PESSOAS MISCIGENADAS (PARDAS) E ANTIRRACISMO: APONTAMENTOS

 

Aproveitando que estamos no mês da consciência negra, decidi escrever este texto para pensar a questão do antirracismo em relação a pessoas pardas ou miscigenadas. Eu me considero uma pessoa parda, isso significa, entre outras coisas, que tenho fenotipicamente uma mistura de características. Tenho a pele mais clara, mas, por outro lado, meu cabelo, nariz e feições são característicos de uma pessoa negra. Mas não me importo tanto aqui em reivindicar meu lugar enquanto pessoa parda (e a legitimidade da minha autodeclaração não é muito relevante para o que pretendo pensar aqui). Estou aqui apenas para levantar questionamentos e produzir reflexões. Já digo, desde o princípio, que não pretendo dizer algo definitivo, não pretendo trazer uma posição fechada, minha intenção limita-se apenas a questionar sobre algo que me incomoda. 

A ideia para este artigo surgiu após várias pessoas pretas terem me chamado de "branco mestiço" que não tem direito de se considerar negro, que não pode reivindicar um lugar de alguém que sofre racismo e que precisa reconhecer-se num lugar de privilégio de pessoa branca. Talvez estejam certos, talvez não, não sei. Claro que não posso ignorar o fato de algumas pessoas pretas não me reconhecerem como negro, assim como também não posso ignorar que outras pessoas pretas já me reconhecem como negro. Isso me deixa um tanto perdido. Talvez esse seja o lugar difícil do “mestiço”, nem preto, nem branco, mas uma mistura. Daqui que a meu ver, nós, pardos, nos encontramos numa espécie de não-lugar. E é por não ter claro esse lugar, que não usufruímos dos mesmos privilégios do que os “brancos puros” ao mesmo tempo que, muitas vezes, não somos considerados sujeitos pelos quais o movimento negro luta (de forma talvez até legítima). 

(Farei um pequeno parêntesis sobre minha atual autodeclaração como pardo. Acredito que preciso conversar com mais pessoas pretas, ver como me classificam e a partir disso pensar e repensar minha autodeclaração como pardo. Talvez minha autodeclaração esteja correta, talvez não, não sei. Há pessoas pretas não me reconhecerem como negro, assim como também há pessoas pretas que me consideram negro. Isso me deixa um tanto perdido. Mas claro que não manterei minha autodeclaração como pardo se outras pessoas não me reconhecerem assim. Aceito o processo de ouvir mais pessoas, pesquisar mais e rever minha autodeclaração como pardo, se for o caso.)

Para tentar apresentar meu ponto quero considerar algumas coisas: (i) que ser negro vai para além do tom de pele; (iique o sujeito negro é uma construção social, e não um dado fenotípico puro; (iiique pardos (miscigenados) também possuem uma herança de opressão;  (iv) que o antirracismo que exclui da luta as pessoas pardas, é um antirracismo incompleto e seletivo. Todas essas quatro proposições às quais pretendo considerar não são posições definitivas, são apenas apontamentos questionadores. Este artigo mescla um pouco de desabafo, descontentamento e crítica. Pode ser polêmico, posso estar errado por ser leigo sobre o assunto, mas é importante falar sobre. 

 

I. SER NEGRO VAI PARA ALÉM DO TOM DE PELE 

 

Eu irei fazer uma distinção didática. Chamarei de negro qualquer pessoa que seja preta ou parda. Isso inclui, pois, pretos e pessoas que misturam características fenotípicas brancas e pretas. Por preto, por outro lado, estou pensando apenas em pessoas digamos, “completamente” pretas (perdão pela expressão um tanto inadequada), ou com pouca ou nenhuma característica branca. Isso é só uma distinção didática para facilitar o desenvolvimento desta reflexão, e não categorias rígidas ou técnicas. 

Vou me concentrar um pouco mais na definição de pardo. Ser pardo nada mais é do que ser miscigenado. Miscigenado é um termo bem amplo, porque um europeu mais um asiático formam uma miscigenação. Mas mais especificamente estou entendendo pardo como a miscigenação entre brancos e pretos; brancos e indígenas; indígenas e pretos ou; indígenas, pretos e brancos. É assim que defino "pardo", pardo não é cor de pele, pardo é um caráter de miscigenação entre brancos, pretos e/ou indígenas. 

