O NOVO TESTAMENTO NÃO ENSINA QUE JESUS É DEUS
É comumente assumido por cristãos ortodoxos que o Novo Testamento ensina que Jesus é Deus. Além disso, mesmo historiadores seculares compram acriticamente a ideia de que o Novo Testamento ensina que Jesus é Deus. No entanto, se o Novo Testamento for lido de modo histórico, sem retrojeção de doutrinas posteriores no texto e à luz de seu contexto, a conclusão de que o Novo Testamento ensina que Jesus seja Deus é questionável. Na verdade, é mais provável que alguns textos do Novo Testamento ensinem a divindade de Jesus, mas não que ele seja o Deus Eterno e Todo-poderoso.
Há quatro teses sobre o Novo Testamento que acredito serem mais prováveis do ponto de vista histórico sobre a visão da divindade: (1) não há nenhum dito de Jesus que passe pelos critérios históricos (constrangimento, dissimilaridade, múltipla atestação etc) em que ele afirme ser Deus; (2) há um versículo que atribui um dito a Jesus no evangelho mais antigo do Novo Testamento cuja leitura mais natural é que ele negue ser Deus. (3) O Novo Testamento, de modo geral, reconhece Jesus como divino, mas não como Deus todo-poderoso, é uma cristologia subordinacionista - Jesus é divino ou deus, mas sua divindade é ontologicamente inferior à do Pai e a ele se atribui funcionalmente títulos divinos; (4) A ideia de Jesus como Deus em sentido consubstancial ao Pai é um desenvolvimento da patrística tardia.
Este texto é composto de seis partes: (1) Jesus afirmou ser Deus?; (2) O que Paulo disse sobre a divindade de Jesus; (3) A cristologia de Marcos; (4) A cristologia adocionista lucana; (5) A cristologia de Efésios-Colossenses; (6) A cristologia do Evangelho de João. É importante pontuar que esse texto apresenta uma interpretação histórico-crítica do Novo Testamento, e pretende apresentar uma leitura alternativa à ortodoxa, sem, no entanto, contradizer qualquer leitura teológica, respeitando qualquer interpretação religiosa do Novo Testamento como válida.
I. JESUS AFIRMOU SER DEUS?
Jesus de Nazaré nunca reivindica ser Deus nem mesmo divino em nenhum dito que tenha maior chance de ser histórico. Do ponto de vista histórico, não se pode pressupor que todos os ditos que o Novo Testamento atribui a Jesus são historicamente acurados, também não temos como dizer com certeza o que Jesus disse ou não disse. Contudo, podemos dizer quais ditos de Jesus nos Evangelhos tem maior ou menor chance de serem históricos. Dentre os principais critérios utilizados na crítica histórica, destacam-se: a precocidade do relato, a independência teológica, a multiplicidade de fontes, a prova da dissimilaridade e a credibilidade contextual. Cada um desses princípios contribui para avaliar a autenticidade dos ensinamentos atribuídos a Jesus.
O critério da precocidade do relato afirma que fontes mais antigas têm maior probabilidade de conservar tradições de ditos autênticos. Nesse sentido, ditos encontrados em Marcos, considerado o mais antigo dos Evangelhos, ou na fonte Q (ditos em comum a Mateus e Lucas), são tratados com maior probabilidade de serem históricos. Exemplo disso é a bem-aventurança: "Bem-aventurados os pobres, pois vosso é o Reino de Deus e ai de vós ricos" (Lucas 6:20,24 / Mateus 5:3), presente na fonte Q e, portanto, anterior a formulações teológicas mais desenvolvidas. Outro exemplo é: "O sábado foi feito por causa do homem, não o homem por causa do sábado" (Marcos 2:27), o que sugere uma crítica histórica autêntica às normas farisaicas. Em contraste, ditos como "Eu sou o pão da vida" (João 6:35) ou "Tudo o que pedirdes em meu nome, isso farei" (João 14:13-14), “Eu e o Pai somos um” (João 10:30) são tardios, próprios do Evangelho de João o que reduz sua chance de ser histórica.
O segundo critério, da independência teológica, propõe que, se um dito serve claramente aos interesses das comunidades cristãs primitivas, sua origem pode estar na comunidade cristã posterior, e não no Jesus histórico. Assim, expressões como "Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um, que é Deus" (Marcos 10:18), em que Jesus recusa um título divino, tendem a ser vistas como tendo maior chance de historicidade. Em oposição, declarações como "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (João 14:6) ou "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (Mateus 16:18) revelam objetivos claramente eclesiológicos e teológicos, sugerindo autoria comunitária tardia.
