PRESENÇA E ALIENAÇÃO (TEXTO DE MICHEL HENRY)
O ser só é fenômeno se está distante de si mesmo. A obra da distância fenomenológica entendida como potência ontológica, como distância naturante e não simplesmente naturada, consiste precisamente em instituir o intervalo graças ao qual o ser poderá aparecer a si mesmo. O aparecimento, no contexto da distância fenomenológica, do ser que aparece, a manifestação desse ser é idêntica à sua existência. Por se fundar na distância, a existência do ser é diferente do próprio ser. Distingue-se dele assim como o que está longe de si mesmo; é ser ele mesmo, se assim o preferir, mas a uma distância de si mesmo, em sua não coincidência consigo mesmo; trata-se, pois, de estar na diferença. Consideremos, como o fez Johann Gottlieb Fichte, a parede em relação à qual dizemos que ela “é”. Aquilo no que consiste esse “é”, a saber, o ser da parede, “não é idêntico a ela, mas se distingue dessa parede como algo independente”. O que distingue o ser da própria parede, o que os diferencia de forma fundamental, é justamente a diferença entendida como a essência que permite que a parede seja.
O ser da parede é a própria parede
na infinidade da distância que, com a condição fenomênica, lhe dá existência
própria. A existência da parede é o ser da parede na medida em que este
ser colocado numa exterioridade radical em relação a si mesmo, é,
para citar a forte expressão de Fichte, “o seu ser fora do seu ser”. É
verdade que a consciência natural não tem “tempo para
contemplar o 'é', que lhe escapa completamente”; pelo contrário, mencioná-lo
de forma temática na consciência filosófica é levar a estabelecer que “o
'é', com respeito ao ser, é imediatamente existência”. O ser deve
existir, ele necessariamente existe. O argumento
ontológico não é um teste no sentido comum do termo: ele consiste na
leitura da condição fenomenal de ser. Essa condição fenomênica
é precisamente a existência do ser; é, na medida em que está fora de seu
ser, o próprio “ser do ser”.
A existência, que assim constitui o
próprio ser do ser, não se confunde com o ser puro e simples, com o ser
estável e absoluto. Ela tão pouco se sobrepõe a ele que, ao
contrário, se distingue dele: está com ele numa exterioridade absoluta e,
tendo-se afastado dele nesta exterioridade, coloca-o diante dela como um
ser estável. A existência nada é por si mesma, mas o ato de se afastar do
ser e, se nadificando diante dele, colocando-o diante de
si como outra existência absoluta. “A existência”, diz Fichte, “deve
ser apreendida, reconhecida e constituída como mera existência e colocada e
constituída diante dela como um ser absoluto do qual ela mesma nada mais é
do que mera existência: deve por seu próprio ser nadificar contra outra
existência absoluta; que fornece precisamente o caráter de mera
imagem ou representação do ser”.
Desse modo, a existência é pensada
como mera imagem do ser ou, se preferir, como seu conceito; pois
o que se designa pelo título de imagem não é, no que se refere ao ser,
mais do que sua própria exterioridade em relação a si mesmo. A imagem
é o nome da existência considerada como a manifestação do ser; é
o modo de ser: o que Fichte também chama de “conhecimento”. A Quinta
Conferência considera o “caráter do conhecimento em geral, que não é
mais que uma mera imagem de um determinado ser e que subsiste
independentemente dele”. Já na Terceira Conferência, Fichte
havia caracterizado o conhecimento como “a existência absoluta
ou a manifestação e revelação do ser em sua única forma possível”.
O dualismo do ser e da sua
própria imagem, que acaba de ser pensado como a condição fenomenal do ser,
não pode ser limitado em seu alcance; pertence, ao contrário, à própria
definição da estrutura interna da fenomenalidade e aparece,
portanto, como uma prescrição de uma ordem eidética, como uma
condição absolutamente universal, idêntica à essência da manifestação como
tal. Portanto, não só a parede do exemplo está sujeita a esta
condição, mas também tudo o que aspira ao título de fenômeno, tudo o que
pode e quer se manifestar: o ser na medida em que sua vocação mais íntima
é justamente a revelação de si. O ser de Deus seria apenas
o “Abismo”, não apenas mais obscuro, mas mais abstrato,
e, como tal, algo completamente irreal, se não fosse submetido por sua vez
às condições que abrem e definem o campo da existência fenomênica e da
verdadeira espiritualidade.
