ESTÉTICA CONTEMPORÂNEA E FILOSOFIA DA ARTE (RESUMO)
O que se segue é um resumo de alguns capítulos da Parte III: Contemporary Aesthetics and Philosophy of Art do livro Aesthetics: A Comprehensive Anthology . O objetivo é apresentar as teses do texto original de forma compactada, sem constituir uma resenha crítica. Assim, o resumo busca refletir as ideias dos autores originais, sintetizando suas principais teses. A leitura deste resumo não substitui a leitura do livro. Ele está estruturado conforme a organização original, dividindo-se nas seguintes partes:
(1) O Mundo da Arte – Arthur Danto (35. The Artworld)
(2) Uma Análise Institucional da Arte – George Dickie (36. What is Art? An Institutional Analysis)
(3) Teoria da Arte como um Conceito-Ramalhete – Berys Gaut (37. “Art” as a Cluster Concept)
(4) Quando é Arte? – Nelson Goodman (38. When is Art?)
(5) A Arte e Seus Objetos – Richard Wollheim (39. Art and Its Objects)
(6) Variedades de Arte – Stephen Davies (40. Varieties of Art)
(7) O Que um Trabalho Musical É? – Jerrold Levinson (41. What a Musical Work Is)
(8) Conceitos Estéticos – Frank Sibley (43. Aesthetic Concepts)
(9) Categorias de Arte – Kendall L. Walton (44. Categories of Art)
(10) O Mito da Atitude Estética – George Dickie (45. The Myth of the Aesthetic Attitude)
(11) O Que É Experiência Estética? – Alan H. Goldman (46. What is Aesthetic Experience?)
(12) Beleza Restaurada – Mary Mothersill (48. Beauty Restored)
(13) Valor Estético e Gosto Pessoal – Jerrold Levinson (49. Artistic Worth and Personal Taste)
(14) Crítica e Interpretação – Noël Carroll (51. Criticism and Interpretation)
(15) Filosofia Feminista da Arte – A.W. Eaton (60. Feminist Philosophy of Art)
(16) Valor Artístico - Malcolm Budd (47. Artistic Value)
(17) Valor Estético, Arte e Comida – Carolyn Korsmeyer (63. Aesthetic Value, Art, and Food)
Referência: CAHN, Steven M.; ROSS, Stephanie; SHAPSHAY, Sandra L. (Ed.). Aesthetics: a comprehensive anthology. 2. ed. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2020. (Blackwell Philosophy Anthologies).
I. O MUNDO DA ARTE
- Arthur Danto
. De acordo com a Teoria da Imitação, a arte é uma cópia, duplicação ou mímesis que busca espelhar a realidade. Historicamente, a Teoria da Imitação dominou a compreensão da arte, com a imitação sendo considerada uma condição necessária e suficiente para que algo fosse arte. No entanto, a Teoria da Imitação é inadequada porque, se a arte é imitação, então imagens de espelho seriam arte, o que não é o caso. A invenção da fotografia expôs ainda mais a insuficiência da Teoria da Imitação, levando ao seu descarte até mesmo como uma condição necessária. Se a arte fosse puramente sobre imitação, a fotografia deveria ter se tornado a forma de arte suprema e, talvez, ter tornado a pintura e a escultura miméticas obsoletas.
A aceitação de novas formas de arte, como as pinturas pós-impressionistas, exigiu não uma revolução no gosto, mas uma revisão teórica substancial. Essas obras não podiam ser aceitas sob a Teoria da Imitação a menos que fossem consideradas arte inepta. Assim, ela foi substituída pela Teoria da Realidade, segundo a qual as obras de arte pós-impressionistas e a arte moderna em geral devem ser compreendidas não como imitações malfeitas de formas reais, mas sim como a criação bem-sucedida de novas formas, tão reais quanto as formas que a arte mais antiga supostamente imitava de forma crível. Essa mudança permitiu que objetos (como máscaras e armas) fossem transferidos de museus antropológicos para museus de belas artes, pois a nova teoria podia justificar seu status como arte.
Uma teoria da arte precisa ser capaz de explicar o que distingue um objeto de arte de um objeto idêntico que não seja arte. Nesse contexto, pode-se introduzir um conceito do "é" da identificação artística, que não é o "é" de identidade, predicação ou existência. É o sentido de "é" que uma criança usa ao apontar para um triângulo e dizer "Esse sou eu", ou quando alguém aponta para uma mancha branca em uma pintura e diz "Essa mancha branca é Ícaro". Esse "é" permite que um objeto físico seja identificado como algo que ele não é literalmente, mas sim artisticamente. A explicação do artista determina como a obra deve ser lida e quais elementos artísticos são relevantes. Para ver algo como arte, é necessária uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte.
O "mundo da arte" é uma rede conceitual composta por teorias artísticas, conhecimento histórico e contextos culturais que tornam possível reconhecer algo como obra de arte. Nele, a distinção entre arte e objeto comum não está nos aspectos físicos do item, mas na forma como ele é inserido e interpretado dentro dessa estrutura. Assim, a arte depende de um contexto intelectual e histórico que a legitima, permitindo a chamada "identificação artística", por meio da qual se vê mais do que a materialidade, vê-se significado.
II. UMA ANÁLISE INSTITUCIONAL DA ARTE
- George Dickie
Morris Weitz apresenta dois argumentos contra a ideia de uma definição de arte: (i) argumento da generalização: Weitz afirma que subconceitos da arte (como "romance", "tragédia", "pintura") são "abertos" (não possuem características essenciais) e generaliza isso para o conceito genérico de "arte"; (ii) argumento da Classificação: Weitz argumenta que a "artefatualidade" (ser um artefato) não é uma característica necessária da arte, citando exemplos como um pedaço de madeira flutuante que pode ser considerado uma bela escultura.
Quanto ao primeiro argumento, ele pode ser refutado considerando que mesmo que os subconceitos sejam abertos, o conceito genérico de "obra de arte" pode ser "fechado", ou seja, pode ser definido por condições necessárias e suficientes. Quanto ao argumento da classificação, ele pode ser refutado distinguindo três sentidos de "obra de arte": (i) sentido classificatório (primário): refere-se a algo que pertence a uma categoria específica de artefatos, este é o sentido principal em que uma obra de arte é uma obra de arte; (ii) sentido derivado (secundário): aplicado a objetos não-artefatuais, como a madeira flutuante, que se assemelham a obras de arte paradigmáticas (que são artefatos); (iii) sentido avaliativo: usado quando um objeto é considerado de valor substancial, como em "o bolo de Sally é uma obra de arte", significando que tem qualidades valiosas.