A multiplicidade de fontes independentes também fortalece a chance de um dito ser histórico. Quando um dito é atestado em diversas tradições autônomas, como os Evangelhos Sinóticos, as cartas paulinas, a fonte Q, ou até textos apócrifos antigos como o Evangelho de Tomé, sua origem provavelmente remonta a Jesus. O amor aos inimigos (Mateus 5:44; Lucas 6:27; Didaqué 1:3) e a proclamação da iminência do Reino de Deus (Marcos 1:15; Mateus 10:7; Lucas 10:9; Tomé 113) ilustram esse princípio. Por outro lado, palavras como “Batizai em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mateus 28:20), restrita a Mateus, ou “Quem não nascer da água e do Espírito” (João 3:5), refletem tradições isoladas e preocupações tardias com o batismo em linguagem trinitária.
Outro critério relevante é o teste da dissimilaridade, segundo a qual um dito que contradiz as expectativas tanto do judaísmo da época quanto da comunidade cristã primitiva tem maior probabilidade de ser autêntico. A admissão da ignorância sobre o dia da parousia por parte de Jesus (Marcos 13:32) é um exemplo claro, pois contraria a doutrina da onisciência de Cristo. Também o relato do batismo de Jesus por João Batista (Marcos 1:9-11) é constrangedor do ponto de vista teológico, pois sugere a submissão de Jesus a um profeta menor, o que dificilmente teria sido inventado pela tradição cristã. Por outro lado, passagens como "Eu estarei convosco todos os dias" (Mt 28:20) ou "Quem crer e for batizado será salvo" (Mc 16:16), refletem teologias eclesiásticas de consolidação da fé e da prática sacramental.
Por fim, o critério da credibilidade contextual determina que um dito de Jesus seja compatível com o contexto histórico, cultural e religioso do judaísmo palestino do século I. "Dê a César o que é de César" (Marcos 12:17) revela uma resposta alinhada aos dilemas políticos da época. "Não vim trazer paz, mas espada" (Mateus 10:34) também encontra coerência no clima de divisão provocado pelo movimento de Jesus. Em contraste, declarações como "O Filho do Homem veio buscar e salvar o que se havia perdido" (Lucas 19:10) ou "Eu sou a ressurreição e a vida" (João 11:25) revelam uma linguagem mais próxima da teologia lucana e da tradição joanina, distantes do universo semítico original. Também passam nesse critério parábolas de Jesus que refletem o contexto agrário da época, como a parábola do semeador (Marcos 4:3-9; Mateus 13:3-9; Lucas 8:5-8), da ovelha perdida (Lucas 15:4-7; Mateus 18:12-14), do grão de mostarda (Marcos 4:30-32; Mateus 13:31-32; Lucas 13:18-19).
É claro que qualquer tentativa de determinar o que Jesus disse ou não disse está sujeito à subdeterminação. Contudo é relevante pontuar que, se seguirmos os critérios de historicidade, não há boa base para dizer que Jesus afirmou ser Deus. C.S. Lewis tem um trilema que diz que se negarmos que Jesus seja Deus, teremos de afirmar que ele ou louco ou mentiroso. O que os dados históricos sugerem, na realidade, é que Jesus nunca reivindicou para si divindade, logo ele não era nem louco, nem iludido, nem mentiroso. Mais interessante ainda é que um dito atribuído a Jesus nos Evangelhos e que tem maior chance de ser histórico é um cuja leitura mais natural é de que Jesus negue sua divindade "Por que me chamas bom? Ninguém há bom senão um, que é Deus" (Marcos 10:18).
Dado que o mais razoável é que Jesus nunca tenha reivindicado ser Deus, precisamos avaliar se os autores do Novo Testamento fazem essa identificação. Para tanto, tentarei seguir a ordem cronológica dos textos, começando por (ii) o que o apóstolo Paulo diz; (iii) a cristologia de Marcos; (iv) a cristologia adocionista de Lucas; (v) Cristo na teologia de Efésios-Colossenses; (vi) o Evangelho de João.