Agora, para ser mais exato, o
próprio Deus não é algo que se submete a tais condições; se ele é a
própria essência da espiritualidade, ele é o mesmo que essas
condições, ele se confunde com elas. Deus não é apenas essa vocação de se
manifestar e realizar-se nessa manifestação, mas o próprio movimento que
atualiza essa vocação, a força que a torna algo real. A essência
da divindade é, portanto, idêntica à deste poder; o que se
pensa em ambos os casos é a estrutura interna do absoluto, é a essência
da manifestação como tal. Desse modo, as condições da fenomenalidade encontram
na descrição da essência divina, não o exemplo particular, mas
privilegiado de uma realidade a que se submeteriam e que a ela se
subordinariam como regra geral, mas a sua própria realidade, em tanto precisamente
que não são condições abstratas, mas as próprias condições da
realidade e, como tal, a própria realidade ontológica absoluta.
O comentário fichtiano a
respeito do prólogo do Evangelho de São João situa-se nesta
perspectiva: vale como repetição dos pressupostos ontológicos que
evocamos; repetição que, por estar decididamente posicionada desta
vez no plano do absoluto, confere a esses pressupostos um caráter
decisivo. A definição de Deus como Verbo significa a
compreensão do ser divino como existência. O ser de Deus existe, se
manifesta e o faz de acordo com as condições que constituem a essência da manifestação, que
é, de fato, a própria essência da divindade. Que o ser de Deus existe
significa, de acordo com essas condições que constituem o seu ser, que
Deus está dividido em virtude do dualismo de ser e existência; que o
divino não pode ser colocado no aparecimento, antes, ao contrário, ele
deve ser posto na medida em que ele se pro-duz
diante de si, nadificando-se diante de si, de sua própria imagem,
que é a existência e o conhecimento do seu ser. A existência de Deus,
produzida a partir dele como aquilo que o faz existir, constitui assim a
realidade do ser divino; é, como um ser fora do seu ser, como uma
imagem e como uma existência, o próprio ser deste ser. O ser de Deus é
existência.
Como entender, de forma mais
precisa, a relação em Deus do ser e da existência? A existência de
Deus não é exterior nem posterior ao seu ser. Essa “existência que
distinguimos não é diferente dele”, diz Fichte; é “primitiva”, tão
primitiva quanto seu ser. Assim que para Fichte, e afins, e
antes dele para Jakob Böhme, não podemos considerar o ser
divino além do processo pelo qual emerge à luz; o Pai não é
dissociável do Filho que ele gera eternamente, e seu ser é o
mesmo que esta geração em que ele se realiza. O Verbo, dizia São
João, está em Deus, ou melhor, é o próprio Deus. O que, entretanto, se
alega na afirmação da unidade de ser e existência, é apenas que ela é ou
habita na forma do Logos no ser original do Pai; trata-se
de sua pertença à estrutura interna do absoluto. Mas isso não
significa que essa estrutura seja, contra o pano de fundo da imanência da
existência, uma estrutura unitária. A diferença é tão pouco suprimida dentro do
absoluto pela unidade nele de ser e existência, que é antes colocada por
essa unidade, e de uma forma tão radical que sobre o pano de fundo dessa
unidade é que, como o absoluto, ela se entrega à diferença quanto à sua própria essência.
Certamente, não é possível
continuar a distinguir em Deus o seu ser e a sua existência: não é
possível colocar, por um lado, “o ser como é interiormente e em si”, e por
outro, “a forma que assume pelo fato de existir”; visto que a
existência é o ser deste ser, e ainda, e por isso mesmo, porque
a existência é o ser deste ser, este ser divino é colocado fora de si como
um ser fora do seu ser. A unidade de ser e existência resulta na divisão do
ser, em sua separação de si mesmo e, como diz Fichte, em sua expulsão de
si mesmo. O que no ser de Deus é externo a ele, isto é, “tudo o que no ser
é consequência da existência”, isto é, também sua “forma”, na realidade não é
de todo estranho ao ser de Deus, ao ser do próprio Deus enquanto ele é
precisamente, isto é, enquanto ele existe.
