O NORMAL E O PATOLÓGICO - GEORGES CANGUILHEM (RESUMO)


O que se segue é um resumo do livro O normal e o patológico do filósofo e médico francês Georges CanguilhemCamguilhem propõe uma reflexão filosófica sobre os conceitos médicos de normalidade e patologia. O resumo se divide em três partes, a primeira parte discute a tese segundo a qual a patologia consistiria numa modificação quantitativa do estado normal. A segunda parte apresenta a proposta de se pensar em uma normatividade individual e a terceira parte se aprofunda um pouco mais nessa discussão de uma nova compreensão dos conceitos de normal e patológico. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original. 

I. A TESE DO ESTADO PATOLÓGICO COMO UMA MODIFICAÇÃO QUANTITATIVA DO ESTADO NORMAL 

medicina grega tinha uma concepção dinâmica de doença, não ontológica e não localizante, mas sim totalizante. A saúde é compreendida como equilíbrio enquanto a doença consistiria na perturbação desse equilíbrio. Nesse caso, a doença não está em alguma parte do corpo humano. Está em todo o corpo humano e é toda dele. De acordo com os hipocráticos, a saúde é o equilíbrio dos humores enquanto a doença ocorre quando os humores não estão em harmonia. 
Já a teoria ontológica vê a doença como um problema que atinge alguma parte do corpo. No entanto, tanto a concepção dinâmica quanto a concepção ontológica encaram a doença como uma força estranha que se distingue do estado de saúde, isto é, o patológico e o normal são de qualidades diferentes, há uma heterogeneidade entre o estado normal e o estado patológico. 
Na modernidade desenvolve-se a teoria de que o normal e o patológico tinham uma relação quantitativa. Segundo essa teoria, os fenômenos patológicos nos organismos vivos nada mais seriam do que variações quantitativas, para mais ou para menos, dos fenômenos fisiológicos correspondentes, isto é, o estado patológico seria apenas uma modificação quantitativa do estado normal. 
Podemos apresentar três exemplos de pensadores que defendiam a tese de que saúde e doença seriam opostos quantitativos: (i) Auguste Comte: entendia que as doenças consistiam em efeitos de simples mudanças de intensidade na ação dos estimulantes indispensáveis à conservação da saúde.; (ii) Claude Bernard: para ele, a saúde e a doença não eram dois modos essencialmente diferentes, haveria entre esses dois estados apenas uma diferença de grau, o estado doentio seria constituído pela exageração ou desproporção dos fenômenos normais: (iii) René Leriche: para ele, a saúde é a vida no silêncio dos órgãos e a doença é aquilo que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer. 