II. O QUE O APÓSTOLO PAULO DIZ
Paulo, em uma de suas últimas cartas a ser escrita (56d.C.) cita um hino cristão que diz: “Aquele que existia na forma de Deus, não considerou para ser usurpado o ser igual com Deus, mas a si mesmo se esvaziou, tomando a forma de servo, sendo gerado na semelhança de um humano”. Esse hino parece ser anterior à carta paulina. Não sabemos quanto tempo anterior, se alguns anos, uma década ou mais. Também não sabemos por quantos cristãos usados, se só pela comunidade de Filipenses, pelas congregações fundadas por Paulo ou por mais comunidades cristãs. O ponto é que o texto apresenta uma cristologia que ao mesmo tempo apresenta Jesus como tendo Deus e ao mesmo tempo como não sendo igual a Deus. Perceba que Jesus, mesmo sendo divino, não quis usar isso como desculpa para tentar ficar igual a Deus.
Paulo constantemente apresenta Deus e Jesus em conjunto, mas tende sempre a distinguir os dois da seguinte forma: o Pai é Deus (theós) e Jesus é o Senhor (kyriós), nunca o oposto (Romanos 1:7; 3:11; 15:6 1Coríntios 1: 3; 2 Coríntios 2:1; Gálatas 1: 3; Filipenses 1:2; 1 Tessalonicenses 1:1; Filemon 1: 3). Permanece, pois, uma distinção fundamental entre Deus Pai e o Senhor Jesus. Paulo diz: "Para nós, há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, por meio de quem são todas as coisas, e nós também, por ele." (1 Coríntios 8:6). Perceba, pois, que o texto afirma que só o Pai é Deus e só Cristo é o Senhor. De onde o título Senhor, aplicado a Cristo, deve ter um sentido subordinado ao do pelo qual o Pai é dito Deus.
Jesus Cristo é chamado de Senhor no sentido de o ser o único que Deus Pai colocou como soberano sobre toda a criação: "Pelo que também Deus o exaltou soberanamente e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai." (Filipenses 2:9-11). Mas é claro que nessa exaltação o Filho evidentemente é subordinado ao Pai, algo que Paulo considera óbvio e que permanecerá por toda eternidade: “Porque todas as coisas sujeitaram debaixo de seus pés. Mas, quando diz que todas as coisas lhe estão sujeitas, claro está que se excetua aquele que lhe sujeitou todas as coisas, quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então também o mesmo Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitaram, para que Deus seja tudo em todos.” (1 Coríntios 15:27-28)
Assim, o ensino paulino é claro. Só o Pai é Deus e Jesus é o único Senhor no sentido de ser aquele que o Pai exaltou sobre todos. Por isso, Paulo nunca chama Jesus de Deus. É por esse uso que quando lemos Romanos 9:5 à luz de como Paulo usa consistentemente Deus somente para o Pai, deve-se ler: “De quem são os patriarcas e de quem é Cristo segundo a carne, sendo sobre todos. Deus (Pai) seja bendito pelas eras. Amém”. De igual modo, Tito 2:13 que é uma carta pastoral atribuída a Paulo, por sua vez, pode ser lida mantendo o padrão que menciona junto Pai e Filho: “Aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus [o Pai] e de nosso Salvador Cristo Jesus."
Portanto, a cristologia paulina é a seguinte (i) Jesus preexistia em uma forma divina, mas não é Deus; (ii) só o Pai é Deus e Jesus é Senhor no sentido de ter sido exaltado sobre toda criação por Deus Pai; (iii) Jesus não é igual a Deus e permaneceu e permanecerá sempre subordinado ao Pai. Iremos depois analisar o que dizem outras duas cartas paulinas sobre a divindade de Jesus, mas como elas não foram escritas por Paulo e são tardias, serão consideradas mais adiante. Seguindo, contudo, a ordem cronológica, veremos antes a cristologia de marcos e depois de Lucas.
III. CRISTOLOGIA DE MARCOS
O Evangelho de Marcos (70d.C.) não retrata Jesus nem mesmo como divino, a começar pelo dito em que, na sua leitura mais natural, Jesus nega ser Deus em resposta ao jovem rico: “Por que me chamas bom. Ninguém é bom senão um só que é Deus” (Marcos 10:18). Marcos também retrata a mãe de Jesus rejeitando o seu ministério, o que parece contraria o quadro de alguém que teria tido um nascimento virginal ou uma maternidade divina (Marcos 3:21,31-35). Outro padrão marcante no Evangelho é a forma como Marcos apresenta os fariseus como constantemente equivocados ao interpretarem a identidade e a missão de Jesus. Isso se aplica também à acusação de que ele estaria se igualando a Deus (Marcos 2:7). Nesse contexto, Marcos 2:7 reforça o ponto considerado aqui: para o evangelista, a afirmação de que Jesus era Deus é tão equivocada quanto a acusação de que ele violava o sábado. Ambas são interpretações erradas da parte dos fariseus.
