RELIGIÃO E CIÊNCIA - CHARLES TALIAFERRO (TRADUÇÃO)
A relação entre religião e ciência tem sido um tópico importante na filosofia da religião do século XX e parece de grande importância hoje.
Iniciaremos este texto considerando a declaração da National Academy of Sciences e do Institute of Medicine (atual National Academy of Medicine) sobre a relação entre ciência e religião:
Ciência e religião estão baseadas em diferentes aspectos da experiência humana. Na ciência, as explicações devem ser baseadas em evidências extraídas do exame do mundo natural. Observações ou experimentos cientificamente baseados em conflito com uma explicação acabam levando à modificação ou mesmo ao abandono dessa explicação. A fé religiosa, ao contrário, não depende apenas de evidências empíricas, não é necessariamente modificada em face de evidências conflitantes e normalmente envolve forças ou entidades sobrenaturais. Por não fazerem parte da natureza, as entidades sobrenaturais não podem ser investigadas pela ciência. Nesse sentido, ciência e religião são separadas e abordam aspectos do entendimento humano de diferentes maneiras. Tentativas de confrontar ciência e religião criam controvérsias onde nenhuma delas precisa existir. (NASIM 2008: 12)
Essa visão da ciência e da religião parece promissora em muitas frentes. Se a declaração acima sobre ciência e religião for aceita, então ela parece garantir que há um conflito mínimo entre dois domínios dinâmicos, ao que a NASIM chama de "experiência humana". A NASIM parece estar correta ao sugerir que os elementos-chave de muitas religiões não admitem investigações científicas diretas nem se baseiam "apenas em evidências empíricas". Nem Deus (no judaísmo e no cristianismo), nem Alá (no islamismo), nem Brâman (no hinduísmo) são objetos ou processos físicos ou materiais. Parece, então, que o divino ou o sagrado e muitos outros elementos nas religiões do mundo (meditação, oração, pecado e perdão, libertação dos desejos) só podem ser indiretamente investigados cientificamente. Assim, um neurologista pode produzir estudos detalhados dos cérebros de monges e monjas enquanto oram e meditam, e pode haver estudos comparativos da saúde daqueles que praticam uma religião e daqueles que não praticam, mas é muito difícil conceber como medir cientificamente Deus, Alá, Brâman, Tao, o paraíso e assim por diante. Apesar da plausibilidade inicial da posição da NASIM, no entanto, isso pode ser problemático.
Em primeiro lugar, um ponto crítico menor (e controverso) em resposta a NASIM seria: A declaração faz uso dos termos "forças ou entidades sobrenaturais" que "não fazem parte da natureza". O termo "sobrenatural" não é o termo padrão usado para se referir apenas a Deus ou ao divino, provavelmente (em parte), porque em português o termo "sobrenatural" refere-se não apenas a Deus ou ao divino, mas também a psicocinesia, a fantasmas, a demônios, bruxas, médiuns, oráculos e assim por diante. Os últimos são uma coleção do que é comumente considerado superstição absurda. (A semelhança dos termos sobrenatural e supersticioso pode não ser um acidente.) O termo filosófico padrão para referenciar Deus na língua portuguesa é "teísmo"" (do grego theos para deus / Deus). Portanto, ao invés de a declaração se referir a "forças ou entidades sobrenaturais", uma frase mais caridosa pode se referir a quantas religiões do mundo são teístas ou envolvem alguma realidade sagrada que não é direta e empiricamente mensurável.
Indo além desse ponto menor sobre terminologia, as crenças religiosas tradicionalmente e hoje são vistas como sujeitas a evidências. As evidências de crenças religiosas incluem apelo à contingência do cosmos e aos princípios da explicação, à natureza ostensivamente intencional do cosmos, ao surgimento da consciência e assim por diante. As evidências contra a crença religiosa incluíram apelo à quantidade evidente de mal no cosmos, ao sucesso das ciências naturais e assim por diante.