A alienação é real não como algo
externo ao absoluto, mas como constituindo, ao contrário, sua própria
essência. Como imanente à vida interna do ser, ou melhor, como a
própria estrutura desta vida, é assim que a exterioridade se desdobra e
pode então dividir “o ser morto em si mesmo em um ser, por assim dizer,
repetido duas vezes, colocando-o diante de si mesmo”. Assim, a existência
não é diferente do ser, mas o que o faz este ser diferente de si. Vejamos
como Fichte se exprime a este respeito:
“O ser absoluto apresenta-se na
sua existência como esta independência relativamente ao seu próprio ser
íntimo. Ele não cria uma liberdade fora de si mesmo, mas é ele mesmo, nesta
parte da forma, essa liberdade que é seu fora de si mesmo, e neste aspecto ele
certamente é diferente em sua existência do que é em seu ser, e se expulsa
de si mesmo para reentrar em uma nova vida”.
As análises anteriores adquirem seu
significado ontológico concreto se estivermos dispostos a colocá-las no
quadro fenomenológico do qual constituem, de fato, uma definição. A
partir disso, torna-se claro que a passagem do ser-em-si ao ser-para-si
consiste na posição de ser-fora-de-si: é a passagem do ser ao
exterior a si mesmo; o que se realiza nessa etapa é o ser-fora-de-si
de ser-em-si, e esse ser- fora -de- si é o para-si de
ser-em-si: sua existência. Nesse ser-fora-de-si, o ser-em-si torna-se
outro, aliena-se, e nessa alienação se realizam as próprias condições de
sua manifestação. A alienação é a essência da manifestação.
O ser que se manifesta é o estar
presente. A essência da presença é a alienação. A
presença do ser em si mesmo coincide com sua separação de si mesmo ao
tornar-se outro; ela se constitui no desdobramento do ser, desdobramento
no qual ele se apresenta e, assim, entra na condição fenomenal de
presença. “Toda 'presença antes'”, diz Jean-Paul Sartre, “implica
dualidade e, portanto, separação”. E então: “a presença do ser para
si mesmo implica um desligamento do ser de si mesmo”. Assim, “a presença é
uma degradação imediata da coincidência, pois implica separação”.
As condições que definem a possibilidade
de uma presença e constituem, portanto, sua própria essência, têm um significado universal e
transcendental. São condições que permanecem, pelo menos enquanto se
desenvolve e se mantêm entre nós como o reino de uma presença. Pensamos
nessas condições sob o título de “distância fenomenológica”. Isso é
válido, portanto, como uma determinação eidética e intransponível do ser
real: a “possibilidade de um dado aparecer como dado” é “essa distância
intransponível e perpetuamente intacta, da qual uma presença pode ser
discernida". Compreendido em seu significado existencial e transcendental, o
conceito de distância fenomenológica é idêntico ao conceito original e
ontologicamente puro de alienação.
A alienação é intransponível. O
ser não existe e não se manifesta a não ser como alienado. A
realidade é real apenas na medida em que é ela mesma e diferente de si
mesma. A alienação não é apenas uma das muitas estruturas eidéticas:
é a própria estrutura da essência, como essência absoluta. A
supressão da alienação é uma impossibilidade de ordem eidética, e a ideia
de tal supressão constitui, do ponto de vista ontológico, um absurdo. A
supressão da alienação não poderia ter efeito ou ser algo
e, como tal, um fenômeno positivo que pudesse referir-se ao discurso que
afirma, a não ser que as condições realmente se encontrem realizadas nela. Essas condições,
entretanto, são realizadas apenas precisamente no fenômeno original e puro
da alienação. Se fosse realmente suprimida, essa supressão não seria
nada, não existiria. Essa supressão pode, de fato, ocorrer apenas no
contexto da alienação. E isso não quer dizer que, nessa supressão, o
fenômeno da alienação seria eliminado aos poucos e progressivamente, à
medida que a distância que separa o caminhante da meta se esvai ao ser alcançada. A
alienação abre e define o campo do ser; é uma estrutura ontológica
final.