A imagem a seguir mostra duas pessoas com praticamente o mesmo tom de pele, um tom claro, mas que uma é branca e a outra é negra: 



Logo, é para mim um ponto importante considerar que a cor da pele não é suficiente para definir se alguém é negro ou branco. A imagem mostra que duas pessoas podem ter o mesmo tom de pele, mas uma claramente é negra e a outra branca. Mas aqui é preciso novamente que eu reconheça e que considere que pessoas negras não sofrem racismo de forma igual. Pessoas pretas certamente sofrem mais com o racismo do que pessoas pardas. 

Ao incluir pretos e pardos na categoria negro, de modo algum quero dizer que eles ocupam o mesmo lugar de opressão, no sentido em que sofreriam do racismo na mesma intensidade. Devo dizer que jamais, de forma alguma, eu me vejo no mesmo lugar de opressão que um preto, meu lugar é de pardo, só isso. Eu não sofro as mesmas opressões que pessoas pretas, não estou no mesmo lugar de discriminação, não sou vítima de racismo no mesmo nível que elas. E, neste ponto, não posso reivindicar um lugar que não é meu. E jamais de forma alguma reivindicarei esse lugar.  

Por outro lado, não é verdade que mestiços ocupam o mesmo lugar social que os “completamente” brancos. É aqui que entendo que o antirracismo precisa levar em conta também as pessoas miscigenadas, não para equiparar a opressão que sofrem à dos pretos, mas para reconhecer que elas estão em uma posição desigual em relação aos “completamente” brancos. Pode ser que formas de racismo que sofri sejam menos visíveis, sempre criticaram meu cabelo crespo, nasci numa família relativamente pobre e isso me diferencia de um branco com seu cabelo liso e seu lugar social de privilégio assegurado. É verdade que o racismo como eu o sofro é em menor intensidade do que de uma pessoa preta, mas não me parece verdade dizer que nunca sofri racismo algum. 

Até mesmo se eu usarmos o termo “branco mestiço” para se referir a pessoas pardas com pele mais clara, isso não muda o ponto de que "brancos mestiços" não possuem os mesmos privilégios do que completamente “brancos” (embora eu ache o termo branco mestiço preconceituoso e inadequado). Agora, jamais vou dizer que pardos ou "brancos mestiços" sofrem a mesma opressão que pretos. As pessoas pretas sofrem com o racismo em níveis que eu jamais sofri nem posso imaginar. E se eu reivindicasse sofrer do mesmo racismo que elas, eu estaria invalidando o que os pretos sofrem, e eu seria um mau-caráter se fizesse isso. Por outro lado, se eu me reconhecesse como pessoa branca privilegiada, estaria mentindo e fechando os olhos para uma desigualdade social real. 

 

II. O SUJEITO NEGRO É UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL 

 

É importante dizer que qualquer segmentação da sociedade em categorias indenitárias é uma construção discursiva. Nós, enquanto dados puros, não somos nada, é a metafísica de substância que nos faz olhar para pessoas em termos indenitários. Isso significa que categorias indenitárias, como “homem”, “mulher”, “negro”, “branco”, “homossexual”, “heterossexual”, etc. são socialmente construídas. Essa construção se dá por meio de um efeito de substantivação do ente humano. O ente humano, por si mesmo, não é nada, não tem gênero, não tem cor, não tem sexo, não tem etnia, nem orientação sexual. Todos esses existenciários que caracterizam o humano são construções discursivas, ainda que fundamentadas em características anatômicas ou fenotípicas. 

O sujeito "negro", assim como o “branco”, é uma construção moderna, engendrada no seio das relações de produção do capitalismo mercantilista, a fim de estabelecer uma relação de assimetria entre dois povos. Que se segmente a sociedade em termos de cor da pele, isso é um fenômeno contingente. Poderíamos imaginar uma situação hipotética na qual pessoas com lóbulo da orelha solto tivessem escravizado pessoas com lóbulo da orelha grudado, e isso poderia então criar duas categorias, uma classe dominante formada por pessoas com lóbulo da orelha solto e outra oprimida formada por pessoas de lóbulo da orelha grudado. Percebam que a característica fenotípica (tipo de lóbulo da orelha) só pode ser convertida em uma categorização de pessoas graças a um fenômeno social. Em si e por si mesma, a característica fenotípica não é suficiente para criar categorias substantivas de identidade. 