Meu ponto aqui não é que os fariseus não poderiam estar certos em alguma acusação sobre Jesus. A questão é que, em Marcos, todas essas acusações seguem um mesmo padrão narrativo: são apresentadas como erros sistemáticos, faz parte da estrutura do Evangelho de Marcos apresentar essas acusações como forma de mostrar como os fariseus erravam em entender a natureza de Jesus. Abrir uma exceção nesse padrão, interpretando Marcos 2:7 como uma afirmação indireta da divindade de Jesus, seria arbitrário. Abaixo, alguns exemplos que ilustram esse padrão:
Marcos 2:18 – os fariseus acusam Jesus de violar a prática do jejum, mas estão errados.
Marcos 2:24 – acusam Jesus de violar o sábado ao colher espigas; novamente, estão errados.
Marcos 3:2 – consideram que curar no sábado viola a lei, mas estão errados.
Marcos 7:5 – julgam que comer sem lavar as mãos viola a pureza ritual; estão errados.
Marcos 2:16 – acham que é errado comer com publicanos e pecadores; estão errados.
Marcos 3:22 – afirmam que Jesus realiza milagres pelo poder de Belzebu; estão errados.
Dessa forma, fica evidente que, para Marcos, os fariseus estão sistematicamente equivocados quanto à identidade e à missão de Jesus, e isso inclui a ideia de que ele se fazia igual a Deus. A visão de Marcos é que os fariseus estão errados em achar que o fato de Jesus ter recebido do Pai autoridade especial para perdoar pecados o torne igual a Deus. Importante mencionar que o Novo Testamento também ensina que os apóstolos também receberam prerrogativa divina para perdoar pecados: “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais mantiverdes ser-lhes-ão mantidos.” (João 20:23; cf. Mateus 16:19; 18:18).
Há quem cite Marcos 1:3: “voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas” como prova de que Marcos considera Jesus como Deus. Mas o contexto histórico dessa passagem lança luz sobre seu significado. Sabemos que o texto hebraico do texto original em Isaías 40: 3 na verdade diz “Voz que clama: vá ao deserto preparar o caminho de Javé”. Essa passagem foi usada por comunidades no primeiro século que foram ao deserto iniciar um ministério de purificação, incluindo a comunidade de Qumran.
Sabemos que João Batista não foi o único caso de alguém que foi ao deserto realizar um ministério batismal. Era comum que pregadores escatológicos fossem à margem do Jordão reencenar o ato de Josué de cruzar o rio para adentrar a terra prometida. Assim, esse era um batismo de encenação, o candidato ao batismo entrava no rio, era mergulhado nele e ia para a outra margem do Jordão fazendo parte de uma “comunidade de purificados”. Essa comunidade de purificados então deveria esperar o Enviado de Javé, que viria quebrar o domínio do império romano, revestir os batizados com o espírito santo e iniciar um juízo escatológico em fogo. Assim como Javé libertou o povo do cativeiro do Egito com Moisés atravessando o mar vermelho e Josué o Jordão, essa comunidade cruzava o Jordão no aguardo da intervenção de Deus. Preparar o caminho de Javé no deserto significava, pois, preparar uma comunidade de purificados para a intervenção de Deus.
Marcos interpreta o enviado escatológico de Javé como sendo Jesus, que é o Filho do Homem: "Então, verão o Filho do Homem vir nas nuvens, com grande poder e glória." (Marcos 13:26). Assim, quando Marcos diz que João Batista preparou o caminho de Javé para a chegada de Jesus, ele não está dizendo que Jesus é Javé, mas sim que Jesus é o enviado de Javé para realizar a obra que a comunidade dos batizados por João Batista esperava. Vale lembrar que para Marcos, Jesus é um profeta escatológico que iria vir como Filho do Homem ainda em sua geração: "Em verdade lhes digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça" (Marcos 13:30). Portanto, para o Evangelho de Marcos, Jesus não é Deus e a identificação de Jesus como Deus foi um erro cometido pelos fariseus e pelo jovem rico.
