposicionalidade: Se Deus criou humanos para um fim último (relacionamento com Ele), então nossas razões morais se sobrepõem a qualquer outra razão; (iii) força motivacional: Deus é a fonte última da motivação moral verdadeira; (iv) universalidade: obrigações morais aplicam-se a todos os seres humanos, em todas as culturas na medida em que todos são criaturas de Deus.    

A TCD permite que os comandos divinos tenham certa flexibilidade, ou seja, admite que Deus poderia ter dado comandos diferentes daqueles que ele deu. No entanto, os defensores da TCD argumentam que essa flexibilidade não é ilimitada. Duns Scotus, por exemplo, divide os 10 Mandamentos em duas "tábuas" (deveres para com Deus e deveres para com o próximo) e argumenta que os da primeira tábua são necessários enquanto os da segunda Deus poderia tê-los modificado sem contradizer Sua bondade. John Hare e Robert Adams, por sua vez, argumentam que Deus poderia ter acrescentado deveres sem alterar os existentes e eles também afirmam que a flexibilidade dos comandos divinos enfrenta a restrição de que Deus não pode comandar o mal (pois é essencialmente bom). Além disso, eles concordam com Tomás de Aquino que para Deus dar comandos diferentes ele teria de criar a natureza humana de um modo diferente. Para Aquino, no entanto, uma vez que Deus decide criar humanos como são, certos comandos tornam-se necessários 

Assim como leis humanas são válidas se publicam publicamente conhecidas, leis morais divinas precisam ser acessíveis (promulgadas). Richard Mouw lista várias formas pelas quais Deus poderia comunicar Suas leis: (i) revelação especial: Deus revela suas leis por meio da escritura sagrada; (ii) lei natural: Deus implantou princípios morais básicos na natureza humana; (iii) consciência moral: Deus nos deu um instinto ou faculdade interior que distingue o certo e o errado; (iv) revelação individual: Deus comunica seus comandos por meio de sonhos, vozes e convicções internas. Robert Adams, por sua vez, acrescenta mais uma alternativa: (v) instituições sociais: Família, Estado e Costumes transmitem normas que podem refletir a vontade divina 

A alternativa das instituições sociais enfrenta o problema de como distinguir, por exemplo, leis sociais/institucionais injustas de leis morais divinas. A ideia de uma consciência moral como uma faculdade universal, por outro lado, oferece um meio mais universal e não sectário de acesso à moralidade divina. Considerado isso, podemos responder a algumas objeções comumente levantadas contra a Teoria do Comando Divino.  

  

III. RELAÇÃO ENTRE COMANDOS DIVINOS E LEI NATURAL  

  

três importantes teorias éticas, frequentemente consideradas rivais, a Teoria do Comando Divino (TCD), a Teoria da Lei Natural (TLN) e a Ética das Virtudes, mas que podem, na verdade, serem vistas como componentes complementares de um sistema moral coerente, especialmente quando integradas numa perspectiva teísta. Nesse modelo integrativo, a TLN identifica os bens objetivos da natureza humana (como a vida, a razão, a sociabilidade), que fundamentam os comandos morais de Deus na TCD. Esses comandos não apenas reconhecem tais bens, mas os elevam à condição de obrigações morais. A Ética das Virtudes, por sua vez, mostra que o fim último desses comandos é a formação de um caráter virtuoso. Deus, como Criador das naturezas e fonte da ordem moral, assegura a unidade desse sistema: suas leis não são arbitrárias, pois expressam os próprios bens que Ele inscreveu na criação, tendo como finalidade última o florescimento humano 

Embora a TLN ofereça uma ontologia moral robusta, ela enfrenta dificuldades em explicar por que certos bens impõem obrigações morais. Por outro lado, a TCD fornece a estrutura de deveres, mas precisa de uma teoria do bem para justificar por que esses deveres são razoáveis. Robert Adams propõe, nesse sentido, a Teoria Social das Obrigações, segundo a qual os deveres morais decorrem do bem inerente ao relacionamento entre Criador e criatura. Ainda que essa proposta seja valiosa, a autoridade moral não se sustenta apenas sobre a base de relações sociais assimétricas, mas requer reconhecimento racional. É aqui que a TLN contribui decisivamente, oferecendo o alicerce racional para que os agentes reconheçam e aceitem a autoridade moral de Deus. Isso revela uma ética teísta relacional, mas também racionalmente fundamentada e não arbitrária 

