20 MITOS DA FILOSOFIA
O
objetivo do texto a seguir consiste em apresentar 20 equívocos de interpretação
muito comuns em filosofia, seja sobre o pensamento de um autor ou sobre algum
conceito ou tese filosófica. Os “mitos” (na verdade, equívocos) foram colocados
em ordem razoavelmente cronológica e escrevi, de forma livre e natural, o motivo pelo qual
cada uma das afirmações abaixo é equivocada, apresentando a interpretação
correta.
1. Platão ensinava que existe um mundo
sensível e um mundo das ideias.
Na verdade, a chamada TWT (Two Worlds Theory) não é ensinada por Platão em lugar algum. Platão nunca disse que existe um mundo das ideias separado do mundo sensível. O termo "mundo" (grego: “kosmos”) nunca é usado por Platão para se referir a um plano das ideias, o termo usado pelo autor é “lugar das ideias” (grego: topoi), utilizado em sentido metafórico, já que formas não são coisas que ocupam lugar no espaço. Por isso, as formas não existem em lugar nenhum em sentido literal. Pode-se, apenas, falar de um “espaço lógico” das formas ou ideias. Além disso, as coisas participam das ideias, não estão separadas delas. Assim, as ideias ou formas não existem em um mundo separado mas são partes do único mundo que existe.
2. As formas platônicas são os universais.
Essa
interpretação errada rendeu ao platonismo duas acusações falsas. A primeira de que os
platônicos defendiam uma forma de realismo exagerado e a segunda de que os platônicos
entravam em contradição ao afirmar que as formas são ao mesmo tempo universais
e coisas particulares. As formas não são nem universais nem particulares. Elas
não são universais porque elas não são aquilo que possui a capacidade de ser
predicado de muitos, nem são particulares, porque elas são aquilo em que os
particulares participam. Ademais, as formas não podem ser os universais porque
elas subsumem todas as perfeições ontológicas dos particulares, contendo-os
todos virtualmente. Isso também significa que não faz sentido ver as formas
como “predicados”, o que elimina um suposto problema de autopredicação (de que
a forma do belo, por exemplo, precisaria ser bela). Todo esse problema surge de
uma confusão sobre o papel das formas na filosofia platônica. O papel das
formas é explicar a identidade na diferença, não o fenômeno da predicação
comum.
3. O Deus de Aristóteles é diferente do Deus
do teísmo clássico.
A
ideia de que o Deus de Aristóteles e o Deus do teísmo clássico são diferentes é uma interpretação moderna que se popularizou, mas é equivocada.
Ainda que o Deus de Aristóteles não fosse o Deus cristão, o Deus que os cristãos clássicos acreditavam e o Deus que Aristóteles defendia têm os mesmos
atributos clássicos. Sendo Ato Puro e Intelecto que pensa a si mesmo, o Deus de
Aristóteles possui todos os atributos do Deus do teísmo clássico, incluindo os
atributos de onipotência (o Ato puro e Motor de todas as coisas deve conter
toda potência ativa para atualizar a potência passiva dos móveis, ele é pura potência ativa),
onisciência (como Intelecto puro, em sua intelecção contínua e perfeita, ao pensar a si mesmo, ele conhece todas as verdades ao intuir sua própria essência que contém o princípio formal da causa de tudo), onibenevolência
(ele é o Bem sumo por sua perfeição ontológica na medida em que é Ato Puro em sua realização completa - aqui bem não deve ser confundido com "bem moral"), é Impassível (como Ato Puro, não sofre de paixões),
Imutável (é Motor imovível, sem sofrer mudanças), simples (não é composto nem
de matéria e forma, nem de ato e potência passiva), e é atemporal (não está sujeito ao
tempo que governa os seres sujeitos a geração e corrupção). São exatamente
esses os atributos clássicos necessários e suficientes do teísmo clássico.