II. A PATOLOGIA COMO DETERMINADA POR UMA NORMA INDIVIDUAL 

A palavra “normal” pode ter diversos sentidos, pode significar: (i) aquilo que é conforme a regra; (iiaquilo que é como deve ser; (iiiaquilo que se apresenta na maior parte dos casos. Na medicina, normal significa o estado que se deseja estabelecer através do tratamento. A terapêutica visa justamente o normal porque ele é considerado como normal pelo interessado, isto é, pelo doente. A medicina existe como arte da vida porque o vivente humano considera, ele próprio, como patológicos certos estados que são apreendidos como negativos. 
A vida é, de fato, uma atividade normativa. A vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível de modo que ela é polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de valor. Podemos entender normativo como o que institui as normas e é nesse sentido que podemos falar de uma normatividade biológica. 
Para entender como a normatividade biológica e médica se constitui é preciso investigar como é que uma necessidade humana de terapêutica teria dado origem a uma medicina cada vez mais clarividente em relação às condições da doença. Do ponto de vista sociológico, é possível mostrar que a terapêutica foi, primeiro, uma atividade religiosa, mágica. Em Aristóteles, já aparece a crença numa mecânica patológica, já que ele admitia dois tipos de movimentos: os movimentos naturais, pelos quais um corpo retoma seu lugar próprio e onde fica em repouso e os movimentos violentos, pelos quais um corpo é afastado de seu lugar próprio. 
Na modernidade, o progresso do conhecimento físico consistiu em considerar, com Galileu e Descartes, todos os movimentos como naturais, isto é, conforme às leis da natureza e que, da mesma forma, o progresso do conhecimento biológico consiste em unificar as leis da vida natural e da vida patológica. Para o conhecimento médico e biológico, a vida não é um objeto, é uma atividade polarizada. Desse modo, é a vida em si mesma, e não a apreciação médica, que faz do normal biológico um conceito de valor. 
Outro termo importante a ser considerado é o conceito de anomalia. Etimologicamente anomalia significa o que é desigual, rugoso e irregular. Assim, do ponto de vista semântico, anomalia designa um fato, é um termo descritivo, ao passo que anormal implica referência a um valor, é um termo apreciativo, normativo. No entanto, a troca de processos gramaticais corretos acarretou uma colusão dos sentidos respectivos de anomalia e de anormal. Anormal tornou-se um conceito descritivo, e anomalia tornou-se um conceito normativo. 
A anomalia é a consequência de variação individual que impede dois seres de poderem se substituir um ao outro de modo completo. No entanto, variação não é doença. O anormal não é o patológico. Patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada. Mas o patológico é realmente o anormal. Desse modo, não se deve confundir anomalia com doença. 
Quando a anomalia é interpretada quanto a seus efeitos em relação à atividade do indivíduo e, portanto, à imagem que ele tem de seu valor e de seu destino, a anomalia é enfermidade. A enfermidade é a limitação forçada de um ser humano a uma condição única e invariável. Assim, a anomalia pode transformar-se em doença, mas não é, por si mesma, doença. 
No campo da fisiologia, a ideia de média, o módulo de uma característica mensurável que se apresente na maior parte dos casos de uma espécie determinada, é tomado como um equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito de normal ou de norma. No entanto, há de se concordar que a determinação das constantes fisiológicas, pela elaboração de médias experimentais obtidas apenas no âmbito de um laboratório, corre o risco de apresentar o homem normal como um homem mediano, bem abaixo das possibilidades fisiológicas de que os homens em situação de influir sobre si mesmos ou sobre o meio são, evidentemente, capazes. Sendo assim, é inútil tentar reduzir a norma à média, os conceitos de norma e de média devem ser considerados conceitos diferentes. 
Uma média, obtida estatisticamente, não permite dizer se determinado indivíduo, presente diante de nós, é normal ou não. O médico não pode partir dessa média para cumprir seu dever médico para com o indivíduo. O ser doente deve ser determinado a partir de uma norma individual. Devemos atribuir ao próprio ser vivo, considerado em sua polaridade dinâmica, a responsabilidade de distinguir em que ponto começa a doença. Isso significa que, em matérias de normas biológicas, é sempre o indivíduo que devemos tomar como ponto de referência. O indivíduo é que avalia se se encontra num estado patológico porque é ele que sofre suas consequências. A doença é um comportamento de valor negativo para um ser vivo individual, concreto, em relação de atividade polarizada com seu meio. 
Não há patologia objetiva, a patologia é subjetiva. O estado patológico não pode ser chamado de anormal no sentido absoluto, mas anormal apenas na relação com uma situação determinada. Reciprocamente, ser sadio e ser normal não são fatos totalmente equivalentes, já que o patológico é uma espécie de normal, pois o normal é viver em um meio em que flutuações e novos acontecimentos são possíveis. Portanto, devemos dizer que o estado patológico ou anormal não é consequência da ausência de qualquer norma. A doença é ainda uma norma de vida 
Desse modo, ser sadio e ser normal não são fatos totalmente equivalentes, já que o patológico é uma espécie de normal. Ser sadio significa não apenas ser normal em uma situação determinada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas. 
Considerado isso, fica claro que a fisiologia não pode ser definida como uma ciência da vida normal, por duas razões: (i) porque o conceito de normal não é um conceito de existência, suscetível, em si mesmo, de ser medido objetivamente; (iiporque o patológico deve ser compreendido como uma espécie do normal, já que o anormal não é aquilo que não é normal, e sim aquilo que é um normal diferente. Isso, no entanto, não significa que a fisiologia não seja uma ciência. A fisiologia é uma ciência por sua procura de constantes e de invariantes, por seus processos métricos, por sua atitude analítica geral. A fisiologia pode ser definida como ciência dos ritmos estabilizados da vida. 
Toda ciência tende à determinação métrica pelo estabelecimento de constantes ou de invariantes. A busca do ser humano de determinar cientificamente o real se estende à vida. A vida torna-se um objeto de ciência; e tornou-se, de fato, historicamente, já que nem sempre o foi. Acontece, portanto, que a ciência da vida tem a vida, não só como objeto, mas também como sujeito, já que ela é um empreendimento do homem vivo.  

III. UM NOVO CONCEITO DE NORMAL E PATOLÓGICO 

normal não é um conceito estático ou pacífico, e sim um conceito dinâmico e polêmico. A experiência de normalização é uma experiência especificamente antropológica ou cultural, a norma é aquilo que fixa o normal a partir de uma decisão normativa. O conceito de normal em biologia se define objetivamente pela frequência do caráter assim qualificado. Para indivíduos de uma determinada espécie, do mesmo sexo e idade, o peso, a estatura, a maturação dos instintos são os caracteres que marcam, efetivamente, o mais numeroso dos grupos distintivamente formados pelos indivíduos de uma população natural e que uma mensuração revela serem idênticos. 
A partir da experiência que o fisiologista tem com a variabilidade fisiológica, revela-se a necessidade de tornar mais flexível o conceito de normal. É no contexto da relação entre organismo e meio que podemos definir os conceitos de normal e patológico. Essa nova noção de normalidade pode ser chamada de normatividade vital, uma normatividade que pensa a vida em sua potencialidade dinâmica relacionada a um meio social e a partir da qual se produzem novas formas de vida. Na medida em que o corpo humano é, em certo sentido, produto da atividade social podemos falar ainda de uma normatividade social, que serviria de suplemento à normatividade vital.  
Um novo conceito importante em patologia é o conceito de erro. A introdução do conceito de erro na patologia é um fato de grande importância por dois motivos: (i) por manifestar uma transformação na atitude do homem em relação à doença, o termo "erro" mobiliza menos a afetividade do que os termos "doença" e "mal"; (iipor supor que esteja estabelecido um novo status na tentação de denunciar a confusão estabelecida entre pensamento e natureza, de protestar contra o fato de se atribuir à natureza os processos do pensamento, de protestar que o erro é próprio do julgamento, que a natureza pode ser testemunha, mas nunca juiz. 
Concluímos, pois, que o conceito de normal e patológico são determinados de maneira individual e subjetiva. É sempre a relação com o indivíduo doente, por intermédio da clínica, que justifica a qualificação de patológico. Embora admitindo a importância dos métodos objetivos de observação e de análise na patologia, não parece possível que se possa falar em uma "patologia objetiva". 

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