Maurice Mandelbaum criticou Weitz e Wittgenstein por focarem apenas em características "exibidas" (percebidas visualmente) e negligenciarem os aspectos "não-exibidos" e relacionais de jogos e arte. Com base nisso, é possível afirmar uma segunda condição necessária para a arte (além da artefatualidade), que é uma propriedade não-exibida que envolve as complexidades intrincadas do 'mundo da arte'. Como observa Arthur Danto, uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte." O termo "mundo da arte" pode ser usado para se referir a uma ampla instituição social onde as obras de arte têm seu lugar. Instituição aqui significa uma prática estabelecida, não necessariamente uma sociedade ou corporação formal.
O mundo da arte é composto por um conjunto de sistemas (teatro, pintura, escultura, literatura, música etc.), cada um fornecendo um pano de fundo institucional para a atribuição de status a objetos em seu domínio. A ausência de propriedades exibidas comuns entre as obras de arte não é surpreendente, pois são suas propriedades não-exibidas, dentro de um cenário institucional, que as definem. A essência institucional da arte é mais facilmente revelada pelo dadaísmo, como nas obras Duchamp. Ao conferir o status de arte a objetos comuns (urinóis, pás de neve), Duchamp e seus colegas usaram um dispositivo institucional já existente. a ação de conferir o status de arte. Artistas de eras anteriores também faziam isso, mas suas obras convencionais desviavam a atenção dos filósofos da arte da propriedade não-exibida do status.
Pode-se definir uma obra de arte no sentido classificatório como: (i) um artefato; (ii) um conjunto de aspectos do qual teve conferido sobre ele o status de candidato à apreciação por alguma pessoa ou pessoas agindo em nome de uma certa instituição social (o mundo da arte). Quanto ao segundo critério, ele envolve quatro atos: (i) agir em nome de uma instituição: refere-se a indivíduos que operam dentro das práticas e tradições do mundo da arte; (ii) conferir status: assim como um rei confere a cavalaria ou um júri indica alguém, o status de arte é conferido; (iii) ser um candidato: o status conferido é o de "candidato à apreciação", isso significa que não é necessário que a obra seja realmente apreciada para ser arte; muitas obras de arte permanecem não apreciadas; (iii) apreciação: não há um tipo especial de apreciação estética, a apreciação, no contexto da arte, significa que ao experimentar as qualidades de uma coisa, alguém as considera dignas ou valiosas. A diferença entre a apreciação da arte e da não-arte reside nos objetos, não no tipo de apreciação, e na estrutura institucional em que o objeto de arte está inserido.
Essa definição institucional da arte pode ser criticada como "circular" no sentido de que o "mundo da arte" é descrito em termos que se referem à arte (historiadores da arte, repórteres de arte, peças teatrais). No entanto, ela não é "viciosamente circular" porque o relato completo que a precede fornece uma quantidade considerável de informações sobre as complexidades históricas, organizacionais e funcionais do mundo da arte. A circularidade é inerente a conceitos institucionais.
III. TEORIA DA ARTE COMO UM CONCEITO-RAMALHETE
- Berys Gaut
A ideia de que a arte não pode ser definida por condições estritamente necessárias e suficientes tem raízes nas teorias estéticas dos anos 1950, influenciadas por Wittgenstein e sua noção de “semelhança de família”. Embora essa abordagem tenha sido inicialmente rejeitada por ser considerada vaga e incompleta, ressurgiu de forma mais robusta na forma de um “conceito-ramalhete”. Esse modelo propõe que a arte seja caracterizada por um conjunto de critérios múltiplos, nenhum dos quais é necessário isoladamente, mas cuja presença combinada (mesmo que parcial) pode ser suficiente para classificar algo como arte. Pode-se propor dez critérios que, quando um número suficiente deles está presente, são suficientes para que algo seja considerado arte:
(1) Possuir valor estético positivo
(2) Expressar emoção
(3) Exibir criatividade
(4) Exibir complexidade ou forma complexa
(5) Transmissão de uma perspectiva ou ponto de vista
(6) Capacidade de proporcionar uma experiência estética
(7) Ser resultado de alta habilidade técnica
(8) Pertencer a uma instituição artística ou tradição artística reconhecida
(9) Ser intencionalmente feito para ser apreciado como arte
(10) Estar em consonância com atitudes e julgamentos artísticos corretos
A arte não se define por uma essência única ou por condições estritas, mas por um conjunto flexível de critérios relevantes, dos quais alguns devem estar presentes, mas nenhum é necessário isoladamente. Essa abordagem reconhece que a arte envolve um "fazer" ou "performar", inclusive quando se trata de arte encontrada, cuja criação se dá por meio da seleção, uma ação mínima, porém decisiva. A força da teoria está em sua pluralidade explicativa: ela acomoda a diversidade das práticas artísticas, evita os reducionismos das teorias funcionalistas, institucionais ou históricas, e consegue lidar com casos-limite e disputas classificatórias. Além disso, possui valor normativo, mostrando que certos critérios usados em debates sobre arte podem ser aplicados de forma equivocada. Embora a teoria do conceito ramalhete não seja uma "definição" no sentido clássico, com condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes, ela oferece uma ferramenta heurística robusta para pensar criticamente sobre o conceito de arte.
IV. QUANDO É ARTE?
- Nelson Goodman
Muitas vezes classificamos obras como "simbólicas" com base no fato de que elas representam símbolos. Por outro lado, a "arte não simbólica" é geralmente restrita à arte sem assunto, como obras puramente abstratas ou decorativas. Desse modo, os símbolos não são extrínsecos à obra de arte. Toda obra representacional é um símbolo, pois representar é certamente referir, significar, simbolizar. Ele então apresenta um manifesto do purista ou formalista que defende que o que uma imagem simboliza é externo e irrelevante para seu significado estético ou artístico. Para o purista, a arte pura deve evitar toda simbolização e ser valorizada apenas por suas qualidades intrínsecas.