4. Agostinho dizia que o mal não existe.
Isso é falso. Quando Agostinho afirma que o mal é privação de bem, ele não quer dizer que o mal não existe ou não tenha realidade. O mal não é mera ausência, negação ou falta pura e simples. Para Agostinho, o mal é uma privação de um bem devido, não uma privação qualquer. Por exemplo, a boa visão é um bem devido ao olho dada sua natureza. Assim, o olho que não enxerga bem, está privado do bem da visão que lhe cabe. Por vezes, o mal pode ser até algo a mais na realidade. Se supormos que o bem devido a uma mão é ter cinco dedos, então uma mão deficiente com seis dedos é, nesse sentido, um mal. Aqui, evidentemente mal não tem um sentido moral ou culpabilizador, ter uma deficiência física não é moralmente ruim, o termo mal no sentido agostiniano tem um significado amplo. Agostinho nunca negou que o mal do pecado, dos desastres naturais e o sofrimento não fossem reais em sentido significativo.
5. Duns Escoto ensinou a teoria de diversas
formas para um mesmo ente.
Errado.
Essa leitura vem do erro de confundir formas e formalidades no pensamento de
Escoto. Formas substanciais que em conjunto com a matéria compõem as
substâncias permitindo com que identifiquemos alguém, por exemplo, como sendo
um ser humano, não são o mesmo que formalidades, porções de inteligibilidade
presentes como componentes das coisas que tem um ser diminuto intermediário entre aquilo que é
real (uma coisa) e aquilo que é apenas de razão. Assim, o ser humano também
possui, por exemplo, as formalidades da animalidade e da racionalidade como porções de
inteligibilidade minimamente reais que o constitui. Isso é diferente da teoria
de várias formas substanciais para um mesmo ente.
6. Ramon Lúlio defendia o racionalismo
teológico.
O
racionalismo teológico é a tese de que os dogmas da teologia podem todos ser provados por
meio da razão natural, Ramon Lúlio supostamente buscou provar dogmas de fé,
como a Trindade e a encarnação de Cristo, por meio da razão natural, logo Ramon
Lúlio era um racionalista teológico. No entanto, essa interpretação está
equivocada porque as provas racionais, para Lúlio, não podiam provar
completamente esses dogmas no sentido que os esgotasse, de modo que ele mantinha espaço para fé e para o mistério. Por
exemplo, a razão, partindo de que Deus sendo Sumo Bem, é o Bem que bonifica, que
é bonificado e a bonificação, mostrou que Deus precisa ser trino, mas com isso
não provou ser esses três o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o que se sabe só
pela fé. Aquino também buscou falar da Trindade usando a razão para mostrar que
Deus sendo Intelecto e Vontade, precisa ser aquele que pensa e deseja a si
mesma gerando o Pensamento (o Verbo) e doando o Amor (o Espírito), sem com isso cair em racionalismo teológico. Mostrar que
a razão é capaz de alcançar parte de um dogma sem esgotá-lo não é racionalismo
teológico, pois ainda se preserva que parte do dogma só se conhece por fé e
revelação.
7. Ramon Lúlio criou a Arte Magna como um
método para converter os infiéis.
Essa
fala vem de uma confusão entre dois primeiros distintos projetos de Ramon Lúlio - a Arte
Magna e o Maior Livro do Mundo. A Arte Magna é um grande sistema de síntese
dialética entre Aristóteles e Platão que permite um conhecimento abrangente de
Deus, das verdades e das dignidades. O Maior Livro do Mundo é um projeto para
conversão dos infiéis baseado no substrato comum entre o judaísmo, o islamismo
e o Cristianismo. Portanto, os dois projetos são distintos e não devem ser
confundidos.
8. A lógica não passou por nenhum
desenvolvimento significativo depois de Aristóteles até Kant.