Além da TLN, a Ética das Virtudes também pode enriquecer a TCD. Tomás de Aquino, por exemplo, integrou harmonicamente a TLN com a Ética das Virtudes. Se a TCD é compatível com a TLN, parece igualmente plausível que seja compatível com uma versão robusta da Ética das Virtudes. No entanto, certas versões contemporâneas dessa ética entram em tensão com a TCD. Isso ocorre porque a TCD é deontológica, centrada em deveres universais, ao passo que algumas formas de Ética das Virtudes, como o particularismo radical, rejeitam regras morais gerais, enfatizando o julgamento situacional ou derivando os deveres exclusivamente do caráter virtuoso do agente 

Segundo o particularismo moral radical, não existem deveres morais fixos: cada ação deve ser avaliada de forma isolada. Essa posição, porém, não parece corresponder à nossa experiência moral comum, pois reconhecemos intuitivamente a existência de normas morais universais como "não torturar". Além disso, pensadores como Michael Slote e Linda Zagzebski defendem que o critério do dever moral é o que uma pessoa virtuosa faria, o que pode inverter a lógica da normatividade: não é porque os virtuosos são corajosos que a coragem é boa, mas é porque a coragem é objetivamente boa que reconhecemos os virtuosos como tais.  

Por outro lado, versões moderadas da Ética das Virtudes são compatíveis com a TCD. O particularismo moderado, por exemplo, reconhece que situações em que os princípios gerais não são suficientes para guiar a ação, exigindo discernimento e prudência. Um defensor da TCD pode aceitar que Deus não legislou cada detalhe da vida moral, mas apenas aquilo que é essencial para o relacionamento com Ele. Nessas situações, a sabedoria prática (ou prudência) se torna crucial para aplicar os mandamentos divinos. Além disso, a TCD é compatível com a ideia de que pessoas virtuosas podem nos ajudar a discernir os deveres, ainda que elas não sejam a fonte da normatividade 

Por fim, conexões estruturais entre a TCD e a Ética das Virtudes que reforçam sua compatibilidade: (i) virtudes como conteúdo dos deveres morais: certos comandos divinos ordenam diretamente o cultivo de virtudes como amor, misericórdia e humildade; (ii) virtudes como motivadoras da obediência: as virtudes dão sentido interior ao cumprimento dos deveres, evitando uma moralidade meramente legalista e mecânica; (iii) virtudes teologais e deveres religiosos: , esperança e caridade, virtudes infundidas por Deus, qualificam o cumprimento dos deveres como atos de adoração; (iv) deveres como meio para a virtude: os mandamentos divinos não são fins em si mesmos, mas caminhos ordenados ao crescimento moral e espiritual da pessoa 

  

IV. RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES À TEORIA DO COMANDO DIVINO  

  

Nesta seção serão considerados respostas a objeções comumente levantadas contra a Teoria do Comando Divino (TCD) e as respostas a cada uma dessas objeções:  

 

(1) Objeção do Dilema de Eutífron: A TCD enfrenta o problema do Dilema de Eutífron (algo é bom porque Deus quer ou Deus quer algo porque esse algo é bom). A TCD adotaria a resposta de que algo é bom porque Deus quer o que tornaria a ética arbitrária 

Resposta: A visão modificada da TCD nega tanto que o bem seja independente de Deus (como no platonismo), nem que seja arbitrário (como no voluntarismo radical), propondo uma terceira via: os comandos divinos derivam da própria natureza bondosa de Deus, que é a fonte objetiva do bem. Assim, Deus ordena o que é bom porque Sua essência é o padrão de bondade, evitando tanto a arbitrariedade (“o bem é o que Deus decidir”) quanto a limitação da soberania divina (“Deus segue um bem externo”). A TCD modificada ainda admite que, em casos de ações moralmente equivalentes (como escolher entre dois dias de jejum), Deus pode usar Sua discrição para fins pedagógicos (como testar a devoção), sem cair em arbitrariedade, assim como um artista escolhe entre cores igualmente belas com propósito estético 

  

(2) Objeção dos Atos Horrendos: Se a TCD afirma que "obrigatório = o que Deus ordena", então, em tese, Deus poderia ordenar atos horrendos (como tortura), tornando-as moralmente obrigatórias, o que viola intuições éticas básicas.   