Uma razão, no entanto, para apoiar a noção da NASIM de que religião e ciência não se sobrepõem é o fato de que na ciência moderna houve uma suspensão de questões referentes à mente e ao mental. Isto é, as ciências têm se preocupado com um mundo físico independente da mente, enquanto na religião há principalmente um domínio preocupado com a mente (sentimentos, emoções, pensamentos, ideias etc.), mentes criadas e (no caso de algumas religiões) a mente de Deus. A ciência de Kepler, Copérnico, Galileu e Newton apresentava-se com um estudo explícito do mundo, sem apelo a nada que envolvesse o que hoje seria chamado de psicológico ou mental. Portanto, as leis do movimento de Newton sobre a atração e repulsão de objetos materiais não fazem menção de como o amor, o desejo ou a necessidade emocional podem ser necessários para explicar o movimento de dois corpos materiais em abraçarem-se romanticamente. A suspensão da questão da mente nas ciências físicas não era um sinal dos primeiros cientistas que tinham dúvidas sobre a existência, poder e importância das mentes. Ou seja, de Kepler a Newton e até o início do século XX, os próprios cientistas não duvidavam do significado causal das mentes; eles simplesmente não incluíam mentes (próprias ou mentes de outros) entre os dados do que estavam estudando. Mas, curiosamente, cada um dos primeiros cientistas modernos acreditava que o que estavam estudando era, de alguma maneira, possibilitado pelo mundo inteiro (terrestre e celestial) sendo criado e sustentado na existência por uma Mente Divina, um sumo bem, o Criador necessariamente existente. Eles tinham uma cosmovisão geral ou abrangente, segundo a qual a própria ciência era razoável e fazia sentido. Os cientistas precisam ter um tipo de fé ou confiança em seus métodos e que o cosmos seja ordenado de forma que seus métodos sejam eficazes e confiáveis. Os primeiros cientistas modernos pensavam que tal fé (no que Einstein se refere como "a racionalidade e inteligibilidade do mundo" (Cain 2015: 42, citando uma declaração de 1929 em Einstein 1954 [1973: 262]) era razoável por causa de sua crença na existência de Deus (Caim 2015).
Contrastaremos, agora, brevemente duas visões muito diferentes sobre se a ciência contemporânea minou ou não a crença religiosa.
De acordo com Steven Pinker, a ciência mostrou que as crenças de muitas religiões são falsas.
Para começar, as descobertas da ciência implicam que os sistemas de crenças de todas as religiões e culturas tradicionais do mundo - suas teorias sobre as origens da vida, sobre os seres humanos e sobre as sociedades - estão factualmente equivocadas. Sabemos, diferente de nossos ancestrais, que os seres humanos pertencem a uma única espécie de primata africano que desenvolveu agricultura, governo e escrita no final de sua história. Sabemos que nossa espécie é um galho minúsculo de uma árvore genealógica que abraça todos os seres vivos e que emergiu a partir de produtos químicos pré-bióticos há quase quatro bilhões de anos atrás…. Sabemos que as leis que governam o mundo físico (incluindo acidentes, doenças e outros infortúnios) não tem objetivos que dizem respeito ao bem-estar humano. Não existe destino, providência, carma, feitiços, maldições, augúrios, retribuição divina ou oração respondida - embora a discrepância entre as leis da probabilidade e o funcionamento da cognição possa explicar por que as pessoas pensam que existe. (Pinker 2013)
Seguindo Pinker, deve-se notar que hoje não seria cientificamente aceitável apelar a milagres ou para atos de Deus. Qualquer suposto milagre (para muitos, se não todos os cientistas) seria uma espécie de derrota e acolheria um mistério inaceitável. É por isso que alguns filósofos da ciência propõem que as ciências são metodologicamente ateístas. Isto é, enquanto a própria ciência não julga se Deus existe (embora alguns filósofos da ciência julguem), apelar para a existência de Deus não faz parte de suas teorias e investigações científicas.