A supressão da alienação não pode
ter significado ontológico. A alienação é, antes, colocada e mantida nessa
supressão como o fenômeno ontológico original que a funda e a torna possível. O
ser só existe como ser-outro, mas o retorno do outro ao mesmo, ou
melhor, a unidade que os une e que Fichte chama de “vida”,
não suprime sua dualidade, mas a pressupõe como seu fundamento
ontológico e fenomenal. “Esta segunda unidade dentro da dualidade
que não é suprimida por ela, mas subsiste eternamente, é
precisamente a vida”.
O que pode significar a supressão
da alienação se não se refere ao fenômeno ontológico que foi pensado sob
esse título? O que se deve entender pela unidade do outro e do mesmo,
se a alteridade subsiste, e o faz como a própria condição dessa unidade? Esta
é estabelecida como o que liga os termos separados, mas o vínculo que ela
estabelece nada tem a ver com qualquer processo de ordem ôntica. A unidade
em questão aqui tem um significado ontológico, assim como a diferença que
ela abole. É a unidade da presença. A presença é
justamente o que une. Porque a essência da presença é imanente em
unidade com o poder ontológico originário, que ela confere seu poder
próprio, de modo que é porque nossos sentidos nos unem as coisas e as visam,
por exemplo, que somos levados àquilo que nelas é visado, como a árvore que
está na colina.
A unidade do ser humano e
do mundo é uma unidade ontológica; suprime a alienação na
medida em que é idêntica à liberdade, isto é, à linha que nos une
às coisas. A essência ontológica dessa unidade, entretanto, nada mais é do
que a alienação. A supressão da alienação, de que se pode questionar
quando se coloca no plano ontológico, é idêntica a esta alienação. A
diferença é a essência da unidade. A essência da presença pensada sob
o título desta unidade recebe assim uma estrutura bem determinada. É
a essência de uma presença que se obtém pela mediação da distância fenomenológica.
A proximidade em que essa presença nos faz viver é idêntica ao distanciamento
absoluto cuja obra ontológica nos abriu um mundo. É uma proximidade à
distância. "Nós nos separamos apenas para sermos mais unidos”, diz Friedrich
Hölderlin, “para termos uma paz mais divina com todas as coisas e com
nós mesmos”.
A união da qual esta paz é feita
encontra, entretanto, seu início no que ela separa; a presença é
obtida no fundo da ruptura e da divisão. Assim, a
presença do ser em relação a si mesmo não é discernível por sua distância
de si mesmo. A essência da presença, ao mesmo tempo que a funda no
seu ser, prescreve caracteres específicos aos dados segundo os
quais aparece como outro no seio da alteridade. O que nos é dado é,
por isso mesmo, o que nos é tirado. O ser está aí para si mesmo como algo,
porém, que ele mesmo não é e daquilo que o separa, enquanto ele é, a uma
distância intransponível. Assim se explica que o ser presente pode, entretanto,
ser desejado e que esse desejo é vão. Pois ele é a essência, e esta,
incapaz de se superar, se fecha em si mesma, e se fecha em si mesma
na fria contemplação de si mesma, dando-se a si apenas como aquilo que lhe
falta, eternamente.
A presença é a base do
conhecimento; é, como tal, o sujeito do conhecimento
transcendental, que não lida com objetos, mas com “nossa maneira de
conhecer os objetos na medida em que isso deve ser possível a priori”. O
ser dos objetos é, entretanto, o próprio a priori. Ao
prescrever as condições de sua possibilidade aos objetos, o a priori
confere-lhes os caracteres derivados do desejo da essência. Os
objetos se manifestam com esses caracteres enquanto objetos separados que
o conhecimento nunca pode alcançar a não ser pela mediação dessa própria
separação. O conhecimento é, portanto, “sempre conhecimento do que
não somos, do que não podemos ser”. O desejo de “manter o benefício
da presença diante de si, sem sofrer os incómodos do distanciamento de si
mesmo continua a ser um ‘sonho’”. Para dar-se a presença a si mesmo, o ser
teve que se separar de si mesmo, e a vontade de se reencontrar
verdadeiramente, superando essa separação de outra forma que por sua
própria mediação só pode ser uma “paixão inútil”. O ser é o desejo de
si mesmo, sua própria nostalgia.
HENRY, Michel. La esencia de la manifestación. Traducción anotada de Miguel Üarcía-Baró y Mercedes Uarte. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2015, §10.
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