O CONCEITO DE ANGÚSTIA (RESUMO)



       O que se segue é um resumo da obra “O Conceito de Angústia” de Søren Aabye Kierkegaard. Søren Kierkegaard foi um filósofo e teólogo dinamarquês considerado o pai da Filosofia Existencial. Sua obra trata da angústia de um ponto de vista psicológico-descritivo e do ponto de vista teológico, considerando a sua relação com o pecado. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.


INTRODUÇÃO

       Cada problema científico tem, dentro do vasto âmbito da ciência, seu lugar determinado. O presente escrito estabeleceu como sua tarefa tratar o conceito "angústia" de um ponto de vista psicológico, de modo a ter em mente e diante dos olhos o dogma do pecado hereditário. Neste sentido, esta é uma tarefa que interessa à Psicologia, e que aponta para a Dogmática.

I. ANGÚSTIA COMO PRESSUPOSIÇÃO DO PECADO HEREDITÁRIO

        Tem-se entendido o conceito de primeiro pecado como idêntico ao pecado de Adão que ocasionou a Queda. Adão teria sido aquele que introduziu o pecado hereditário. Explicar o pecado de Adão é, portanto, explicar o pecado hereditário.
       Para o Catolicismo, Adão teria perdido o dom divino sobrenatural, para os Federalistas, o pecado de Adão foi um pecado de toda Humanidade nele representada federalmente. Ambas as explicações nada explicam, naturalmente, já que a primeira explica em eliminando o que ela mesma havia inventado; a segunda apenas inventa algo que nada explica.
        Outros entendem que o pecado de Adão é uma coisa passada e que o pecado hereditário é o presente, enquanto outros compreendem o pecado hereditário como uma pena. A Igreja grega designa o pecado hereditário como pecado do primeiro pai. Tertuliano concebeu a ideia de vício de origem, enquanto Agostinho falou de pecado original. O Escolasticismo, fala de perda da imagem de Deus e da justiça original, ideia que foi rejeitada pelo Protestantismo. Doutrina da Redenção ensina que Cristo deu plena satisfação pelo pecado hereditário.
       É preciso sustentar contra o pelagianismo (doutrina que nega o pecado hereditário dizendo que sendo cada indivíduo singular, o pecado não pode ser transmitido), que é essencial da existência humana que o homem seja indivíduo e, ao mesmo tempo, que ele seja todo o gênero humano, de maneira que a humanidade participa toda inteira do indivíduo, e o indivíduo participa de todo o gênero humano. A cada momento as coisas se passam de tal modo que o indivíduo é ele mesmo e o gênero humano. Adão é o primeiro homem, ele é ao mesmo tempo ele mesmo e o gênero humano. Por isso, aquilo que explica Adão, explica o gênero humano, e vice-versa.
       Conforme conceitos tradicionais, a diferença entre o primeiro pecado de Adão e o primeiro pecado de qualquer homem é esta: o pecado de Adão condiciona a pecaminosidade como consequência, o outro primeiro pecado pressupõe a pecaminosidade como condição. Se assim fosse, então Adão ficaria realmente fora do gênero humano, e este começaria não com ele, mas teria um começo fora de si mesmo, o que contraria qualquer conceito.
        O primeiro pecado significa algo diferente de um pecado qualquer e algo diferente de um só pecado.  Com o primeiro pecado, entrou o pecado no mundo. Exatamente do mesmo modo vale isso a respeito do primeiro pecado de qualquer homem posterior, que com este o pecado entra no mundo. Conforme a narrativa de Gênesis, que tem sido negligentemente considerada um mito, o pecado entrou no mundo por meio de um pecado. Com o primeiro pecado, a pecaminosidade penetrou em Adão.
       Visto que a Humanidade não recomeça com cada indivíduo, a pecaminosidade do gênero humano adquire uma história.  A história da humanidade prossegue tranquilamente em seu caminho, ao longo do qual nenhum indivíduo começa no mesmo ponto em que o outro começou, enquanto que cada indivíduo começa do começo e, no mesmo instante, está lá onde ele deveria começar na história.
       Como Adão perdeu a inocência pela culpa, assim a perde todo e qualquer homem. Segundo a narrativa de Gênesis, inocência é ignorância. No estado de inocência há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há que se dizer que nesse estado não há nada contra o que lutar. Diante desse nada, nasce a angústia. Este é o segredo profundo da inocência, que ela ao mesmo tempo é angústia. A angústia que está posta na inocência, primeiro não é uma culpa e, segundo, não é um fardo pesado, um sofrimento que não se possa harmonizar com a felicidade da inocência.
       A angústia é uma qualificação do espírito que sonha, e pertence como tal à Psicologia. Na vigília está posta a diferença entre meu eu e meu outro: no sono, está suspensa, e no sonho ela é um nada insinuado. O conceito de angústia não deve ser confundido com o conceito de medo e outros conceitos semelhantes que se referem a algo determinado.
       Mas como foi perdida a inocência? Uma explicação psicológica foi fornecida por Leonhard Usteri que busca demonstrar que foi justamente a proibição de não comer da árvore da ciência o que fez nascer o pecado de Adão. Quando, pois, se admite que a proibição desperta o desejo, obtém-se ao invés da ignorância, um saber, pois neste caso Adão deve ter tido um saber acerca da liberdade, uma vez que o prazer consistia em usá-la.
        A proibição o angustia porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que tinha passado desapercebido pela inocência como o nada da angústia, agora se introduziu nele mesmo, e aqui de novo é um nada: a angustiante possibilidade de ser-capaz-de. Assim, a possibilidade da liberdade não consiste em poder escolher o bem ou o mal. A possibilidade consiste em ser-capaz-de. A angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade, é uma determinação intermediária entre a possibilidade e a realidade.
       Às palavras da proibição seguem-se as palavras da sentença: “Certamente tu morrerás”. A infinita possibilidade de ser-capaz-de, que a proibição despertou, aproxima-se agora ainda mais porque esta possibilidade manifesta outra possibilidade como sua consequência, a morte. Assim, a inocência foi levada ao seu extremo. Ela está na angústia em relação com o proibido e com o castigo. Ela não é culpada e, não obstante, há uma angústia, como se ela já estivesse perdida.
        Segundo a narrativa bíblica, a mulher foi a primeira a ser seduzida e foi ela quem seduziu o homem, de modo que a mulher é o sexo mais frágil e a angústia é mais própria da mulher do que do homem. Eva foi criada a partir de uma criatura precedente, de modo que ela é o derivado. É verdade que ela é inocente tal como Adão, mas há também como que um pressentimento de uma disposição, que decerto não é, mas pode parecer como uma alusão à pecaminosidade posta pela procriação.
       Com a Queda, o pecado adentrou o mundo e a sexualidade foi estabelecida. Sem o pecado, não há sexualidade e, sem sexualidade, não há história. É a sexualidade que possibilita a história do gênero humano.