Essa
afirmação, oriunda de Kant e repetida por Bertrand Russell, é falsa. A lógica
passou por diversos desenvolvimentos na Idade Média. Não só a lógica
aristotélica passou pro reformas na Idade Média, como outros sistemas de
lógica, que não o sistema aristotélico, floresceram no medievo. Destaque
especial é dado aos nominalistas, que trouxeram importantes contribuições na
Idade Média para o desenvolvimento da lógica.
9. O racionalismo (e.g. Descartes) nega que
todo conhecimento comece com a experiência.
Essa
ideia vem da falsa caricatura de que empiristas dizem que todo conhecimento vem
da experiência enquanto racionalistas seriam os que dizem que nascemos já com
certos conhecimentos. Na verdade, essa caricatura está errada. O Racionalismo é
a tese de que certas coisas são dadas à consciência de forma puramente
intelectual, como uma intuição intelectual pura. Empiristas, por outro lado,
afirmam que nada é dado à consciência para fins cognitivos que não tenha origem na cognição de dados sensoriais particulares. O Criticismo (Kant), por
sua vez, é a tese que nega a existência de uma intuição puramente intelectual
ao mesmo tempo que afirma que há conhecimentos que não são originados da
cognição de um dado sensorial particular. No entanto, o racionalismo não
envolve negar que todo conhecimento comece pela experiência. Descartes, por
exemplo, acreditava que para acessarmos as nossas ideias inatas esse
conhecimento precisa ser despertado em nós pela experiência, de modo que todo
conhecimento começa pela experiência.
10. Leibniz era um necessarianista.
Do
fato de que Leibniz afirme que Deus só poderia ter criado o melhor do mundo dos
possíveis, muitos concluem que isso levaria a um colapso modal que faria com
que tudo fosse necessário em sentido lógico ou metafísico. No entanto, essa interpretação não está correta se
por necessário se entende lógica e metafísicamente necessário. Leibniz
esclarece que Deus só pode criar o melhor dos mundos possíveis, não por uma
necessidade lógica (porque outros mundos são logicamente possíveis) nem por
necessidade metafísica (pois há outros mundos que não envolvem
incompossibilidade), mas sim por necessidade moral (porque Deus, sendo bom,
sempre escolhe o melhor).
11. A filosofia de Kant depende da geometria
euclidiana, da lógica aristotélica e da física newtoniana.
A
interpretação de Kant como um euclidiano dogmático, para quem o espaço só pode
ser corretamente entendido como o espaço da geometria de Euclides é falso. Para
Kant, o espaço da Estética Transcendental ainda é um espaço indeterminado
(ainda não diferenciado pelas categorias do entendimento), e portanto, não pode
ser o espaço de nenhuma geometria específica, que teria de pressupor o trabalho
do entendimento em termos de postulados e axiomas. Assim, o espaço da Estética
Transcendental kantiana é indeterminado quanto ao número de dimensões, ou sobre
ser plano, hiperbólico, parabólico ou curvo. Além do mais, mesmo considerando o
entendimento, o caráter sintético dos juízos geométricos permite com que a
geometria seja um campo do conhecimento que se amplie e avance. O que as
geometrias não-euclidianas mostraram não foi que a geometria euclidiana é falsa, mas sim que ela é mais uma geometria entre outras e o desenvolvimento e
ampliação da geometria é perfeitamente compatível com o caráter sintético dessa ciência em Kant. O mesmo raciocínio
se aplica a física newtoniana, a física por seu caráter sintético está sujeita
a ampliação e desenvolvimento, a tese central de Kant é apenas que as leis da
natureza, sejam quais forem, são dadas pelo entendimento. Além do mais, Kant
não é incompatível com lógicas que não a aristotélica, como as Lógica clássica
de Frege e seus desenvolvimentos. Na verdade, por envolver operar com quantificadores e operadores
verofuncionais, lógica clássica só seria, no sistema de Kant, parte dos
juízos sintéticos a priori, pertencendo ao mesmo domínio dos juízos matemáticos.
12. A priori em Kant significa o que vem
antes da experiência.