Há alguma razão para pensar que a posição de Pinker possa ser exagerada, de qualquer modo, há alguma razão para pensar que seria mais justo caracterizar as ciências como metodologicamente agnósticas (simplesmente não tendo uma visão sobre se Deus existe ou não) ao invés de ateísta (considerando uma posição sobre o assunto). Primeiro, os exemplos de Pinker de que a ciência mostrou estar errada não parecem ser substanciais. Como Michael Ruse aponta:
Os argumentos apresentados para sugerir que a ciência precisa de ateísmo não são convincentes. Não há dúvida de que muitas das reivindicações da religião não são mais sustentáveis à luz da ciência moderna. Adão e Eva, o dilúvio de Noé, o sol parando para Josué, Jonas e a baleia e muitas outras. Mas os cristãos mais sofisticados já sabem disso. O fato é que essas coisas não são tudo o que há para as religiões, e muitos diriam que estão longe das reivindicações centrais da religião - Deus existindo e sendo criador e tendo um lugar especial para os seres humanos e assim por diante. (Ruse 2014: 74–75)
Ruse prossegue observando que as religiões abordam preocupações importantes que vão além do que é acessível apenas do ponto de vista das ciências naturais:
Por que existe algo ao invés de nada? Qual é o propósito de tudo isso? E (de maneira um pouco mais controversa) quais são os fundamentos básicos da moralidade e o que é senciência? A ciência toma o mundo como dado. A ciência não vê um objetivo final para a realidade ... Eu diria que, como a ciência não fala sobre essas questões, não vejo razão para a pessoa religiosa não oferecer respostas. Elas não podem ser respostas científicas. Elas devem ser respostas religiosas - respostas que envolverão um Deus ou deuses. Existe algo ao invés de nada porque um Deus bom amorosamente criou as coisas do nada. O objetivo de tudo isso é encontrar a felicidade eterna com o Criador. A moralidade é uma função da vontade de Deus; consiste em fazer o que Ele quer que façamos. Senciência é o meio pelo qual percebemos que somos feitos à imagem de Deus. Nós, humanos, não somos nenhum tipo antigo de organismo. Isso não significa que as respostas religiosas estejam além da crítica, mas devem ser respondidas com base filosófica ou teológica e não simplesmente porque não são científicas. (Ruse, 2014: 76)
O debate sobre religião e ciência está em andamento (para um trabalho promisso sobre, confira: Stenmark 2001, 2004).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cain, Clifford Chalmers, 2015, “Cosmic Origins and Genesis: A Religious Response”, in Re-Vision: A New Look at the Relationship between Science and Religion, Clifford Chalmers Cain (ed.), Lanham, MD: University Press of America, 35–44.
Einstein, Albert, 1954, Ideas and Opinions, New York: Crown Publishers; reprinted London: Souvenir Press, 1973.
[NASIM] National Academy of Sciences and Institute of Medicine, 2008, Science, Evolution, and Creationism, third edition, Washington, DC: National Academies Press. doi:10.17226/11876 [NASIM 2008 quote in this entry is also available online at the National Academy of Sciences]
Ruse, Michael, 2014, “Atheism and Science”, in The Customization of Science: The Impact of Religious and Political Worldviews on Contemporary Science Steve Fuller, Mikael Stenmark, Ulf Zackariasson (eds), New York: Palgrave, 73–88. doi:10.1057/9781137379610_5
Pinker, Steven, 2013, “Science Is Not Your Enemy”, The New Republic, August 7. URL = <https://newrepublic.com/article/114127/science-not-enemy-humanities>
Stenmark, Mikael, 2001, Scientism: Science, Ethics, and Religion, Aldershot, UK: Ashgate.
Stenmark, Mikael, 2004, How to Relate Science and Religion: A Multidimensional Model, Grand Rapids, MI: Eerdmans.
Traduzido de: Taliaferro, Charles, "Filosofia da Religião", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição de outono de 2019), Edward N. Zalta (ed.), URL = https://plato.stanford.edu/entries/philosophy-religion/
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