II. ANGÚSTIA NA PROGRESSÃO DO PECADO HEREDITÁRIO

         Junto com a pecaminosidade foi posta a sexualidade. No mesmo instante começa a história do gênero humano. A consequência do pecado hereditário ou a sua presença no indivíduo é angústia. A angústia não é, no entanto, uma imperfeição do homem, e pode-se dizer, ao contrário, que quanto mais original é um homem, tanto mais profunda será sua angústia, porque ao entrar na história do gênero humano ele precisa apropriar-se do pressuposto da pecaminosidade, que sua vida individual supõe.
       Como foi colocado, a angústia já caracteriza o estado de inocência. O pecado surgiu na angústia, mas o pecado trouxe consigo, por sua vez, a angústia. De um lado, a continuidade do pecado é a possibilidade que angustia; pelo outro lado, a possibilidade de uma salvação é por sua vez um nada que o indivíduo tanto ama quanto teme, pois é sempre assim quando se trata da possibilidade. Só no momento em que a salvação é realmente posta, só então é superada esta angústia.
        A angústia significa duas coisas: a angústia na qual o indivíduo põe o pecado e a angústia que sobreveio e sobrevém com o pecado. A angústia que o pecado traz consigo decerto só ocorre propriamente quando o indivíduo mesmo põe o pecado.
         Pode-se falar da angústia num sentido objetivo ou subjetivo. A angústia objetiva é o reflexo da pecaminosidade da geração no mundo inteiro, já a angústia subjetiva designa a angústia presente na inocência do indivíduo, a qual corresponde à de Adão.