A
priori em Kant não significa o que vem antes da experiência. Nenhum
conhecimento em Kant vem antes da experiência porque todo conhecimento começa
com a experiência. Na verdade, dizemos que um juízo é a posteriori quando ele
envolve a cognição de um dado sensorial particular, como cor, intensidade do
brilho, cheiro, barulho, altura do som, características táteis, gosto etc. Um
juízo é a priori, por outro lado quando ele não envolve a cognição de um dado
sensorial particular, podendo, no entanto ser puro ou impuro. Ele é puro quando
ele pressupõe apenas de maneira distal as sensações (exemplo: a soma de dois
mais dois é quatro) e é impuro quando, embora a priori, há nele infiltração de
notas empíricas (exemplo: todo solteiro é um não-casado).
13. Hegel explicava a realidade em termos de
tese, antítese e síntese.
Essa ideia de que Hegel propunha um sistema triangular de que primeiro na realidade é uma tese, que é contraposta por uma antítese e superada por uma síntese que subsume a tese e a antítese, não está em Hegel. Foi um filósofo alemão, chamado Heinrich Moritz Chalybaus, que propôs esse esquema.
14. Heidegger acreditava que toda decisão é
válida desde que seja autêntica.
Essa
interpretação vem de uma atribuição a Heidegger de uma doutrina chamada de
decisionismo, segundo a qual, não importa qual decisão tomemos, o que importa é
ela ser autêntica. Francis Schaeffer, por exemplo, erroneamente atribuiu a
autores como Heidegger a ideia de que se pode até mesmo escolher atropelar uma
idosa se for isso o que a pessoa escolheu para dar sentido à sua vida.
Heidegger nunca propôs isso, seu conceito de decisão resoluta ou resolução
realizadora envolve apenas a ideia de que devemos assumir a responsabilidade
pelas possibilidades que assumimos ao invés de nos guiarmos apenas pelas
possibilidades já previamente delimitadas pelo impessoal ou a-gente. No
entanto, ele nunca negou a importância do aspecto ético nessa tomada de decisão
responsável. Heidegger também nunca propôs um relativismo ou subjetivismo
ético, como se todas as decisões fossem moralmente válidas importando apenas
que se decida autenticamente por algo.
15. Foucault era um relativista epistêmico.
É
muito comum que pelo fato de Foucault falar de regimes de verdade e usar a
expressão “verdade” como se referindo a um discurso hegemônico e revestido de suposta
autoridade, que alguns achem ser ele um relativista epistemológico. Isso está
incorreto, o que Foucault examina é o que em uma sociedade é tomado como
discurso verdadeiro, rastreando a formação desses discursos e as relações de
poder presentes nessa constituição. Foucault nunca disse, entretanto que um
discurso seja falso ou ruim por ser hegemônico nem que um discurso seja
verdadeiro ou mais válido por ser um saber sujeitado ou marginalizado. O valor
epistemológico objetivo desses discursos não é o que está em questão. A visão
de Foucault talvez esteja mais próxima de uma posição chamada de
perspectivismo, segundo a qual, existe uma realidade objetiva, mas nossas
teorias são interpretações dessa realidade de diferentes perspectivas. Nenhuma
perspectiva tem o domínio completo dessa realidade e cada uma captura, como num
prisma, diferentes facetas da verdade. Nossas perspectivas podem, no entanto,
ser criticamente aprimoradas para serem mais próximas da verdade e criticar o
que é tido como verdade numa sociedade mostrando as relações de poder por trás
desses discursos e ao mesmo tempo permitindo que perspectivas sujeitadas tenham
voz, é o que permite esse aprimoramento.
16. Os positivistas defendiam a neutralidade
da ciência.