A suposição de que o que um símbolo simboliza é sempre externo a ele, como símbolos que se referem a si mesmos (como a frase "esta sequência de palavras" que se refere a si mesma). Mesmo admitindo que a representação na maioria das obras é externa, algumas obras simbólicas, como as de Bosch, representam nada no sentido de que os seres retratados (monstros, unicórnios) não existem na realidade. No entanto, elas são representacionais em caráter, portanto simbólicas e, portanto, não 'puras'. Não apenas obras representacionais são simbólicas; uma pintura abstrata pode expressar (e, portanto, simbolizar) um sentimento ou qualidade. O purista, portanto, rejeitaria tanto obras abstratas expressionistas quanto obras representacionais.
Nesse contexto, pode-se introduzir o conceito de “amostras”. Uma amostra exemplifica algumas de suas propriedades, mas não de todas. As propriedades "amostradas" variam de caso para caso e com o contexto. Exemplificar é uma forma de referência ou simbolização, assim como a representação ou expressão. As propriedades que importam em uma pintura purista são aquelas que a imagem manifesta, seleciona, foca, exibe, realça em nossa consciência, em suma, aquelas propriedades que ela não apenas possui, mas que exemplifica. Assim, mesmo a pintura mais pura do purista simboliza ao exemplificar certas de suas propriedades.
A questão "Quando é arte?" é especialmente relevante no caso da "arte encontrada", uma pedra retirada de uma calçada e exibida em um museu, ou a "arte conceitual". Um objeto pode funcionar como uma obra de arte em alguns momentos e não em outros. Por exemplo, uma pedra na calçada geralmente não desempenha nenhuma função simbólica, mas em um museu de arte, ela exemplifica certas propriedades (forma, cor, textura) e, ao fazê-lo, funciona como uma obra de arte. Um Rembrandt, por outro lado, pode deixar de funcionar como arte se usado como cobertor.
A função simbólica que constitui a arte tem certas características, pode-se citar cinco: (i) densidade sintática: As menores diferenças em certos aspectos constituem uma diferença entre símbolos (ex: termômetro de mercúrio não graduado vs. instrumento digital); (ii) densidade semântica: Símbolos são fornecidos para coisas distinguidas pelas menores diferenças em certos aspectos (ex: novamente o termômetro, ou a linguagem comum).; (iii) repletude relativa: Comparativamente, muitos aspectos de um símbolo são significativos (ex: um desenho de montanha de Hokusai onde cada detalhe conta, em contraste com o mesmo traço como um gráfico de ações); (iv) exemplificação: Um símbolo simboliza ao servir como uma amostra de propriedades que ele possui literal ou metaforicamente; (v) referência múltipla e complexa: Um símbolo realiza várias funções referenciais integradas e interativas, algumas diretas e outras mediadas por outros símbolos.
A arte pode, assim, ser definida pela sua função simbólica, que pode ser transitória. A questão de definir uma propriedade estável (o "o que é") em termos de uma função efêmera (o "quando é") não se limita à arte, mas é geral. Nesse sentido, é importante mudar o foco de "o que a arte é" para "o que a arte faz". A forma como um objeto ou evento funciona como obra de arte explica como, através de certos modos de referência, ele pode contribuir para uma visão e para a criação de um mundo.
V. A ARTE E SEUS OBJETOS
- Richard Wollheim
De acordo com a hipótese física, a arte é um objeto físico. Essa hipótese é um ponto de partida natural porque, intuitivamente, as coisas são consideradas objetos físicos a menos que sejam muito obviamente algo diferente, como pensamentos, números ou miragens. Além disso, essa hipótese está de acordo com muitas concepções tradicionais de arte. No entanto, em certas artes (como música e literatura), não há objeto físico que possa ser plausivelmente identificado como a obra de arte. Por exemplo, uma música não é uma reprodução física específica sua, já que a mesma música pode ser reproduzida em diferentes momentos e lugares sendo, ainda assim, a mesma obra de arte.
Uma tentativa de salvar a hipótese física é sugerir que obras de arte que não podem ser identificadas com objetos físicos únicos são, na verdade, classes de objetos. Por exemplo, um romance seria a classe de todas as suas cópias, e uma ópera seria a classe de todas as suas performances. No entanto, essa abordagem enfrenta objeções: (i) Se uma obra de arte é uma classe de cópias ou performances que continuam a ser produzidas indefinidamente, então "não há tal momento" em que a obra é completa, o que contradiz a ideia de um autor escrevendo um romance ou um compositor terminando uma ópera; (ii) é difícil explicar como uma obra existiria no caso de sinfonias nunca executadas ou poemas sem manuscrito; (iii) em relação a algumas obras, nos referimos à arte como a “obra original” da qual as demais são cópias, o que parece não se enquadrar na sugestão de classes; (iv) a teoria não explica como definir se uma cópia faz parte da mesma classe que outra ou quão semelhante uma obra precisa ser para ser da mesma classe.
Outra teoria é a hipótese do artista, segundo a qual, obras de arte são expressivas porque foram produzidas em um certo estado mental ou emocional do artista, e que é essa condição que elas expressam. A isso pode-se objetar observando que um artista pode rejeitar uma obra por não corresponder ao que ele sentiu. Além disso, essa hipótese torna a expressividade uma característica puramente externa, inferida da história da obra em vez de observável nela. Por outro lado, de acordo com a hipótese do espectador, as obras são expressivas porque produzem (ou podem produzir) um certo estado mental ou emocional no espectador, e que é essa condição que elas expressam. Essa hipótese, no entanto, é claramente falsa, pois é possível permanecer mais ou menos desinteressado pela emoção que uma obra extremamente intensa supostamente expressa.
O conceito de expressão na arte é, na verdade complexo, e reside na intersecção de duas noções constituintes de expressão: (i) expressão natural: a obra de arte sai tão direta e imediatamente de algum estado emocional ou mental particular que traz marcas inconfundíveis desse estado; (ii) correspondência: aplicamos essa noção quando um objeto é expressivo de uma certa condição porque, quando estamos nessa condição, "parece corresponder ao que experimentamos internamente". Essa visão permite a preocupação com o que o artista sentiu (expressão natural) e com o espectador (correspondência).