III. ANGÚSTIA COMO AUSÊNCIA DA CONSCIÊNCIA DO PECADO


          O homem é uma síntese de alma e corpo, que é constituída e sustentada pelo espírito. Assim, o espírito é o terceiro elemento da síntese alma e corpo.  No entanto, no homem há também uma síntese entre o temporal e o eterno.
         O tempo pode ser definido como uma sucessão infinita, uma sucessão que passa, já o eterno é uma sucessão abolida. O eterno é presente, já o tempo não tem nenhum presente. O instante designa o presente como tal que não tem pretérito nem futuro, de modo que o instante é um átomo da eternidade. A síntese do temporal e do eterno não é outra síntese, mas é a expressão da síntese de alma e corpo, que é sustentada pelo espírito. Tão logo o espírito é posto, dá-se o instante.
        A síntese do anímico e do somático deve ser posta pelo espírito, mas o espírito é o eterno, e por isso a síntese só ocorre quando o espírito põe a primeira síntese junto com a segunda, a do temporal e a do eterno. Enquanto o eterno não estiver posto, não haverá o instante.
        O instante é aquela ambiguidade em que o tempo e a eternidade se tocam mutuamente, e com isso está posto o conceito de temporalidade, em que o tempo incessantemente corta a eternidade e a eternidade constantemente impregna o tempo. Aqui adquire sentido a divisão entre tempo presentetempo passado e tempo futuro.
       O futuro, num certo sentido, significa mais do que o presente e o passado; pois o futuro num certo sentido é o todo, do qual o passado é uma parte, e o futuro pode, num certo sentido, significar o todo. Isto resulta de o eterno primeiramente significar o futuro, de modo que vida eterna é entendida como sinônimo de vida futura.
        O instante e o futuro põem, por sua vez, o passado. O tempo passado não é definido em sua relação com o presente e o futuro, mas em sua determinação geral de tempo: como um ir passando. O eterno dos gregos é entendido como um passado em que só se entra recuando. Assim, não havendo o instante, o eterno aparece lá atrás como passado. Se o instante for posto, então o futuro é o eterno. Se o instante é posto, então é o eterno, mas, é também o futuro, que retorna como passado.
        O espírito, na medida que deveria ser posto na síntese, ou melhor, na medida que deveria estabelecer a síntese enquanto possibilidade do espírito (da liberdade) na individualidade, exprimia-se como angústia, assim também aqui outra vez o futuro, como angústia, é a possibilidade da eternidade (da liberdade) na individualidade. Quando então a possibilidade da liberdade se mostra perante a liberdade, a liberdade sucumbe, e a temporalidade aparece.
        O possível corresponde perfeitamente com o porvir. Para a liberdade, o possível é o porvir; para o tempoo porvir é o possível. Na vida individual, a angústia corresponde a ambos. No instante em que o pecado é posto, a temporalidade passa a ser pecaminosidade. Se Adão não tivesse pecado, ele teria passado no mesmo instante para a eternidade. Contudo, uma vez que o pecado foi instituído, nada adianta querer abstrair da temporalidade.
        Da determinação da temporalidade como pecaminosidade segue, por sua vez, a morte como castigo. Quando o espírito está posto como espírito, a morte se mostra como o terrível, daí se pode falar da angústia da morte. No momento da morte, o homem encontra-se na ponta mais extrema da síntese; o espírito não pode, por assim dizer, estar presente, pois ele não pode morrer, e contudo deve esperar, pois o corpo, este sim, deve morrer.
           É bem estranho que a ortodoxia cristã constantemente tenha ensinado que o paganismo jazia no pecado, enquanto afinal de contas a consciência de pecado só foi instituída pelo cristianismo. A ortodoxia tem, entretanto, razão, pois o paganismo quer por assim dizer alongar o tempo, jamais atinge o pecado no sentido mais profundo, mas isso justamente é o pecado.
        Em relação ao paganismo no interior do cristianismo as coisas se passam de maneira diferente. A vida do paganismo cristão nem é culpada nem não-culpada, não conhece propriamente nenhuma diferença entre o que é presente, passado, porvir, eterno. Do ponto de vista espiritual, tal existência é pecado, e o mínimo que se pode fazer por ela será declará-lo, e exigir dela o espírito.
         Quanto mais elevado se põe o espírito, mais profunda se mostra sua exclusão, quanto mais elevado está posto o que se perdeu. A perdição da falta de espírito mostra-se como a mais terrível de todas, pois a desgraça é justamente esta: que a falta do espírito possui uma relação com o espírito, a qual nada é. Determinado como sem espírito, transforma-se o homem numa máquina falante.
       Na a-espiritualidade não há nenhuma angústia, é por demais feliz, mas carente de espírito. A a-espiritualidade é a estagnação do espírito, nada compreende de modo espiritual. No entanto, ainda que na a-espiritualidade não haja nenhuma angústia, a angústia não deixa de estar aí, apenas que latente. A angústia presente na a-espiritualidade, ainda que escondida e disfarçada.
         A angústia tem como objeto o nada. Angústia e nada correspondem constantemente um ao outro. A angústia é dialeticamente determinada no sentido de Destino. O Destino é unidade de necessidade e contingência. O Destino é o nada da angústia.
          Enquanto no paganismo a angústia é determinada no sentido de Destino, no Judaísmo, a angústia é determinada dialeticamente no sentido de culpa. A angústia que há no judaísmo é a angústia diante da culpa. A culpa é temida como aquilo que pode roubar a liberdade. A liberdade teme a culpa, seu temor não é reconhecer-se culpada caso o seja, mas tornar-se culpada. Mas a relação da liberdade com a culpa é, até aí, uma possibilidade. A relação da liberdade para com a culpa é angústia, porque a liberdade e a culpa ainda são possibilidade.