Resposta: A TCD rejeita a possibilidade de Deus ordenar atrocidades porque Deus, por definição, é necessariamente bom e incapaz de ordenar o mal, que Seus comandos derivam de Sua natureza bondosa. Além disso, a objeção comete uma falácia lógica: proposições do tipo "Se Deus ordenasse o mal, o mal seria obrigatório" são vazias (como dizer "Se 2+2=5, então círculos seriam quadrados"), pois o antecedente é impossível. Esse problema não é exclusivo da DCT, teorias seculares (como o kantismo) também geram paradoxos similares quando pressionadas a cenários impossíveis, o que mostra que a objeção é fraca e não invalida a teoria 

  

(3) Objeção da Autonomia: A objeção da autonomia afirma que a TCD prejudicaria a liberdade moral humana, reduzindo as pessoas a "crianças" que apenas obedecem a ordens divinas sem usar sua própria razão. Isso ocorreria porque a DCT basearia a moralidade na autoridade de Deus, e não na capacidade humana de discernir o certo e o errado por meio da razão ou da consciência autônoma 

Resposta: A TCD não nega a autonomia moral, mas a reinterpreta dentro de um relacionamento com Deus. Primeiro, a teoria não exige que as pessoas saibam que seus deveres são comandos divinos para agirem moralmente, muitos cumprem obrigações éticas sem ligá-las explicitamente a Deus. Segundo, Deus, ao conceder livre-arbítrio, trata os seres humanos como agentes livres, capazes de escolher obedecer ou não, o que preserva sua dignidade moral. Além disso, os mandamentos divinos não são "microgerenciamento" (como instruções minuto a minuto), mas princípios gerais (como "ame o próximo") que exigem julgamento racional para serem aplicados, assim como bons pais dão regras amplas aos filhos, permitindo que desenvolvam maturidade. Por fim, a TCD não implica uma eterna infantilização, mas um processo de amadurecimento: assim como os santos, em perfeita união com Deus, podem transcender a moralidade de deveres, humanos em desenvolvimento ainda se beneficiam da orientação divina. Portanto, longe de destruir a autonomia, a TCD a contextualiza em uma relação de confiança e crescimento moral.  

  

(4) Objeção da Superveniência: Se Deus tem liberdade para comandar ações diferentes em mundos idênticos em suas propriedades naturais, a TCD violaria o princípio de que o moral supervene ao não-moral, pois atos indistinguíveis em aspectos naturais poderiam ter status morais distintos apenas devido a comandos divinos arbitrários 

Resposta: A TCD não viola a superveniência porque, ao comandar um ato, Deus lhe confere propriedades sobrenaturais não-morais (como "ser agradável a Deus" ou "fortalecer a relação com o divino"), que servem de base objetiva para a obrigação moral. Assim, mesmo em mundos com propriedades naturais idênticas, diferenças não-morais (relacionais/sobrenaturais) que justificam a distinção entre atos obrigatórios e não obrigatórios. A liberdade divina não é arbitrária, mas sempre vinculada a propósitos transcendentes que preservam a coerência metafísica da moralidade 

  

(5) Objeção do Mistério: A objeção questiona como exatamente os comandos divinos se relacionam com as obrigações morais na TCD. Se não houver uma explicação clara dessa relação, seja como causalidade, superveniência ou identidade, a TCD seria implausível, pois deixaria a conexão entre Deus e a moralidade como um mistério inexplicável 