Existem muitos mitos sobre o positivismo. Primeiro, é importante distinguir o positivismo sociológico de Augusto Comte do positivismo lógico/filosófico que teve início com o círculo de Viena. O positivismo de Augusto Comte envolvia uma noção de que a ciência era um conhecimento que superava os mitos religiosos e a metafísica, mas não envolvia uma crença ingênua na neutralidade das ciências positivas. Por outro lado, o positivismo filosófico é um movimento que em outras formas também foi chamado de empirismo lógico e que lançou as bases para o desenvolvimento da filosofia analítica, foi uma perspectiva que propôs uma visão científica do mundo e defendeu o papel da filosofia como uma análise crítica dos conceitos científicos, defendendo que a ciência esclarecesse bem seus conceitos e evitasse conceitos obscuros e afirmações que não pudessem ser verificadas. A mesma exigência de clareza foi feita aos filósofos, que deveriam se esforçar para serem claros em seus argumentos, conceitos e teses. No entanto, positivistas nunca tiveram uma visão ingênua da ciência, por isso destacavam o papel importante da filosofia na análise dos conceitos científicos. Também é mito que positivistas defendiam uma neutralidade científica que abandonasse o engajamento social e político ou que ignorasse a influência da subjetividade, das relações de poder ou interesses sociais e econômicos na ciência. Muitos positivistas eram socialistas e foram perseguidos por seu engajamento político. O positivismo também não dizia que só o discurso científico tem valor ou que só o que pode ser verificado tem significado, o positivismo reconhecia o valor e significado conativo da arte, da religião, da ética e mesmo da metafísica.
17. O liberalismo econômico consiste na
defesa do Estado mínimo.
É
muito comum confundir Estado Mínimo com livre-mercado. Embora alguns liberais
falem em Estado Mínimo, não é isso que caracteriza o liberalismo. O liberalismo
pode ser pensado como um movimento amplo que envolve a defesa de liberdades e
direitos individuais contra a coação do Estado ou a interferência desmedida do
Estado na esfera do indivíduo e de seus direitos. No campo da economia, o
liberalismo, agora sim propriamente o liberalismo econômico, defende uma
economia de livre mercado baseada na livre concorrência e na livre associação
entre os agentes econômicos. No entanto, isso não implica necessariamente a
tese de um Estado mínimo. Inclusive alguns liberais podem defender ações
importantes do Estado justamente para garantir a livre concorrência e a livre
associação, de modo que livre mercado não necessariamente envolve a ideia de um
Estado reduzido ao máximo.
18. O objetivismo ético depende do realismo
moral.
O
realismo moral é a tese de que juízos morais podem ser verdadeiros no sentido
de corresponderem a um estado de coisas que é o caso na realidade. Realistas
morais podem ser naturalistas, quando juízos morais são verdadeiros por
corresponderem a fatos ou propriedades ontológicas naturais ou não-naturalistas
quando juízos morais são verdadeiros por corresponderem a fatos ou propriedades
ontológicas não-naturais. No entanto, essas não são as únicas perspectivas
objetivistas em Ética. De acordo com o não-naturalismo não-realista (Derek
Parfit), juízos morais são feitos verdadeiros por propriedades não-naturais que
não possuem implicações ontológicas fortes. Segundo o prescritivismo (Richard
Hare), juízos morais não são verdadeiros no sentido de corresponderem a fatos
na realidade, mas podem ser objetivos no sentido de serem prescrições
universais que todos têm o dever de seguir. Para o projetivismo quasi-realista
(Simon Blackburn, Allan Gibbard), juízos morais podem ser verdadeiros mesmo que
sejam apenas expressão de atitudes conativas e podem ser objetivamente
avaliados em termos de consistência.
19. Segundo o conceito de lugar de fala,
homens não podem falar de feminismo/aborto nem brancos de racismo etc.