IV. ANGÚSTIA DO PECADO

       Quando o pecado é posto no indivíduo aí se coloca a diferença entre bem e mal. A liberdade, no entanto, não deve ser concebida como o livre-arbítrio de escolher entre o bem e o mal. A liberdade é infinita e aparece do nada.
        A história da vida individual progride num movimento que vai de estado a estado. Cada estado é posto com um salto. Tal como o pecado entrou no mundo ele continua a entrar, se não é estancado. Contudo, cada uma de suas repetições não constitui simples consequência, porém um novo salto. A cada um desses saltos precede um estado, em cada estado está presente a possibilidade e, por conseguinte, a angústia.
        O pecado posto pelo indivíduo é (a) uma realidade indevida que a angústia assume o trabalho de negar; (b) a consequência como possibilidade de um novo, já que sempre há a possibilidade de ir mais fundo no pecado e essa possibilidade é o objeto da angústia; (c) uma realidade injustificada que não pode ser anulada, mas apenas lamentada pelo arrependimento e aqui a angústia atinge seu ponto máximo.
       O arrependimento não consegue libertar o pecador, só a o pode fazer. A fé é a coragem de crer que o próprio estado é um novo pecado, a coragem de renunciar sem angústia à angústia. Disto só a fé é capaz, pois só na fé a síntese é possível, eternamente e a cada momento.
         Foi considerado o caso do pecador que se angustia diante do mal, mas há também o pecador que se angustia diante do bem. O bem significa reintegração da liberdade, redenção, salvação. À angústia diante do bem dá-se o nome de demoníaco.
        O demoníaco é a não-liberdade. A liberdade, entretanto, pode ser perdida de diferentes maneiras:
(i) liberdade perdida somático-psiquicamente: o corpo é órgão da alma e assim, por sua vez, órgão do espírito, sempre que o corpo se revolta, sempre que a liberdade conspira junto com ele contra si mesma, a não liberdade se apresenta como o demoníaco.
(ii) liberdade perdida pneumaticamente: aqui se dá o fenômeno do demoníaco em relação à angústia diante do conhecimento. O conteúdo da liberdade intelectual ou do conhecimento é a verdade. A verdade, nesse sentido, é subjetividade, na medida em que deve ser colocada pelo próprio sujeito. A liberdade intelectual sem a dimensão concreta na subjetividade é o demoníaco.

V. ANGÚSTIA COMO O QUE SALVA PELA FÉ

        A angústia é a possibilidade da liberdade, só a angústia é, pela fé, absolutamente formadora, na medida em que aquele que é formado pela angústia é formado pela possibilidade, e só quem é formado pela possibilidade está formado de acordo com sua infinitude.  Mas para que um indivíduo venha a ser formado, ele precisa ter a fé. A fé é a certeza interior que antecipa a infinitude.  Só quem atravessou a angústia da possibilidade, só este está plenamente formado para não se angustiar, não porque se esquive dos horrores da vida, mas porque esses sempre ficam fracos em comparação com os da possibilidade.

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