A FORMAÇÃO SOCIAL DA MENTE - VYGOTSKY
O que se segue é um resumo do livro A Formação Social da Mente do psicólogo russo Lev Vygotsky. Vygotsky apresenta uma teoria do desenvolvimento das funções psicológicas superiores (primeira parte) e as implicações dessa teoria para a educação (segunda parte). É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.
I. TEORIA BÁSICA E DADOS EXPERIMENTAIS
O objetivo deste texto é caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses de como essas características se formaram ao longo da história humana e de como se desenvolvem durante a vida de um indivíduo. Para isso, essa análise se preocupará com três aspectos fundamentais: (i) a relação entre os seres humanos e o seu ambiente físico e social; (ii) as formas novas de atividade que fizeram com que o trabalho fosse o meio fundamental de relacionamento entre o homem e a natureza e as consequências psicológicas dessas formas de atividade; (iii) a natureza das relações entre o uso de instrumentos e o desenvolvimento da linguagem.
A análise da inteligência prática das crianças, cujo aspecto mais importante é o uso de instrumentos, tem mostrado que: (i) a atividade prática da criança pequena, antes do desenvolvimento da fala, é idêntica à de alguns animais, como os macacos antropoides; (ii) é inútil tentar desenvolver em animais as formas mais elementares de operações com signos e simbólicas; (iii) o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem; (iv) a fala da criança é tão importante quanto a ação para atingir um objetivo; (v) quanto mais complexa a ação exigida pela situação e menos direta a solução, maior a importância que a fala adquire na operação como um todo.
A relação entre o uso de instrumentos e a fala afeta várias funções psicológicas, em particular a percepção, as operações sensoriomotoras e a atenção, cada uma das quais é parte de um sistema dinâmico de comportamento. Estudos mostraram que a rotulação é a função primária da fala nas crianças pequenas. A rotulação capacita a criança a escolher um objeto específico, isolá-lo de uma situação global por ela percebida simultaneamente. Pelas palavras, as crianças isolam elementos individuais, superando, assim, a estrutura natural do campo sensorial e formando novos centros estruturais. Como resultado, o imediatismo da percepção "natural" é suplantado por um processo complexo de mediação; a fala como tal torna-se parte essencial do desenvolvimento cognitivo da criança. Assim, a linguagem e a percepção estão intimamente relacionadas.
Estudos sobre o comportamento de escolha em crianças tem mostrado que o processo de seleção pela criança é concentrado na esfera motora, diferente dos adultos que tomam uma decisão preliminar internamente e, em seguida, levam adiante a escolha na forma de um único movimento que coloca o plano em execução. No entanto, quando se introduz o uso de signos, o sistema de signos reestrutura a totalidade do processo psicológico, tornando a criança capaz de processar seu movimento. O movimento descola-se, assim, da percepção direta, submetendo-se ao controle das funções simbólicas incluídas na resposta de escolha.
O auxílio da fala possibilita que a criança reorganize o seu campo visuoespacial e crie um campo temporal que lhe é tão perceptivo e real quanto o visual. A criança que fala tem, dessa forma, a capacidade de dirigir sua atenção de uma maneira dinâmica. O campo de atenção da criança engloba a totalidade das séries de campos perceptivos potenciais que formam estruturas dinâmicas e sucessivas ao longo do tempo. A transição da estrutura simultânea do campo visual para a estrutura sucessiva do campo dinâmico da atenção é conseguida através da reconstrução de atividades isoladas que constituem parte das operações requeridas. Quando isso ocorre, podemos dizer que o campo da atenção se deslocou do campo perceptivo e desdobrou-se ao longo do tempo, como um componente de séries dinâmicas de atividades psicológicas.
A possibilidade de combinar elementos dos campos visuais presente e passado num único campo de atenção leva, por sua vez, à reconstrução básica de uma outra função fundamental, a memória. A memória da criança transforma-se num novo método de unir elementos da experiência passada com o presente. Criado com o auxílio da fala, o campo temporal para a ação estende-se tanto para diante quanto para trás. A atividade futura é representada por signos, a inclusão de signos na percepção temporal cria as condições para o desenvolvimento de um sistema único que inclui elementos efetivos do passado, presente e futuro. Esse sistema psicológico engloba duas novas funções: as intenções e as representações simbólicas das ações propositadas.
De acordo com dados experimentais sobre as leis básicas que caracterizam a estrutura e o desenvolvimento das operações com signos na criança, associadas ao fenômeno da memória, mostram que: (i) mesmo nos estágios mais primitivos do desenvolvimento social, existem dois tipos fundamentalmente diferentes de memória, a memória natural (caracteriza-se pela impressão não mediada de materiais, pela retenção das experiências reais como a base dos traços mnemônicos) e a memória mediada (envolve operações com signos que são produto das condições específicas do desenvolvimento social).
O uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura. As operações com signos aparecem como o resultado de um processo prolongado e complexo, sujeito a todas as leis básicas da evolução psicológica. As funções psicológicas superiores, não surgem do nada, mas são resultado de um processo de desenvolvimento. Podem-se distinguir, dentro de um processo geral de desenvolvimento, duas linhas qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto à sua origem: de um lado, os processos elementares, que são de origem biológica; de outro, as funções psicológicas superiores, de origem sociocultural.