IV. CRISTOLOGIA DE LUCAS
Há diferentes sentidos em que alguém pode ser divino. Alguém pode ser divino por sempre ter sido Deus e ter se encarnado como Deus (encarnacionismo) ou alguém pode ser divino por ter sido homem e depois adotado como Deus (adocionismo). A pesquisa histórica tem sugerido que a teologia lucana é adocionista, não encarnacionista. Lucas (85 d.C.) e Atos dos Apóstolos (120 d.C.) foram escritos pelo mesmo autor, de modo que ao falar de teologia lucana estamos falando de uma teologia Lucas-Atos. Na teologia lucana não há qualquer menção de uma preexistência de Jesus antes de nascer e, além disso, o que Lucas-Atos indicam é que Jesus foi exaltado como Filho de Deus, não que ele já nasceu Filho de Deus.
A teologia lucana é também uma teologia pentecostal, no sentido de exaltar a figura do Espírito Santo, de modo que Jesus é exaltado como Deus por receber o Espírito Santo: “Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo; [...] O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso, o que há de nascer será chamado Santo, Filho de Deus.” (Lucas 1:34-35). É por meio de certos “atos especiais” que a adoção de Jesus como Filho de Deus é operada, começando pelo batismo (Lucas 3:22), passando pela transfiguração (Lucas 9:25) e culminando com a ressurreição: “Nós lhes anunciamos as boas novas: o que Deus prometeu a nossos antepassados ele cumpriu para nós, seus filhos, ressuscitando Jesus, como está escrito no Salmo segundo: ‘Tu és meu filho; eu hoje te gerei’ ” (Atos 13.32 - 33).
É importante lembrar que Lucas-Atos nunca chamam Jesus de Deus, ao que merece correção de como aparece em certas traduções o texto de Atos 20:28, no qual é mais razoável ler como está na Bíblia de Jerusalém: “a igreja de Deus que ele adquiriu para si com o sangue do seu próprio Filho”. Merece ainda destaque o texto de Lucas 20:41-44 que citando o Salmo 110:1 distingue o Pai (Javé) e Jesus (adone). Portanto, a conclusão é que na cristologia lucana, Jesus é o Filho adotado de Deus, não o próprio Deus: "Saiba com certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo." (Atos 2:36).
V. CRISTO NA TEOLOGIA EFÉSIOS-COLOSSENSES
Efésios e Colossenses foram escritos por volta de 100d.C. e refletem uma teologia comum. Indicarei aqui que Efésios-Colossenses parecem indicar que Jesus é a “primeira criatura divina”. Para Colossenses, Jesus recebeu sua divindade de Deus o Pai (Colossenses 1:9), que fez habitar no corpo de Cristo toda a plenitude da divindade (Colossenes 2:9), plenitude que Deus promete que fará habitar em todos os crentes (Efésios 3:19). Ser Jesus plenamente divina significa que Jesus expressa de maneira plena as qualidades da divindade, por isso, o Filho é a imagem exata do Pai: “o qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação” (Colossenses 1:15).
Perceba que o texto diz que Jesus é o primogênito (prototokos) de toda criação (Colossenses 1:15). A palavra “primogênito” aqui indica tanto o caráter de Jesus como “princípio da criação de Deus (cf. Apocalipse 3:14) quanto de primazia sobre toda criação. Muitos acreditam que por esse sentido de primazia o texto poderia ser lido como verte a NVI, que Jesus é o primogênito “sobre” toda a criação. Essa ideia, entretanto, não combina com o sentido de prototokos. Primogênito na Bíblia é sempre um vocábulo que tem uma ideia partitiva, isto é, alguém sempre é primogênito dentre um grupo, o que ocorre mesmo quando o termo primogênito tem um sentido metafórico (Gênesis 4:4; 25:13; Êxodo 11: 5; 13: 13,15; 22:28; 34: 19,19; 34:20, 20; Números 3:40, 41, 41, 3:45, 46, 50; 8:16; 18:15, 15; Deuteronômio 12: 6, 17; 14:23; 15:19; Neemias 10:37, 37; Ezequiel 44:30. 42; Lucas 2:7; Romanos 8:9; Hebreus 11:28; Apocalipse 1:5).