Para lidar com casos como a música e a literatura que podem ter diferentes reproduções, pode-se trabalhar com a distinção entre tipos e exemplos é fundamental para entender como as obras de arte podem existir para além de suas manifestações físicas específicas. Embora algumas artes sejam "tipos" com múltiplas instâncias físicas, a obra de arte como tipo ainda possui propriedades que são transmitidas por seus exemplares. A interpretação é uma característica intrínseca e necessária das obras de arte (especialmente das performáticas, mas com paralelos nas não-performáticas).
VI. VARIEDADES DE ARTE
– Stephen Davies
A ontologia é o estudo da maneira pela qual as coisas existem. Questões ontológicas são fundamentais para localizar e caracterizar obras de arte antes que possam ser analisadas, descritas, executadas, apreciadas ou avaliadas. De acordo com o contextualismo ontológico, a identidade e o conteúdo de uma obra de arte são gerados, em parte, por suas relações com o ambiente socio-histórico em que foi criada. As obras de arte são, portanto, públicas, criadas (e não descobertas), e sua identidade é moldada pelo contexto de sua produção, ainda que possam adquirir novas propriedades ao longo do tempo sem que isso altere sua identidade fundamental. A ontologia da arte revela uma considerável diversidade, dependendo tanto do tipo de obra quanto dos modos de produção, transmissão e recepção envolvidos.
Para que uma obra de arte seja apreciada e identificada, é necessário que esteja disponível publicamente em alguma forma perceptível, seja como objeto físico, performance ou codificação. Embora alguns filósofos tenham defendido que a obra de arte reside apenas na mente do artista, tal concepção pode ser rejeitada por não explicar satisfatoriamente a experiência intersubjetiva que caracteriza a fruição estética. As obras existem quando são apresentadas ou codificadas de forma pública, mesmo que possam ter múltiplas instâncias ou existirem de forma efêmera. Nesse contexto, contrasta-se o platonismo ontológico, segundo o qual obras seriam padrões eternos descobertos pelos artistas, com a concepção mais difundida de que obras são criações humanas. O platonismo pode ser criticado por contradizer a intuição comum de que os artistas são agentes criativos, e não meros descobridores de entidades abstratas preexistentes.
Algumas obras são concebidas para ter múltiplas instâncias, como romances, filmes ou composições musicais, enquanto outras permanecem singulares, como pinturas ou esculturas artesanais. Obras múltiplas podem apresentar variações consideráveis entre suas instâncias, especialmente nas artes performáticas, sem que isso comprometa sua identidade, desde que tais variações estejam dentro de parâmetros previstos. Em certos casos, a obra pode existir mesmo antes de ser apresentada publicamente, desde que haja um meio técnico ou material pronto para sua instanciação, como uma partitura, um molde ou um arquivo digital. Mesmo dentro de uma mesma modalidade artística, pode haver diversidade ontológica significativa: a música, por exemplo, inclui improvisações efêmeras, tradições orais, obras notadas com alto grau de precisão e composições eletrônicas destinadas à reprodução mecânica.
Apesar de as obras de arte adquirirem novas interpretações, significados e propriedades ao longo do tempo, tais mudanças não afetam os aspectos centrais de sua identidade, como autoria, gênero, datação e conteúdo essencial. Mudanças na percepção pública, restaurações materiais ou interpretações anacrônicas, como aquelas baseadas em teorias posteriores à criação da obra podem influenciar o modo como ela é experimentada, mas não alteram sua constituição ontológica fundamental. Mesmo revisões realizadas pelo próprio artista podem gerar ambiguidade quanto à versão definitiva da obra, mas não implicam necessariamente na criação de uma nova entidade artística. A identidade de uma obra, portanto, permanece ancorada no contexto de sua criação e não depende das variações interpretativas que surgem ao longo de sua recepção histórica.
VII. O QUE UM TRABALHO MUSICAL É?
- Jerrold Levinson
A distinção entre artes autográficas e alográficas, formulada originalmente por Nelson Goodman, fornece um ponto de partida fundamental para a reflexão ontológica sobre a natureza das obras de arte. Nas artes autográficas, como a pintura ou a escultura, mesmo uma falsificação perfeita não é considerada uma instância genuína da obra, pois a história de produção é determinante para sua identidade. Já nas artes alográficas, como a música, a literatura ou o cinema, a obra pode ser multiplicada em cópias fiéis, e sua identidade repousa sobre uma notação ou esquema que permite múltiplas instâncias legítimas.
Essa distinção, embora formulada em termos de tipos de arte, pode ser estendida às obras individuais. No entanto, a maneira como Goodman utiliza a expressão "obra de arte" revela uma ambiguidade conceitual, alternando entre referência a objetos físicos (exemplares) e a entidades abstratas (tipos). Tal ambiguidade exige esclarecimento, especialmente ao se considerar que, em algumas artes, o que conta como a obra não é o objeto empírico, mas a estrutura formal ou a configuração simbólica que ele manifesta.
No caso das artes autográficas, a impossibilidade de uma reprodução autêntica sem a história de produção correta fundamenta a rejeição da falsificação como instância válida da obra. Em contraste, nas artes alográficas, o critério de identidade está ligado à fidelidade à notação. A presença de um sistema de notação adequado permite que qualquer instância corretamente derivada dele seja considerada uma manifestação legítima da obra, independentemente de quem a execute ou onde seja realizada.
As implicações dessa distinção são amplas. Nas artes autográficas, o valor do original está vinculado à sua autenticidade material e à sua trajetória histórica, o que torna a conservação e a crítica especialmente delicadas. Já nas artes alográficas, a preservação da obra passa pela manutenção de sua notação ou matriz simbólica, permitindo que seja reiteradamente recriada em novas situações. Além disso, essa distinção informa diferentes modos de engajamento estético, dependendo se a obra exige contato com o exemplar original ou se pode ser fruída por meio de múltiplas performances ou cópias.
Embora a distinção entre o autográfico e o alográfico seja poderosa, ela não resolve por completo as questões sobre a natureza da obra de arte. Em certos casos, especialmente em práticas artísticas contemporâneas ou híbridas, os limites entre esses dois modos de existência tornam-se fluidos. Ainda assim, a diferenciação entre a dependência ou não da história de produção para a identidade da obra continua a oferecer uma estrutura conceitual valiosa para compreender como as obras de arte existem, são transmitidas, e como devem ser preservadas ou avaliadas.