Resposta: A objeção da "Relação Misteriosa" questiona como os comandos divinos geram obrigações morais na TCD, sugerindo que, se não pudermos definir precisamente essa relação (como causalidade, superveniência ou identidade), a teoria seria implausível. No entanto, podemos saber que os comandos de Deus fundamentam obrigações morais mesmo sem compreender completamente a natureza metafísica dessa conexão, assim como reconhecemos que leis humanas criam obrigações jurídicas sem exigir uma explicação ontológica completa. A TCD entende que Deus não é um mero "causador" de obrigações, mas uma fonte legítima de normatividade, cujos comandos têm força porque Ele é intrinsecamente bom (pressupondo uma base na lei natural). Além disso, assim como a autoridade política válida difere da coerção bruta, a autoridade divina estabelece obrigações de modo não arbitrário, mesmo que a relação específica entre comandos e deveres permaneça complexa.   
  

(6) Objeção da Promulgação: Se os comandos divinos constituem obrigações morais, eles precisam ser claramente comunicados como vindos de Deus, mas muitas pessoas seguem deveres morais sem reconhecer sua origem divina, o que colocaria em dúvida a validade universal da TCD.  

Resposta: Para a TCD, a promulgação dos comandos divinos não exige reconhecimento explícito de sua fonte, pois Deus pode se revelar de modos indiretos (como pela consciência ou razão), permitindo até a não crentes experimentarem obrigações morais como imperativos objetivos. Além disso, a autoridade dos comandos divinos não depende da crença humana, mas da natureza de Deus como legislador moral legítimo, assim como leis humanas valem mesmo para quem desconhece sua existência. A TCD, portanto, não é invalidada pela diversidade de formas como os seres humanos acessam tais deveres, sejam por , intuição moral ou reflexão racional 

  

V. ALTERNATIVAS À TEORIA DO COMANDO DIVINO  

  

Algumas teorias metaéticas são consideradas como rivais da TCD, no entanto, algumas dessas teorias não são necessariamente incompatíveis com a TCD. Portanto, é importante considerar a relação entre a TCD e outras teorias metaéticas mostrando pontos de compatibilidade e de incompatibilidade. Destacam-se entre essas teorias, a Teoria do Erro, o Expressivismo, o Construtivismo, as Teorias da Sensibilidade, o Naturalismo e o Não-Naturalismo 

Quanto à Teoria do Erro, J. L. Mackie defende que, embora juízos morais assumam a existência de valores morais objetivos, esses valores não existem de tal modo que todos os juízos morais são falsos. Mackie apresenta cinco argumentos a favor da Teoria do Erro e suas respectivas respostas 

  

(1) Argumento da relatividade: Culturas têm moralidades consideravelmente diferentes, se existissem valores morais objetivos, a moralidade não teria tanta variação 

Resposta: Embora existam variações culturais, um consenso moral básico entre sociedades, o que sugere uma base objetiva subjacente. A diversidade moral não invalida a objetividade, assim como erros científicos não negam verdades científicas 

  

(2) Argumento da estranheza: A ideia de fatos ou propriedades morais objetivas implicam a existência de entes estranhos à uma visão científica (naturalista) de mundo 

Resposta: Se Deus é o fundamento da realidade e da bondade, então obrigações morais não são entidades "estranhas", mas parte da estrutura do mundo. É o naturalismo que falha em explicar a existência de deveres 

  

(3) Argumento da superveniência: Não explicação clara de por que e como certas propriedades morais dependem de certas propriedades naturais 

Resposta: A superveniência moral é inteligível se entendida como fruto da vontade divina, que confere valor moral a certos atos naturais. Assim como leis humanas atribuem significados jurídicos a ações físicas, Deus atribui significados morais 

  

(4) Argumento epistemológico: Se valores objetivos existissem, ainda restaria o problema de como poderíamos conhecê-los, que não um "órgão moral" ou método científico para detectá-los 

Resposta: Podemos conhecer valores morais por meio da razão, consciência e revelação, faculdades dadas por Deus. Não é necessário um "órgão moral" específico, assim como não um órgão exclusivo para a física 

  

(5) Argumento da simplicidade: conseguimos explicar por que as pessoas têm crenças morais sem pressupor a existência de valores morais objetivas e, visto que devemos preferir explicações mais simples sem postular entidades explicativas desnecessárias, podemos concluir que valores morais objetivos não existem 