Como um termo partitivo, a palavra grega prototokos sempre significa “primgênito dentre”: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito (πρωτότοκον) dentre muitos irmãos.” (Romanos 8:29); “Pela fé celebrou a Páscoa e o derramamento do sangue, para que o destruidor não tocasse nos primogênitos (πρωτότοκα) dentre os israelitas.” (Hebreus 11:28) e “E da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o primogênito (πρωτότοκος) dentre os mortos e o Soberano dos reis da terra.” (Apocalipse 1:5). O próprio contexto de Colossenses 1:15 usa o termo assim: “Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito (πρωτότοκος) dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência." Perceba que aqui os dois sentidos são mantidos, Jesus é o primogênito dentre os mortos tanto por ser um entre os mortos quanto por ter primazia sobre os mortos. Logo, o Filho só pode ser primogênito da criação se for parte da criação.
Perceba que Colossenses 1:15 coloca o Filho como parte da criação antes da sua encarnação. O Filho é a primeira criatura divina a partir e por meio do qual Deus criou todas as coisas. Por isso, o Filho é antes de todas as coisas porque tudo foi criado nele e para ele. Interessante notar que Jesus é sempre apresentado como o meio pelo qual Deus cria todas as coisas, não o Criador de todas as coisas. Jesus nunca é chamado de Criador na Bíblia. Parece, pois, razoável concluir que para a teologia de Efésios-Colossenses, Cristo é a primeira criatura divina pela qual Deus criou e sustenta todas as coisas.
Colossenses pode ter influência de Filo de Alexandria que fala do Logos como "primogênito". Uma interpretação que parece coerente com o contexto histórico e patrístico pré-niceno, bem como com a influência de Filo de Alexandria que fala do Logos como "primogênito" é que o Logos preexistia desde sempre em Deus enquanto ideia mas foi gerado no tempo em um momento específico como Filho (um ser pessoal), o que possivelmente era o que os arianos entendiam como "haver um tempo em que o Filho não existia" e com a ideia do Filho como "primogênito da criação". A diferença é que Filo não usa o partitivo "da criação", nem fale dele como "pessoal". Daí é razoável pensar que o Logos como pessoal é gerado em um tempo específico. Quando Deus começa a criar, o Logos como razão ou ideia é atualizado/gerado como Filho e princípio da criação por meio de quem o Pai cria todas as coisas. O Logos é como um "intermediário", não é nem coeterno com Deus como uma segunda pessoa (porque só é gerado como pessoa quando a criação começa) nem é completamente criado (porque já preexistia como ideia em Deus desde sempre): nem Criador, nem criatura, mas o elo intermediário entre Deus e a criação. Isso parece em consonância com a Cristologia do Logos de João a ser considerada a seguir.
VI. A CRISTOLOGIA DE JOÃO
O Evangelho de João (130 d.C.) se inicia com a declaração “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (João 1:1). A declaração “e o Verbo era Deus” (καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος) é, sem dúvida, uma das mais surpreendentes de todo o Novo Testamento. A estrutura gramatical do grego desta passagem tem sido amplamente discutida para entender essa afirmação. A Tradução do Novo Mundo com Referências, por exemplo, propõe que a melhor leitura seria “o Verbo era [um] deus”, e não “o Verbo era o Deus”. Isso se baseia na ausência do artigo definido antes de theós (Deus) no grego original, enquanto ho theós (“o Deus”) aparece no início da sentença para se referir ao Pai, distinguindo assim duas entidades.
Segundo o Apêndice 6A da mesma obra, trata-se de um theós anartro (substantivo sem artigo definido) e predicativo, o que indicaria não identidade pessoal, mas qualidade ou natureza. Assim, o que João afirma seria que “o Verbo era divino”, possuidor de natureza ou qualidade divina, sem que isso implicasse que ele fosse o próprio Deus a quem estava “junto” (πρὸς τὸν θεόν). Essa interpretação encontra eco no uso mais amplo do termo hebraico elohim (אֱלוֹהִים), que pode designar não apenas o Deus supremo, mas também seres celestiais, juízes ou mensageiros divinos (Êxodo 7:1; 21:6; Salmo 8:5; 82:1,6-7). A Bíblia parece utilizar “deus” para se referir a agentes que representam Deus e agem com sua autoridade, embora não sejam o próprio Deus em essência.
Além disso, considerando que o Evangelho de João foi o último a ser escrito, em uma época em que a cristologia estava em desenvolvimento, é razoável supor que a formulação joanina reflete uma teologia em transição. Não havia ainda uma doutrina plenamente formada da Trindade como foi definida nos concílios posteriores, e, portanto, não se pode afirmar com segurança que João estivesse propondo deliberadamente o dogma trinitário. Parece mais adequado entender que João afirma que o Logos é de natureza divina, “divino” no sentido de procedente de Deus, gerado por Ele e atuando como seu agente por excelência na criação e na revelação.