VIII. CONCEITOS ESTÉTICOS
- Frank Sibley
A análise de conceitos estéticos exige distinguir cuidadosamente entre os conceitos estéticos e os não-estéticos. Enquanto conceitos como "vermelho", "áspero" ou "cheio de curvas" se referem a características perceptíveis de forma direta e mensurável, podendo, portanto, ser ensinados ou aplicados mediante regras, conceitos como "elegante", "gracioso" ou "melancólico" requerem uma sensibilidade específica. Esses últimos não se aplicam por meio de condições suficientes ou inferências lógicas baseadas em propriedades observáveis; exigem, antes, um tipo especial de percepção estética.
Ainda que os conceitos estéticos dependam, em algum sentido, de propriedades não-estéticas, por exemplo, uma obra pode ser graciosa por apresentar linhas fluidas e leves, essa dependência não é do tipo que permita o estabelecimento de critérios objetivos ou regras gerais para aplicação. Não se pode dizer que toda obra com certas características será elegante, nem que toda ausência delas implicará sua negação. Trata-se, portanto, de um tipo de discernimento que escapa à codificação e depende de uma sensibilidade desenvolvida para perceber tais qualidades diretamente.
O aprendizado e a aplicação de conceitos estéticos ocorrem, assim, por outros meios: por meio de exemplos, contrastes, metáforas e analogias. O crítico, ao descrever uma obra como "delicada" ou "vívida", não oferece provas nem deduções, mas convida o ouvinte a ver por si mesmo. Mesmo que haja concordância quanto às propriedades não-estéticas, a percepção estética requer mais do que observação; exige um tipo de apreensão que não pode ser imposta nem plenamente comunicada por descrição.
Essa distinção tem implicações fundamentais para a crítica de arte. A tarefa do crítico não é simplesmente relatar fatos observáveis, mas orientar a percepção do leitor, de modo que ele possa desenvolver ou ativar a sensibilidade necessária para discernir as qualidades estéticas em questão. A crítica eficaz, portanto, não demonstra nem prova; ela revela, tornando visível aquilo que está presente apenas para quem possui o olhar treinado.
Tal como ocorre com as percepções sensoriais, nas quais não se pode ensinar alguém a "ver vermelho" por meio de regras, a percepção estética requer familiaridade e exposição ao fenômeno, bem como a posse de uma capacidade perceptiva apropriada. A conclusão, portanto, é que os conceitos estéticos constituem uma categoria distinta, cuja aplicação exige julgamento, sensibilidade e experiência, e não a simples observância de condições fixas ou protocolos analíticos.
IX. CATEGORIAS DE ARTE
- Kendall L. Walton
A forma como uma obra de arte é percebida depende fundamentalmente da categoria artística na qual ela é enquadrada. A percepção estética não é neutra ou puramente sensorial; ela é moldada por estruturas conceituais e contextuais que determinam quais propriedades da obra se tornam salientes. Uma mesma configuração material pode ser vista como expressiva, caótica ou banal, dependendo da categoria que orienta sua recepção. Assim, a apreciação estética adequada de uma obra requer que ela seja percebida dentro de categorias apropriadas, determinadas em parte por suas circunstâncias de produção e pelas práticas artísticas relevantes.
Para desenvolver esse argumento, é necessário distinguir entre três tipos de propriedades atribuídas a obras de arte dentro de uma categoria: (i) propriedades padrão: são aquelas cuja presença qualifica uma obra como pertencente à categoria em questão; (ii) propriedades variantes: são propriedades neutras em relação à classificação à categoria em questão; (iii) propriedades contra-padrão: são aquelas cuja presença tende a desqualificar a obra para aquela categoria. A mesma característica pode pertencer a classes diferentes dependendo da categoria adotada; por exemplo, a bidimensionalidade é padrão para pinturas, mas contra-padrão para esculturas.
Esse enquadramento categorial não é uma convenção arbitrária, mas está enraizado nas circunstâncias históricas e culturais da produção da obra. A intenção do artista, os meios técnicos empregados, o contexto de criação e o sistema de recepção da obra são fatores decisivos para determinar a categoria mais adequada. Uma obra deve ser percebida na categoria para a qual ela possui propriedades padrão em número significativo, é mais interessante quando assim percebida, e cuja categoria seja historicamente estabelecida ou relevante no momento de sua criação.
A aplicação equivocada de categorias pode comprometer profundamente a experiência estética. Perceber uma obra em uma categoria inadequada pode levar a uma valorização distorcida de suas qualidades, ou mesmo à incapacidade de percebê-las. Assim como não se ouve da mesma maneira uma sequência sonora quando interpretada como música tonal ou como música atonal, tampouco se vê da mesma forma uma pintura quando ela é percebida como pertencente à tradição clássica ou à arte conceitual.
Conclui-se, portanto, que a ontologia estética de uma obra não está contida apenas em suas propriedades físicas ou formais, mas na rede conceitual e histórica que determina como essas propriedades são vistas. A teoria estética deve, assim, levar em conta as categorias da arte como determinantes da percepção e da avaliação, reconhecendo que a identidade estética de uma obra está ligada às categorias que estruturam sua recepção significativa.
X. O MITO DA ATITUDE ESTÉTICA
- George Dickie
A noção de uma atitude estética especial deve ser rejeitada, pois não constitui condição necessária ou suficiente para a apreciação da arte. A ideia de que para experienciar uma obra de arte é preciso adotar uma postura mental específica, marcada por distanciamento, desinteresse prático e foco exclusivo nas qualidades do objeto, é equivocada e não reflete a complexidade da interação estética. Tal atitude é um mito que confunde estados psicológicos comuns com uma suposta condição essencial para o engajamento artístico.
As formulações clássicas da atitude estética, como a “distância psíquica” e o “desinteresse”, não descrevem uma postura única, mas sim estados que podem ocorrer em diversas situações, não sendo exclusivos da experiência estética. A suspensão dos interesses pessoais não caracteriza uma atitude especial, visto que não está claro se é sequer possível ou desejável tal suspensão completa na apreciação da arte. Portanto, a tentativa de definir a experiência estética por meio do desinteresse prático falha, pois essa condição é insuficiente para garantir a percepção ou valorização artística.
Além disso, a adoção da suposta atitude estética não assegura a apreensão ou o apreço de uma obra de arte. Uma pessoa pode observar uma obra com desinteresse e distanciamento sem que isso resulte em verdadeira apreciação ou entendimento. Assim, a experiência estética depende mais do conhecimento cultural, do contexto social e das convenções que estruturam o “mundo da arte” do que de um estado mental particular.