Resposta: Explicações naturalistas descrevem crenças, mas não justificam a força normativa do dever moral. A existência de Deus fornece a base para essa normatividade, algo que causas naturais não conseguem explicar 

  

A Teoria do Erro pode ser entendida como uma teoria que seria razoável, se Deus não existisse. No entanto, assumindo a TCD, a Teoria do Erro perde força. Outra teoria em metaética comumente vista como rival da TCD é o Expressivismo. O Expressivismo é uma teoria metaética que nega que juízos morais sejam proposições com valor de verdade objetivo. Em vez disso, entende-se que quando alguém faz uma afirmação moral, como “é errado mentir”, está expressando emoções (como no emotivismo de Ayer), atitudes (Stevenson), prescrições (Hare), ou compromissos práticos (Gibbard). Simon Blackburn, com seuquase-realismo”, tenta explicar por que usamos a linguagem moral como se lidássemos com verdades objetivas, mesmo que estejamos apenas projetando estados subjetivos sobre o mundo 

Apesar de o expressivismo oferecer uma explicação convincente para o caráter motivador da moralidade, ele enfrenta críticas importantes. Uma delas, apresentada por Peter Geach, questiona como sentenças morais podem figurar em argumentos lógicos válidos se não possuem valor de verdade. Argumentos morais frequentemente envolvem inferências que parecem depender da verdade das proposições envolvidas, o que parece incompatível com a ideia de que elas seriam apenas expressões subjetivas sem conteúdo proposicional 

Para contornar essas críticas, versões mais sofisticadas do expressivismo, como o quase-realismo, buscam mostrar que é possível manter a aparência de objetividade sem assumir uma realidade moral objetiva. No entanto, isso levanta um novo problema: se compreendemos que os juízos morais são apenas projeções, como continuar atribuindo a eles autoridade real? Assim como alguém que descobre que obrigações legais são construções sociais pode perder sua crença ingênua no direito, o expressivista pode acabar minando sua própria confiança no valor vinculante dos juízos morais 

O Construtivismo, por sua vez, é uma posição metaética que busca um caminho intermediário entre o realismo moral e o expressivismo. Assim como os realistas, os construtivistas defendem que os juízos morais podem ser verdadeiros ou falsos e possuem uma forma de objetividade; no entanto, afirmam que essa objetividade deriva de práticas humanas, não de fatos morais independentes. Ou seja, os valores morais são construídos, não descobertos 

Essa abordagem compartilha com o expressivismo a ideia de que a moralidade é uma criação humana, mas discorda quanto à natureza dos juízos morais, tratando-os como cognitivamente significativos. Diferentes formas de construtivismo explicam essa construção de maneiras variadas: algumas fundamentam a moralidade em acordos sociais ou contratos, enquanto outra, de inspiração kantiana, entende a moral como produto da razão autônoma do sujeito 

Uma versão do Construtivismo é a proposta de Gilbert Harman de uma teoria moral contratualista relativista que representa uma tentativa de conciliar o ceticismo moral com algum grau de objetividade nas normas éticas. Partindo de um compromisso com o naturalismo metafísico, tese de que tudo que existe faz parte do mundo natural, Harman rejeita o realismo moral tradicional, segundo o qual valores morais seriam entidades objetivamente existentes no mundo, e considera improvável a possibilidade de uma redução naturalista das proposições morais a fatos não morais. Diante disso, propõe que a moralidade seja entendida como uma construção humana derivada de acordos sociais, sendo, portanto, relativa a contextos específicos e à aceitação individual.  