Essa concepção também pode dialogar, ainda que indiretamente, com categorias gnósticas, como a do Logos enquanto éon emanado de Deus, ou associado à Sabedoria (Sofia). Como observa Haenchen, a primeira apropriação do Evangelho de João foi gnóstica: “Essa apropriação inicial do Evangelho de João pelo gnosticismo desembocou na suspeita duradoura de que o Evangelho ensinava o gnosticismo. Somente quando foi reconhecido que o Evangelho poderia realmente ser usado contra o gnosticismo, ele encontrou sua aprovação por parte da ‘grande’ igreja, apesar de suas diferenças em relação aos sinópticos” (HAENCHEN, 1984, A Comentary on the Gospel of John chapters 1-6. Translated by: Robert W. Funk. Filadélfia: Fortress Press, 1984, p.19, tradução minha).
O Evangelho de João também tem trechos que insinuam um subordinacionismo que, mesmo que explicado dentro do quadro trinitário posterior, não pode ser lido anacronicamente a partir da doutrina já elaborada da Trindade e união hipostática: "Em verdade, em verdade vos digo: o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente o que vir o Pai fazer. Pois assim como o Pai tem vida em si mesmo, concedeu também ao Filho ter vida em si mesmo. Eu não posso fazer nada por minha própria conta; julgo segundo o que ouço” (João 5:19,26,30), "Porque eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou." (João 6:38); “nada faço por mim mesmo, mas falo como o Pai me ensinou.” (João 8:28) e “"Ouvistes que eu vos disse: vou e volto para junto de vós. Se me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai, porque o Pai é maior do que eu." (João 14:28). Em nenhum desses casos, a fala de Jesus é qualificada de modo a se referir somente à sua existência humana ou terrena, nem há no Evangelho uma distinção entre subordinação ontológica e funcional.
Além disso, o Evangelho de João diz que só o Pai é o Deus verdadeiro: "E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti (o Pai), o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17: 3). Jesus, é verdade, tem em João um caráter incomparável com qualquer criatura ou profeta. De fato, ele é divino em sentido especial, o meio pelo qual Deus criou todas as coisas, a revelação mais exata de Deus: “quem vê a mim vê o Pai” (João 14:9) e “eu e o Pai somos um” (João 10:30). Certamente isso coloca Cristo, o Logos divino, acima de todos os homens, mas não significa que ele tenha um status ontológico igual ao do Pai ou consubstancial com ele. Certamente, no entanto, Jesus é o ser de maior grandeza depois do Pai, a revelação mais exata do Deus inefável e aquele que tem uma unidade profunda com o Pai.
Jesus, no Evangelho de João é um representante de Deus, ele é o Logos, o agente revelador do Pai. No pensamento bíblico, é natural que um representante de Deus possa assumir títulos divinos. Por exemplo, na Bíblia Hebraica, O anjo de Javé por vezes fala como se fosse o próprio Javé (Gênesis 16:7–13, 21:17, 22:11–18, 24:7, 24:40, 31:11, Êxodo 3:2, 14:19, 23:20–23, 32:34, Números 22:22–35, Juízes 2:1–4, 5:23, 6:11–24, 13:3–22, 1 Reis 19:5–7, 2 Reis 1:3, 1:15, 19:35, 1 Crônicas 21:15–30, Zacarias 1:11–14, 3:1–6, 12:8). Os cristãos posteriormente interpretaram esse anjo como se fosse Jesus, algo que a Bíblia não o faz. O importante é que esse anjo, na condição de representante de Javé, pode ser chamado de Javé. Por isso, mostrar que o Novo Testamento aplica a Jesus textos sobre Javé, não prova que Jesus seja Javé, mas sim que ele é um representante de Javé. Até mesmo os três anjos que visitam Abraão são chamados de Javé, e seria altamente anacrônico ver ali qualquer referência à Trindade (Gênesis 18:1-2).