A apreciação artística deve ser compreendida como uma resposta situada dentro das práticas, instituições e convenções sociais que conferem status artístico a certos objetos. A interação com a obra é regulada por essas condições institucionais, e não pela adoção de uma postura mental especial. O papel do apreciador está ligado à sua inserção nesse contexto cultural, não a uma atitude mental isolada.
Em suma, o conceito de atitude estética como requisito essencial da experiência artística deve ser rejeitado por sua imprecisão conceitual e por não corresponder à forma real como as pessoas se relacionam com a arte. A atenção deve voltar-se para as condições institucionais e sociais que definem a arte e moldam sua apreciação, permitindo uma compreensão mais precisa e fundamentada da experiência estética.
XI. O QUE É EXPERIÊNCIA ESTÉTICA?
- Alan H. Goldman
A experiência estética não pode ser adequadamente explicada por abordagens que restringem sua definição a propriedades objetivas estreitas ou a uma atitude desinteressada do sujeito. Abordagens objetivas estreitas, que limitam a experiência ao reconhecimento de formas ou estruturas específicas, falham em captar a natureza complexa e integrativa do engajamento estético, pois a mera percepção de características formais não assegura a experiência estética. Por outro lado, abordagens objetivas amplas que incluem significados e expressividade tendem a diluir a especificidade do conceito estético, incorporando aspectos que não distinguem claramente a experiência estética de outras formas de experiência.
Ademais, a concepção da experiência estética como uma atitude externa, marcada pelo desinteresse prático ou distanciamento psicológico, deve ser rejeitada por não representar uma condição necessária ou suficiente para a apreciação estética. Tal atitude não é exclusiva da experiência estética e sua imposição ignora as variadas formas pelas quais as pessoas podem se relacionar com a arte.
Pode-se propor, portanto, uma concepção subjetiva ampla da experiência estética, que reconhece a simultaneidade e a inseparabilidade das faculdades mentais, percepção, imaginação, emoção e cognição, na constituição dessa experiência. Esta abordagem enfatiza que a experiência estética envolve um engajamento total e ativo com a obra, no qual o indivíduo é absorvido por um "mundo alternativo" que a obra cria, permitindo não apenas a apreensão sensorial, mas também o entendimento temático e um discernimento cognitivo.
Esta concepção permite explicitar por que as obras paradigmáticas da arte são aquelas que mobilizam de forma integrada as diversas faculdades do apreciador, criando experiências enriquecidas que transcendem a simples apreciação formal. Além disso, esclarece respostas a dilemas estéticos tradicionais, tais como a rejeição do melodrama pela sua superficialidade emocional, a valorização da sutileza pelo seu engajamento multifacetado e a distinção entre valor estético e valor artístico em relação ao conteúdo moral ou cognitivo da obra.
Assim, a experiência estética é singular ao combinar engajamento mental completo com uma suspensão da atividade prática no mundo real, configurando-se como uma forma específica de experiência que exige sensibilidade e discernimento para ser plenamente vivida. Assim, a experiência estética não pode ser reduzida a aspectos isolados, mas deve ser compreendida como uma totalidade complexa e integrada, fundamental para a avaliação e fruição das obras de arte.
XII. BELEZA RESTAURADA
- Mary Mothersill
Não existem, nem poderão existir. leis de gosto. A refutação da existência de leis de gosto permite reabilitar a beleza como uma qualidade intrínseca e primária da experiência estética, alheia a qualquer regramento formal ou preditivo. A pretensão de que juízos estéticos possam ser regulados por leis gerais, no modelo das leis científicas, repousa sobre uma confusão conceitual: a de que o prazer estético é previsível a partir de propriedades determináveis da obra e de um sujeito suficientemente qualificado. Mas essa expectativa se dissolve quando confrontada com a experiência real do gosto, que é descontínua, surpreendente e refratária à generalização.
A crença na existência de princípios normativos do gosto depende da suposição oculta de que haveria leis descritivas que fundamentassem esses princípios. Uma vez negada a existência de tais leis, os princípios perdem sua autoridade. A experiência estética não se reduz a reconhecer traços fixos, mas consiste em encontrar, em contextos particulares, um prazer que não é garantido nem por hábitos anteriores nem por estruturas formais identificáveis de antemão.
Mesmo preferências consolidadas falham como base para generalizações robustas. A afinidade por certos estilos, gêneros ou autores não autoriza inferências sobre a recepção futura de obras semelhantes. A tentativa de substituir o juízo pela previsão é conceitualmente vazia: ela resulta ou em tautologias (“gostarei do que for do tipo das coisas que gosto”) ou em erros empíricos. A crítica que pretende normatividade universal esquece que toda resposta estética genuína emerge de um encontro particular, não de uma regra aplicada.
A distinção entre princípios e leis é crucial: sem leis de gosto, não há base objetiva para princípios de gosto no sentido normativo. Isso não significa, contudo, que os juízos estéticos sejam arbitrários ou que a crítica esteja condenada ao relativismo. Mas a crítica não opera por dedução, opera por persuasão, por meio da evocação atenta das qualidades que tornam uma obra uma fonte de prazer. Descrever bem é mais decisivo que formular regras.
O juízo de gosto, enfim, é validado pela experiência, não por sua conformidade com critérios externos. Ele não é uma inferência, mas uma constatação sensível: a beleza se encontra, não se demonstra. A tentativa de fundá-lo em princípios é uma tentativa mal orientada de substituir o gosto pela teoria. Contra essa tendência, é preciso reafirmar que a autoridade do juízo estético repousa, em última instância, na experiência concreta do prazer estético.
XIII. VALOR ESTÉTICO E GOSTO PESSOAL
- Jerrold Levinson
O valor artístico de uma obra não reside nem na resposta subjetiva arbitrária de indivíduos particulares, nem em critérios objetivos rígidos e impessoais. Ele deve ser compreendido como fundamentado na experiência estética, mas de forma idealizada — isto é, na capacidade da obra de proporcionar prazer estético a observadores devidamente qualificados. Trata-se de um prazer não casual, mas específico, que emerge do engajamento sensível, conhecedor e atento com a obra, e que pode ser cultivado. Assim, a apreciação estética é ao mesmo tempo enraizada na experiência humana e guiada por padrões normativos que transcendem as preferências pessoais imediatas.