Segundo Harman, os indivíduos se vinculam a certas obrigações morais ao aceitarem, conscientemente ou não, um conjunto de regras que formam o acordo moral” de seu grupo. Esta aceitação é vista, não como um compromisso verbal explícito, mas como uma intenção de agir conforme essas normas, sob a condição de que os outros façam o mesmo. Assim, a motivação moral derivaria do próprio ato intencional de participar de um sistema normativo compartilhado. No entanto, Harman enfatiza que essa adesão é sempre revogável: o indivíduo pode optar por abandonar um conjunto de normas se estas não mais lhe servirem ou ameaçarem seu interesse próprio. No entanto, a visão de Harman apresenta as seguintes objeções 

  

(1) Objeção da Autoridade Frágil da Moralidade: Se as obrigações morais dependem da vontade individual, então a própria pessoa pode revogar essa obrigação quando deixar de ser conveniente. Isso mina o sentido da obrigação moral como algo que nos obriga mesmo quando não queremos obedecer 

  

(2) Objeção do Aproveitador: Se alguém pode se beneficiar do comportamento moral dos outros sem seguir as regras, por que não agir assim? Harman tenta responder que o acordo moral é uma intenção mútua de cooperação, mas isso não resolve o problema de pessoas que quebram a regra quando acham que não serão descobertas 

  

(3) Objeção da Falta de Universalidade: Como as obrigações valem dentro do grupo com o qual se tem acordo, não motivo para pensar que temos obrigações morais com todos os seres humanos. Isso exclui, por exemplo, pessoas com deficiências graves, ou até mesmo os pobres, estrangeiros, idosos senis etc., que não têm como "retribuir" o comportamento moral.   

 

Em contraposição à proposta relativista de Harman, teóricos como Ronald Milo e David Gauthier buscaram reformular o contratualismo em termos mais universalizantes. Milo, por exemplo, propõe um “contratualismo construtivista, no qual verdades morais seriam aquelas que seriam escolhidas por agentes racionais sob condições ideais. Gauthier, por sua vez, tenta resolver dilemas de cooperação (como o dilema do prisioneiro) por meio de contratos morais mutuamente vantajosos. Contudo, ambas as propostas enfrentam dificuldades quanto à autoridade normativa: por que deveríamos obedecer a decisões tomadas por agentes idealizados ou hipotéticos, especialmente se suas concepções de bem divergirem das nossas 

Uma forma de construtivismo moral contemporâneo inspirado em Kant foi formulada de Christine Korsgaard, que representa uma tentativa sofisticada de fundamentar a normatividade moral a partir da racionalidade prática humana. Korsgaard procura responder a críticas clássicas dirigidas à formalidade excessiva do imperativo categórico kantiano, sem recorrer a uma metafísica moral realista. De início, vale ressaltar que a compreensão popular de Kant como um autor diametralmente oposto a qualquer forma de teoria divina da moralidade pode ser equivocada. O próprio Kant afirma que a moralidade pode ser compreendida como expressão da vontade divina, e que os seres humanos, ao agirem moralmente, tornam-se cidadãos de um Reino dos Fins cujo soberano é Deus.   

A proposta de Korsgaard, por sua vez, consiste em deslocar o foco da normatividade moral para a capacidade de auto-legislação racional. Para ela, o imperativo categórico, embora essencial, é apenas uma condição formal da moralidade. O conteúdo moral das máximas deve, em última instância, estar ancorado na identidade prática do agente: o que alguém considera como sua obrigação moral decorre de sua concepção de si mesmo. Esta ideia introduz um elemento psicológico relevante, mas problemático: diferentes pessoas concebem sua identidade de modos muito distintos, o que parece ameaçar a universalidade da moralidade 

Para evitar esse relativismo, Korsgaard argumenta que toda identidade prática racional deve conter, como fundamento, a identidade moral do ser humano enquanto tal. Assim, a obrigação moral fundamental decorre do reconhecimento do valor intrínseco de cada ser humano. Esta versão da moralidade kantiana pode ser compatibilizada com a TCD que reconhece que os seres humanos são criados à imagem de Deus, como ensinam as tradições judaico-cristãs. No entanto, o Construtivismo de Korsgaard enfrenta duas objeções 

  

(1) Objeção do Realismo Disfarçado: Embora Korsgaard diga que está construindo a moralidade a partir da razão prática e da identidade do agente, na verdade ela está assumindo que seres humanos têm um valor intrínseco objetivo, o que é uma tese realista, não construtivista. Isso a aproxima mais de uma teoria de lei natural do que de um construtivismo puro.  