O mesmo, pois, deve ser dito sobre as características fenotípicas da cor da pele. Embora elas sejam tomadas como elementos de diferenciação entre negros e brancos, é a relação social de opressão e colonialismo, que cria a segmentação das pessoas em negros e brancos. Quero dizer que ser negro é uma construção social, não é um dado fenotípico puro. Nesse sentido, entendo que a categoria “negro” não é um dado fenotípico puro e inquestionável, mas uma construção social, engendrada no seio de um discurso de dominação. A construção social da categoria do sujeito negro se constituiu vinculada a objetivos de colonização e exclusão. A crítica antirracista, penso eu, precisa considerar como a categoria do negro é construída dentro das estruturas de poder. Ela não é nem natural, nem inquestionável.  

No entanto, pode ser que pessoas pretas não se sintam à vontade em serem unidas numa mesma categoria com pessoas pardas ou miscigenadas. Se esse é o caso, então precisamos ao menos enfatizar uma terceira categoria, que seria o das pessoas pardas. E, na medida em que o antirracismo luta para corrigir a desigualdade social entre brancos e pretos, precisa-se pensar no lugar (ou não-lugar) que os pardos ocupam nessa correção. Será que podemos criar maior simetria e igualdade entre brancos e pretos, sem levar em conta o lugar dos miscigenados?  

Meu ponto é: será possível uma luta antirracista que não seja seletiva, mas que inclua a todes que não se encaixam no padrão da branquitude, incluindo não só os pretos, mas também os miscigenados, mas que ao mesmo tempo entenda os graus diferentes de racismo sofridos por esses subgrupos? Pensemos, por exemplo, no feminismo radical e na categoria mulher. A situação é bem semelhante, a segmentação da humanidade em homens e mulheres surge a partir de uma relação de opressão, ainda que a naturalizemos como dado anatômico. Iludido pela naturalização dessa segmentação, o feminismo por bom tempo definiu o sujeito “mulher” como aquela que possui útero e vagina. Mas a necessidade de pensar o lugar da mulher trans, fez com que o feminismo mais contemporâneo, ampliasse a categoria do feminino.  

Não é a mesma coisa. Mas, se pensarmos que o feminismo radical já usou a categoria do sujeito “mulher” pra excluir da luta mulheres trans, precisamos ser cautelosos com qualquer categoria social. A categoria “negro”, assim como a categoria “mulher”, surgiu para segregar e excluir, por isso, seu uso nunca deixa de carregar as marcas da opressão. Destarte, se não questionamos a categoria negro, ela permanecerá operando na lógica da dominação. Seu uso é útil enquanto houver desigualdade étnica que precise ser corrigida. Mas numa sociedade igualitária, não há mais necessidade dessas categorias. Isto é, usamos a categoria negro para que ela seja abolida um dia. E devemos revê-la, ampliá-la ou reconsiderá-la sempre nesse processo pelo qual ela deve caminhar para sua própria abolição. Ela terá de ser abolida assim como sua categoria oposta, o branco. Superada com a próprio superação do sistema de opressão capitalista que a criou. 

Fiz a comparação entre o transfeminismo e o antirracismo voltado a pessoas pardas, mas fiz questão de ressaltas que não se trata da mesma coisa. Eu falo que não é a mesma coisa porque mulheres trans sofrem mais opressão do que as cis, já os pardos sofrem menos com o racismo do que os pretos. Mas o ponto em comum é ampliar a categoria para que todes que são excluídos do padrão vigente, possam ser incluídos na luta contra a opressão social. Assim, o que proponho é que a luta antirracista possa incluir a todes que não se encaixam no padrão da branquitude, incluindo não só os pretos, mas também os miscigenados, os indígenas, etc. 