À medida que a criança cresce, não somente mudam as atividades evocadoras da memória, como também o seu papel no sistema das funções psicológicas. A memória, em fases bem iniciais da infância, é uma das funções psicológicas centrais, em torno da qual se constroem todas as outras funções. Do ponto de vista do desenvolvimento psicológico, a memória, mais do que o pensamento abstrato, é característica definitiva dos primeiros estágios do desenvolvimento cognitivo. A verdadeira essência da memória humana está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos.
A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico é análoga à, invenção e uso de instrumentos, só que no campo psicológico. O signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho. A analogia básica entre signo e instrumento repousa na função mediadora que os caracteriza.
Na fase inicial das operações com uso de signos, o esforço da criança depende, de forma crucial, dos signos externos, através do desenvolvimento. Porém, essas operações sofrem mudanças radicais: a operação da atividade mediada como um todo começa a ocorrer como um processo puramente interno. Chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação externa. O processo de internalização consiste numa série de transformações: (i) uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente; (ii) um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal; (iii) a transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento.
II. IMPLICAÇÕES EDUCACIONAIS
Todas as concepções correntes da relação entre desenvolvimento e aprendizado em crianças podem ser reduzidas a três grandes posições teóricas: (i) posição de que o desenvolvimento e o aprendizado são independentes: centra-se no pressuposto de que os processos de desenvolvimento da criança são independentes do aprendizado; (ii) posição de que aprendizado é desenvolvimento: concebe o desenvolvimento como elaboração e substituição de respostas inatas; (iii) posição mista: tenta superar os extremos das outras duas, simplesmente combinando-as.
Podemos entender que o processo de aprendizado e de desenvolvimento não coincidem, nem são independentes, podemos rejeitar as três posições acima. Uma visão mais adequada da relação entre aprendizado e desenvolvimento exige uma solução mais complexa. Primeiro, é preciso considerar que o aprendizado das crianças começa muito antes delas frequentarem a escola. Qualquer situação de aprendizado com a qual a criança se defronta na escola tem sempre uma história prévia.
Um fato empiricamente estabelecido é que o aprendizado deve ser combinado de alguma maneira com o nível de desenvolvimento da criança. Podemos determinar pelo menos dois níveis de desenvolvimento: (i) nível de desenvolvimento real: o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados; (ii) nível de desenvolvimento potencial: determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. A distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial pode ser chamada de zona de desenvolvimento proximal.
Algo importante a se considerar em relação ao processo de desenvolvimento da criança é o brincar. É enorme a influência do brinquedo no desenvolvimento de uma criança., no brinquedo a criança cria uma situação imaginária. Não existe brinquedo sem regras, a situação imaginária de qualquer forma de brinquedo já contém regras de comportamento, embora possa não ser um jogo com regras formais estabelecidas a priori. O papel que a criança representa e a relação dela com um objeto originar-se-ão sempre das regras. Assim como toda situação imaginária contém regras de uma forma oculta, também todo jogo com regras contém, de forma oculta, uma situação imaginária. A criação de uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança; pelo contrário, é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais.
O atributo essencial do brinquedo é que uma regra se torna um desejo. Satisfazer as regras é uma fonte de prazer. O brinquedo cria na criança uma nova forma de desejos. Ensina-a a desejar, relacionando seus desejos a um "eu" fictício, ao seu papel no jogo e suas regras. Dessa maneira, as maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo, aquisições que no futuro tornar-se-ão seu nível básico de ação real e moralidade.
No início do desenvolvimento, há um domínio da ação sobre o significado, posteriormente essa estrutura se inverte: o significado torna-se determinante sobre a ação. No brinquedo, predomina esse movimento no campo do significado. Por um lado, ele representa movimento num campo abstrato, enquanto por outro lado, o método do movimento é situacional e concreto. Isto é, surge o campo do significado, mas a ação dentro dele ocorre assim como na realidade.
Outra questão importante em relação à prática escolar diz respeito à linguagem escrita. Podemos destacar os seguintes pontos a respeito da história do desenvolvimento da linguagem: (i) gestos e signos visuais: o desenvolvimento da escrita começa com o aparecimento do gesto como um signo visual para a criança, o gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança; (ii) desenvolvimento do simbolismo no brinquedo: a segunda esfera de atividades que une os gestos e a linguagem escrita é a dos jogos das crianças, o brinquedo simbólico das crianças pode ser entendido como um sistema muito complexo de "fala" através de gestos que comunicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar; (iii) o desenvolvimento do simbolismo no desenho: o desenho começa quando a linguagem falada já alcançou grande progresso e já se tornou habitual na criança; (iv) o simbolismo na escrita: a criança realiza a descoberta básica de que se pode desenhar, além de coisas, também a fala.
Podemos concluir três implicações práticas da história do desenvolvimento da linguagem escrita em crianças: (i) seria natural transferir o ensino da escrita para a pré-escola: se as crianças mais novas são capazes de descobrir a função simbólica da escrita então o ensino da escrita deveria ser de responsabilidade da educação pré-escolar; (ii) a escrita, deve ter significado para as crianças: uma necessidade intrínseca deve ser despertada nas criança e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida; (iii) há a necessidade da escrita ser ensinada naturalmente: os aspectos motores da escrita podem ser acoplados com o brinquedo infantil e o escrever pode ser "cultivado" ao invés de "imposto".
Comentários