  

(2) Objeção da Identidade Pessoal: Basear a obrigação moral apenas na identidade pessoal é problemático, visto que a identidade pessoal é psicologicamente instável e varia muito. Isso permite que alguém construa uma identidade racista, sexista ou nacionalista e sem uma referência objetiva (como Deus ou a natureza humana), não como dizer que essas identidades sãoerradas” de fato, apenasinadequadasem termos de coerência interna.  

  

Outro grupo de concepções diz respeito às Teorias da Sensibilidade baseiam a moralidade nas respostas afetivas (emocionais) humanas a certas propriedades, que são então consideradas "morais". Ela pode ser desenvolvida de duas formas: (i) Teoria Conceitual: Os conceitos morais são "dependentes de resposta", ou seja, seu significado inclui referência às emoções que certas ações evocam (ex.: "errado" se refere a ações que tendem a causar culpa ou vergonha); (ii) Teoria Ontológica: As propriedades morais são como "propriedades secundárias" (ex.: cores), que existem como um poder de causar certas sensações em nós (ex.: a "erradicidade" é uma propriedade que nos leva a sentir reprovação). O objetivo dessas teorias consiste em equilibrar objetividade (as propriedades morais são reais) e motivação (a moralidade está ligada às emoções humanas). 

As Teorias da Sensibilidade não entram em conflito com a TCD, no que diz respeito à Teoria Conceitual, se os conceitos morais dependem de respostas emocionais, isso não contradiz a TCD. Por exemplo, os comandos de Deus podem ser percebidos por meio de emoções (como a consciência). Por outro lado, quanto à Teoria Ontológica, se as propriedades morais e as sensibilidades humanas foram "feitas uma para a outra" (como diz David Wiggins), isso se encaixa bem no teísmo, onde Deus projetou os humanos para perceber a moralidade. 

No entanto, algumas formas de Teorias da Sensibilidade, como o projetivismo de Simon Blackburn, estão comprometidos com o naturalismo metafísico, a tese de que tudo que existe faz parte do mundo natural. Essas teorias enfrentam três problemas: (i) problema evolutivo: se o naturalismo for verdadeiro, é difícil explicar por que os humanos evoluíram sensibilidades que captam propriedades morais objetivas; (ii) problema da objetividade: pessoas podem sentir culpa por coisas que não são erradas (e vice-versa), as emoções são falíveis, mas a moralidade deveria ser independente delas; (iii) falta de normatividade: uma teoria naturalista não explica por que certas emoções (como culpa) são respostas adequadas ao erro moral (em vez de apenas fatos psicológicos). 

O Naturalismo ético, por sua vez, defende duas teses: (i) os juízos éticos são objetivamente verdadeiros ou falsas; (ii) podemos conhecer verdades éticas por meio do estudo dos fatos naturais (biológicos, psicológicos, sociais), sem recorrer a explicações sobrenaturais. O naturalismo ético é como uma versão secular da teoria da lei natural, que tradicionalmente associa valores morais à natureza humana. O naturalismo ético não é incompatível com a TCD, pois a TCD lida principalmente com obrigações morais (o que devemos fazer), enquanto o naturalismo ético lida com o bem humano (o que é bom ou em que consiste a vida boa). É possível aceitar que o "bem" é natural (ex.: saúde, amizade) e ainda crer que os "deveres" vêm de Deus.     

    Por fim, uma última perspectiva a ser considerada é o Não-naturalismo ético. O não-naturalismo ético assume duas teses: (i) juízos morais expressam crenças verdadeiras ou falsas, mas não se referem a propriedades naturais (como fatos biológicos ou físicos); (ii) as propriedades morais são reais, mas não científicas, pertencendo a um a um domínio metafísico distinto dos entes naturais. Não há conflito entre o não-naturalismo ético e a TCD, pois a TCD oferece uma explicação para verdades morais necessárias que, de outra forma, pareceriam "brutas" ou "estranhas". Desse modo, pode haver uma sinergia entre a TCD e o não-naturalismo ético de tal forma que as duas teorias podem trabalhar juntas, com o não-naturalismo definindo o bem e a TCD definindo o dever. 


 

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Bruno dos Santos Queiroz

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