Para tornar esse fundamento experiencial compatível com a objetividade do valor, é necessário recorrer à figura dos "apreciadores ideais", indivíduos teóricos dotados de conhecimento histórico, abertura estética, discernimento refinado e sensibilidade contextual. É a esses apreciadores, sob condições adequadas de fruição, que se atribui a capacidade de aferir o verdadeiro mérito de uma obra. O valor artístico, portanto, é concebido como a medida do prazer estético de alta qualidade que uma obra pode proporcionar a tais sujeitos, independentemente de gostos contingentes ou de modas culturais passageiras.
Essa concepção permite compreender como juízos de valor podem ser legitimamente debatidos, sem serem meramente subjetivos, nem falsamente universalizantes. O gosto pessoal é variável, mas passível de desenvolvimento e alinhamento gradual com os padrões do apreciador ideal. Assim, alguém pode reconhecer o valor de uma obra mesmo sem apreciá-la pessoalmente, admitindo uma lacuna em sua formação estética. Ao situar o valor artístico nessa interseção entre prazer subjetivo idealizado e padrões normativos construídos intersubjetivamente, é possível tanto o relativismo cético quanto o dogmatismo normativo.
XIV. CRÍTICA E INTERPRETAÇÃO
- Noël Carroll
A interpretação é parte essencial da crítica artística, especialmente quando lidamos com obras que apresentam alguma complexidade expressiva, narrativa ou temática. Nem toda obra exige interpretação, há casos em que o sentido é direto ou superficialmente acessível, mas quando a interpretação é requerida, ela deve preceder a avaliação. Antes de julgar se uma obra é bem-sucedida, é necessário compreender o que ela está tentando fazer. Isso envolve identificar seu tema, sua tese, ou suas propriedades expressivas, tristeza, alegria, inquietude, por exemplo, e só então examinar se os meios utilizados foram adequados a esse propósito.
Há várias teorias concorrentes sobre como determinar o significado de uma obra. De acordo com o intencionalismo, o significado é dado pelas intenções reais do artista. desde que estas estejam em conformidade com os elementos da obra. Essa concepção evita extremos ao rejeitar tanto intenções “fora da curva”, que não se conectam com o que está na obra, quanto uma autonomia total do texto que ignoraria o ato comunicativo do autor. A intenção, nesse modelo, não é arbitrária nem metafísica: ela se manifesta nas escolhas feitas na obra, nas convenções que o artista invoca e até nas falhas deliberadas de expectativa. A interpretação é um processo inferencial que busca reconstruir essas intenções a partir de indícios públicos e textuais.
Por outro lado, de acordo com o formalismo linguístico, o significado de uma obra de arte está inteiramente nos elementos linguísticos ou formais da obra, como se fossem dados objetivos autossuficientes. Já o experiencialismo é a tese de que uma obra é aquela que oferece a experiência estética mais rica possível, mesmo que para isso seja preciso ignorar ou distorcer a intenção do artista. Ambas as posições falham por não reconhecerem que a arte é uma forma de ação comunicativa. O significado de uma obra está vinculado ao que o artista tentou comunicar por meio das escolhas que fez. Isso é ainda mais claro em formas não linguísticas de arte, como cinema, pintura, música ou dança, nas quais não há “dicionário” que dite o sentido das imagens ou sons. Mesmo na literatura, muitas dimensões da obra, estrutura, ritmo, caracterização, exigem mais do que consulta ao léxico: elas convidam à reconstrução das razões por trás das escolhas do autor.
Por isso, o modelo mais plausível para a interpretação artística trata as obras como produtos intencionais, cujos significados são estabelecidos pelo que o artista fez com o objetivo de ser compreendido. A obra é uma ação estruturada, e sua inteligibilidade depende de captar as intenções que a guiaram. Interpretar, portanto, é compreender essas intenções a partir da obra, não projetar fantasias subjetivas nem se limitar a dados linguísticos fixos. A crítica séria é, assim, uma forma de escuta atenta e reconstrução racional do gesto artístico.
XV.FILOSOFIA FEMINISTA DA ARTE
- A.W. Eaton
A filosofia feminista da arte tem como objetivo central combater a subordinação das mulheres tanto na prática artística quanto nos discursos filosóficos e críticos sobre arte. Trata-se de um campo interdisciplinar, que dialoga com áreas como história da arte, estudos de gênero, psicanálise, teoria do cinema e diversas vertentes da filosofia feminista. A filosofia feminista da arte parte do princípio da situacionalidade: artistas e públicos vivenciam e valorizam o mundo a partir de suas posições sociais específicas, entre as quais o gênero é uma dimensão crucial. Essas diferenças, porém, não são neutras; refletem hierarquias onde homens gozam de privilégios e mulheres enfrentam desvantagens estruturais.
Com base nisso, propõem-se perguntas centrais: o sexo ou o gênero afetam sistematicamente a prática artística, o julgamento estético ou a crítica? Esses efeitos são fixos ou mutáveis? Seria possível falar de neutralidade de gênero nas estruturas dominantes da filosofia da arte? Tais questões exigem atenção tanto empírica quanto filosófica. Algumas são investigáveis por meio da psicologia, da história da arte ou da ciência cognitiva; outras demandam o exame crítico das suposições filosóficas que moldam a teoria estética. Importa também enfrentar com seriedade o papel do sexo, entendido não de maneira essencialista, mas como dimensão encarnada da situacionalidade socialmente moldada.
O problema da formação do cânone artístico expõe três formas de viés persistentes: (i) a representação estereotipada das mulheres nos grandes trabalhos (como objetos do "olhar masculino"); (ii) a quase ausência de mulheres entre os “grandes artistas”; e (iii) a exclusão de objetos tradicionalmente produzidos por mulheres, como bordados e colchas, da categoria de “arte”, relegando-os ao estatuto inferior de “artesanato”. Diante disso, duas abordagens se destacam: (i) humanismo: sustenta que as mulheres têm o mesmo potencial artístico que os homens, e que sua sub-representação é explicável por barreiras sociais históricas; (ii) ginecentrismo: afirma que existe uma diferença essencial, relacionada à experiência corporal e à sensibilidade feminina, que demanda critérios próprios de avaliação estética, ainda que isso levante questões difíceis sobre essencialismo, estilo "feminino" e o risco de segregação.