Um representante de Javé pode ser chamado tanto de Javé como de deus, como, neste último caso, ocorre com Moisés: “Então disse o Senhor a Moisés: Eis que te constituí por Deus sobre Faraó; e Arão, teu irmão, será teu profeta.” (Êxodo 7:1). Portanto, Jesus ser referido como Deus no Evangelho de João não é suficiente para concluir que ele seja o Deus todo-poderoso. Um dos textos em que o termo Deus possivelmente se refere a Jesus é João 20:28, mas é importante destacar a subdeterminação desse texto. João 20:28 já recebeu as seguintes interpretações:
[1] theós é um nominativo exclamativo, de modo que o texto deve ser lido como dizendo "Deus meu e Senhor meu!", não como uma referência a Jesus (interpretação minoritária)
[2] O texto é um nominativo vocativo e se refere ao próprio Cristo ressuscitado, mas nesse caso devemos entender que:
2.1. Tomé chama Jesus de Deus em sentido funcional porque Jesus é um representante de Deus.
2.2 Tomé chama Jesus de deus porque reconhece Jesus como divino, mas não significa que ele entenda Jesus como no mesmo status ontológico que Deus o Pai (interpretação ariana)
2.3 Tomé chama Jesus de Deus no sentido de reconhecer que ele é plenamente Deus consubstancial com o Pai (interpretação trinitária)
Merece destaque que a patrística inicial não iguala Deus Pai e o Logos divino como de mesmo status ontológico, mas sugerem uma cristologia subordinacionista. Além disso, uma afirmação significativa da eternidade do Logos só vai aparecer com Alexandre de Alexandria no terceiro século. Afraates, por exemplo, que não teve contato com os desenvolvimentos cristológicos nicenos, destaca que Cristo é subordinado ontologicamente ao Pai e recebe títulos divinos apenas de modo funcional. O próprio Jesus, no Evangelho de João, ao falar sobre como pode se chamar de deus cita o Salmo 82:6 que chama os juízes de deuses (João 10:32) e o Evangelho joanino apresenta a ideia de Jesus se fazer igual a Deus como estando entre as acusações falsas dos fariseus, ao ado da acusação de quebrar o sábado (João 5:17), ao que, logo em seguida, Jesus dá declarações de subordinação ao Pai (João 5:19).
Um último motivo para algumas pessoas verem Jesus como Deus no Evangelho de João, é o uso estruturado do termo “Eu Sou” pelo Evangelho, ao mesmo tempo que se afirma ser isso uma alusão a Êxodo 3:14. O problema é que enquanto em João a expressão usada é “ego eimi” em Êxodo 3:14 (LXX) a expressão usada é “ho on”. Ao dizer “Eu Sou”, é verdade, Jesus assume titulações classicamente divinas, como ser o Bom Pastor ou a Verdade, mas isso se enquadra na leitura de uma titulação funcional adotada por um agente revelacional.
Por fim, é importante lembrar que a doutrina do Logos no Evangelho de João é retirada de Filo de Alexandria, que também parece influenciar Colossenses, como considerado. Para Fílon, o Logos é o princípio divino racional por meio do qual Deus cria, organiza e governa todas as coisas, funcionando como modelo arquetípico da criação e instrumento ativo da vontade divina. Filo se refere ao Logos como “deus” ou “segundo deus”, mas o distingue nitidamente do Deus supremo, a quem considera único, inefável e incomunicável (o Pai), nem eterno nem criado, mas o intermediário entre o eterno e o criado. O Logos é, assim, inferior ao Pai e cumpre um papel de intermediário, sendo chamado também de “filho primogênito” e “imagem de Deus”, isso combina com a descrição joanina: "Ninguém jamais viu a Deus [o Pai inefável]; o Deus unigênito [o Logos], que está no seio do Pai, é quem o revelou" (João 1:18)
Alguns estimam que o prólogo de João é de cerca de 130d.C., o que significa que foi só um século após a morte de Cristo que alguém se referiu a ele como Logos, aplicando a Jesus uma doutrina que vem de um filósofo judeu pagão. Além disso, dada a cristologia subordinacionista da patrística inicial e as declarações subordinacionista do João, é razoável concluir que dessa doutrina joanina do Logos não se segue necessariamente a afirmação nicena de que Jesus seja o Deus eterno consubstancial com o Pai. Na mais alta cristologia do Novo Testamento, Jesus é divino, digno de veneração especial (proskyneo), deus unigênito, manifestação terrena do Logos divino, o primogênito da criação por meio do qual Deus cria e sustenta todas as coisas, o Logos encarnado, a revelação exata da natureza inefável de Deus, mas não de mesmo status ontológico que Deus o Pai, ou seja, não Deus no sentido substancial.
Comentários