 

III. MISCIGENADOS TAMBÉM POSSUEM UMA HISTÓRIA DE OPRESSÃO 

 

Assim como os pretos sofreram com a escravidão, os pardos também herdam desigualdades oriundas desse tempo. É verdade, novamente, que pardos não sofrem os efeitos da escravidão no mesmo nível que os pretos, mas isso não significa que não sofram em algum grau. Nos questionemos: como, por assim dizer, surgiram as pessoas pardas? Podemos traçar esta origem nos estupros dos senhores brancos em relação às mulheres escravas pretas. Se a miscigenação encontra suas raízes nessa relação de violação de mulheres pretas por brancos, não será de se reconhecer o óbvio: que pessoas miscigenadas também recebem a herança de um histórico de opressão? 

Se historicamente homens brancos estupraram suas escravas pretas, então esse dado histórico não pode ser ignorado sobre como se constituiu a miscigenação brasileira. Têm-se de pensar também em como as pessoas miscigenadas surgem a partir de ações de embranquecimento da população brasileira. Dos estupros de escravas negras por senhores brancos, nasceram filhos de pele clara, mas com características negras. Claro que pessoas assim não vão ocupar o mesmo lugar social de privilégio que pessoas brancas. Pode ser até que ocupem um lugar melhor do que os pretos, mas tais pessoas que hoje chamamos de pardas e que antes chamávamos de mulatos, não vão ter a mesma condição social do que uma pessoa branca.  

 

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS: ANTIRRACISMO SELETIVO  

 

É verdade que o antirracismo tem de ser seletivo em algum sentido, não pode incluir, por exemplo, pessoas brancas, assim como o feminismo não deve incluir homens. Mas assim como o conceito “mulher” pode ser questionado e ampliado, por exemplo, para incluir mulheres trans, penso eu, que o conceito “negro” pode ser ampliado para incluir pessoas pretas e pardas. É no sentido de selecionar como negros apenas os pretos, excluindo os miscigenados, que falo de antirracismo seletivo 

Antirracismo, a meu ver, não é só sobre como pessoas pretas sofrem com a discriminação. Mas também sobre como pessoas miscigenadas, como as mulheres antes chamadas mulatas e as pessoas que hoje são chamadas pardas, não ocupam o mesmo lugar que “completamente” brancos. Repito que não estou reivindicando aos miscigenados o mesmo lugar que pessoas pretas, não estou dizendo que sofrem o racismo no mesmo grau que elas. Num mesmo grupo social pessoas enfrentam opressões em graus diferentes. Mas, me parece que, se o antirracismo não luta também por pessoas ditas miscigenadas, então ele é um antirracismo seletivo.  

Posso resumir, pois, dizendo que que o que apresento aqui consiste na defesa da posição de que pessoas pardas não têm o lugar de privilégio dos brancos, que definir alguém como negro vai para além do tom de pele, que embora pessoas pardas não sofram racismo no mesmo grau que pessoas pretas, não quer dizer que elas não sofram racismo algum, não quer dizer que elas não carreguem a herança do estupro de mulheres negras pelos brancos, por exemplo.  

Sei que alguém se definir pardo é algo um tanto vago, até porque esse é um não-lugar. Não conheço uma régua que permita medir de maneira exata até que ponto uma pessoa mestiça é mais branca ou mais preta. Mas é claro que quanto mais preta, mais racismo sofrerá. Esse não-lugar do pardo, também, pode abrir espaço para muitos afroconvenientes (brancos que se declaram negros por conveniência, como para fraudar cotas), em alguns casos pode ser fácil identificar um branco se passando por negro, em outros casos o limite entre branco e pardo poderá ser muito difícil de definir. Isso levanta muitas questões: Será que em todo caso será claro dizer se uma pessoa é branca ou parda? É evidente que não. Quem deve definir o critério? Quais devem ser os limites para uma pessoa miscigenada se considerar parda? Existem “brancos miscigenados”, ou todo miscigenado é pardo? São perguntas que eu não sei responder. 

Devo terminar este artigo, portanto, dizendo que fiz apenas apontamentos críticos., que são mais questionamentos do que respostas. A questão é complexa e difícil e posso estar completamente errado em tudo que escrevi aqui. Que precisamos debater mais, discutir mais e dialogar mais, isso me parece evidente. Mas uma coisa espero que eu e todos os leitores deste texto estejamos unidos em uma causa comum: a luta contra o racismo. Vidas negras importam e não teremos uma sociedade realmente livre e igualitária enquanto o racismo não for superado. 


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