A tradição filosófica também é alvo de críticas: conceitos como "gênio", "obra-prima" e a dicotomia belo/sublime carregam marcas de gênero. A estética formalista, ao privilegiar a forma e excluir o conteúdo, muitas vezes invisibiliza interesses e valores femininos. A separação entre arte e ofício contribui para a desvalorização do trabalho artístico das mulheres. Diante disso, surgem dois caminhos: (i) perspectivismo: propõe abandonar a pretensão de universalidade e abraçar um pluralismo de gostos e valores; e (ii) revisionismo: propõe reformular criticamente conceitos tradicionais (como gosto, neutralidade, gênio), purgando-os de seus vieses androcêntricos sem abandonar sua função normativa. Esta segunda via, que busca integrar obras de mulheres ao cânone e reavaliar criticamente as obras consagradas, é a tarefa mais urgente da filosofia feminista da arte.
O futuro do campo exige aprofundar o diálogo com disciplinas empíricas para compreender melhor o impacto do sexo e do gênero na prática e na experiência estética. Também é fundamental ampliar o escopo do que se considera digno de investigação estética, incluindo temas tradicionalmente associados ao feminino, como moda, beleza, alimentação e corporalidade. Por fim, a filosofia feminista da arte deve atender à crítica da interseccionalidade: o combate à opressão de gênero precisa caminhar junto com a luta contra o racismo, o classismo e outras formas de exclusão, reconhecendo e incorporando os saberes produzidos por pensadoras e artistas fora dos espaços tradicionais da filosofia.
XVI. VALOR ARTÍSTICO
- Malcolm Budd
O valor artístico de uma obra de arte deve ser rigorosamente distinguido de outras formas de valor que ela possa possuir, como valor cognitivo, social, educacional, histórico, sentimental, religioso, econômico ou terapêutico. Ao invés de depender de efeitos externos ou utilitários, o valor artístico reside na qualidade intrínseca da experiência que a obra oferece quando é compreendida e apreciada de modo adequado. Essa experiência envolve um engajamento ativo com todas as propriedades esteticamente relevantes da obra, exigindo conhecimento e atenção sensível. É, portanto, uma experiência do próprio trabalho de arte, um tipo que pode ser instanciado múltiplas vezes e aproximado mais ou menos de perto, e não apenas uma resposta subjetiva ou uma emoção genérica.
Tal valor é considerado intrínseco porque a recompensa que a experiência oferece não é separável do modo como a obra se apresenta. Não se trata de um efeito colateral instrumental, como o valor de uma droga que produz um efeito independentemente de sua ingestão. O valor artístico reside na experiência em si, em sua completude, unidade e riqueza, sendo condicionado por elementos como forma, conteúdo, estilo e complexidade. A relação entre artista e espectador é fundamental nesse processo: o artista cria visando oferecer uma experiência significativa, enquanto o espectador deve se engajar com a obra de maneira informada e atenta. A apreciação da obra de arte é a apreciação da arte do artista, o que exige uma compreensão da realização artística que a obra representa, de modo que a experiência da obra deve ser informada por uma compreensão dos fatos esteticamente relevantes sobre a história da obra.
Por fim, a determinação do valor artístico de uma obra exige contato direto com ela. Juízos baseados apenas em relatos, testemunhos ou extrapolações de outras obras carecem da vivência necessária para apreender o valor intrínseco que a obra oferece. A experiência estética requer familiaridade, contexto e sensibilidade. E, embora as obras de arte possam comunicar ideias, seu valor artístico não reside apenas nessas ideias, mas na forma como são incorporadas, articuladas e vivenciadas na experiência proporcionada pela própria obra. O que uma obra de arte comunica pode ser parte integrante de seu valor artístico, se for parte integrante da experiência que a obra oferece.
XVII. VALOR ESTÉTICO, ARTE E COMIDA
- Carolyn Korsmeyer
A questão de se uma refeição pode ser considerada uma obra de arte e se o ato de comer pode proporcionar experiências estéticas tem ganhado interesse recente na filosofia. Embora a ética da alimentação tenha uma longa tradição, seu tratamento no âmbito da estética é mais recente, especialmente na tradição ocidental. Comer envolve múltiplos sentidos, visão, tato, audição, além do paladar e olfato, e práticas culturais criam normas e padrões que sugerem um valor estético. Contudo, conceitos estéticos tradicionais tendem a excluir a satisfação física, dificultando a aceitação da comida enquanto arte.
Historicamente, filósofos como Platão e Aristóteles discutiram o papel do prazer corporal em relação à razão e à virtude, com Platão condenando o excesso dos sentidos e Aristóteles defendendo a moderação. A separação entre “sentidos estéticos” (visão e audição) e prazeres corporais reforçou a ideia de que o sabor é subjetivo e pouco confiável para juízos estéticos. O gosto, embora usado metaforicamente na estética, não era associado à experiência estética legítima devido a essas distinções.
Com o desenvolvimento da gastronomia moderna, houve tentativas de elevar a comida ao status de arte, especialmente através do jantar requintado e da apresentação cuidadosa dos pratos. Ainda assim, o foco costuma permanecer no prazer sensorial imediato, sem reconhecer a profundidade expressiva e cognitiva que a comida pode ter. Essa separação reforça a distinção entre o valor estético do sabor e as implicações éticas da produção e do consumo dos alimentos.
Recentemente, conceitos de arte e estética tornaram-se mais flexíveis, e avanços científicos indicam que o gosto pode ter bases comuns, permitindo julgamentos normativos semelhantes aos feitos em outras artes. Além disso, o contexto cultural e social confere significado à comida, evidenciando que valores estéticos e éticos podem se entrelaçar. Conhecer a origem, o preparo e o impacto moral dos alimentos afeta diretamente a experiência gustativa, mostrando que sabor e ética estão conectados.
Em certos casos, como no consumo de alimentos cuja obtenção envolve sofrimento animal, os valores estéticos e morais são inseparáveis. A carne cultivada em laboratório surge como uma possível solução para dissociar esses valores, embora questões sobre a memória cognitiva da crueldade permaneçam. Assim, ao contrário das tradicionais separações filosóficas, a experiência do sabor raramente é dissociada do juízo moral, unindo estética e ética no ato de comer.
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