Na realidade isso vem de uma interpretação incorreta do conceito proposto por Djamila Ribeiro. O conceito de lugar de fala proposto pela autora é um conceito de análise do discurso, não de interdição do discurso. O conceito não significa que brancos não possam falar de racismo ou homens de feminismo, nem que homens, ao falarem sobre isso estão errados e mulheres automaticamente certas ou que brancos estão automaticamente errados quando falam de racismo e negros corretos. Também não significa que homens não possam opinar sobre as questões éticas do aborto, por exemplo. Para entender melhor o que realmente lugar de fala significa, precisamos retornar a Simone de Beauvoir. Beauvoir observa que na sociedade patriarcal a mulher é tomada como um "outro", não como um "sujeito", o lugar que a mulher ocupa nas relações não é de um sujeito independente, mas sim de um outro, o de um objeto que só existe em relação ao homem. Isso significa que quando o homem fala, ele fala de um lugar de sujeito enquanto a mulher fala de um lugar de objeto, de inferioridade, de dominada e oprimida. Lugar de fala significa entender que toda pessoa que discursa, discursa a partir de um determinado lugar que ocupa nas relações sociais. Todos têm lugar de fala. O lugar que ocupamos nas relações sociais nos faz ter experiências distintas e, nas articulações discursivas, determinados grupos oprimidos são silenciados, o que cria um regime de autorização ou desautorização discursiva. Quando se fala de lugar de fala, o que se tem em mente é a ideia de romper com esse regime e dar voz àqueles que são silenciados. A proposta de Djamila Ribeiro é que todos tenham lugar de fala, aqueles que já possuem seus espaços de fala já garantidos e, agora, aqueles que foram silenciados e que se possa, no campo da análise do discurso, para fins sociológicos, pensar como os discursos se formam dado o lugar social do qual os sujeitos partem. Mas isso não tem nada a ver com avaliar qual discurso é verdadeiro ou falso, válido ou inválido, autorizado ou não pelo lugar do qual alguém parte.
20. O problema mais difícil da consciência
são os qualia.
O
problema da consciência é muito mal entendido. Muitas pessoas confundem o
problema fácil da consciência com o problema difícil da consciência. O problema
fácil da consciência consiste em explicar como algo físico pode servir de base
pra processos mentais, como percepção, atenção, memória etc. Trata-se mais
propriamente do problema mente-corpo que é considerado de mais fácil resolução já
que mostrar como processos mentais são possíveis a partir de um substrato
físico, embora envolva dificuldades, é algo feito com relativo sucesso pelas
neurociências ou propostas como o fisicalismo, o emergentismo sistêmico, o
funcionalismo (há sobreposição entre essas teses naturalistas etc). O problema
mais difícil da consciência também não é o problema da intencionalidade, isto é, da
inabitação psíquica de caráter referente de certos atos de
consciência. A intencionalidade é um problema
para a filosofia da mente, mas não é o verdadeiro motivo do problema difícil da
consciência. No entanto, quando nos voltamos para os qualia, as experiências
fenomênicas subjetivas de como é para alguém experimentar um conteúdo
sensacional, podemos nos aproximar do problema, mas ainda não estamos lá. O problema não de aplica só a sensação de cores ou do gosto de um café,
o problema também deve se aplicar a estados de consciência não-sensacionais como
as atividades puras do pensamento, não só no aspecto de como é experimentar
esses pensamentos subjetivamente, mas na própria possibilidade de atos de pensamento. Mas ainda assim, esse não é o
problema. O problema difícil da consciência não é sobre simplesmente
experiências qualitativas ou sobre a possibilidade da intelecção, mas é sobre
algo mais fundamental que torna tudo isso possível, que é o caráter de
testemunhalidade da consciência, presente não só em atos de consciência
transitivos mas também em atos de consciência intransitivos. Por isso, G.E.
Moore fala que o que importa não é a sensação da visão da cor, é a “luminosidade”
da consciência que acompanha essa sensação da cor. Por isso, o problema mais
difícil da consciência não são os qualia, é a luz da consciência que acompanha
esses qualia e que está presente mesmo quando não há qualia.
-
Sunkey
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