A AMBIGUIDADE DO DASEIN HEIDEGGERIANO

 

O Dasein em Martin Heidegger ao mesmo tempo que é pensado em um fundamento nadificante, é apresento como sendo um ente. Significará a ambiguidade crítica do Dasein heideggeriano que a filosofia do ser e, também a filosofia da consciência, não puderam permanecer fiéis em última instância ao seu desenho ontológico? O pensamento da essência está sujeito em todos os casos a tal incapacidade que o faz perder exatamente o que foi seu objetivo ao longo do caminho? Deve uma queda inelutável impedir-nos decisivamente de entrar no reino da presença compreendido em sua pureza? Ou não estará o caráter inelutável dessa queda, mesmo que possamos chamá-lo de inelutável, inscrito na própria essência e não deve ser compreendido, portanto, como um carácter eidético, isto é, como uma propriedade da própria essência e que nela se historiciza segundo a sua vontade?

 

A transcendência é o ato em que se institui um ultrapassemento radical de toda entificação, um ultrapassamento tal que é precisamente nele que o ente encontra seu ser. Porém, nesse ultrapassamento, transgredindo todo existente, a essência também obtém a morada que lhe pertence. A morada da essência é precisamente aquela do existente. Ser é o ser do ente. À questão de saber se a transgressão do ente não tem volta, há uma resposta de se tal transgressão, ao invés de levar realmente para além do existente, constitui, ao contrário, o próprio lugar em que o existente se dá. O motivo pelo qual a essência não pode ser mantida no afastamento original em que reside, além do existente, não seria senão porque esse além é o próprio ser de tudo que existe como tal?

Devemos buscar agora compreender a afirmação segundo a qual o ser é o ser do ente. O que é afirmado nesta declaração é a unidade essencial de ser e ente. O pensamento que opõe o ser ao ente ainda não penetra no conteúdo. Penetrar o conteúdo é atingir nele o que constitui o seu fundo mais essencial, é apreender o ser no seio mesmo do ente. A imanência do ser no ente não significa, sem dúvida, a supressão de sua oposição, ou melhor, da oposição como tal. Mas a oposição que faz surgir o ente sempre como o oposto, deriva justamente da imanência nela do ser, isto é, do nada. O poder ontológico do nada é imanente ao ente como seu pano de fundo mais essencial.

É sobre o fundo do nada nele que o ente é. Contra o pano de fundo do nada nele, o ente é negado. Sendo negado, o ente é mantido à distância, ele aparece, ele é. A negação do ser, que é obra do nada, é identicamente sua promoção à dimensão da presença fenomenal, seu advento ontológico como tal. Porém, a realização dessa obra se dá no próprio ente. Como o nada é imanente à determinação ôntica como aquilo que o faz ser, podemos dizer com Hegel que "a vida concreta da determinabilidade é a operação da dissolução”.  O nada não nega a determinação singular, mas a faz existir, a preserva e a conserva. Negando é que se preserva. Isso significa apenas que o ser é idêntico a nada. Mas o nada é ser. É o ser da determinação. O nada não se opõe ao ente, é constitutivo de seu ser. Também por isso a negação não é externa ao conteúdo; é tão interna a ele, ao contrário, que só nele o próprio conteúdo se manifesta e o faz tal como é. O conteúdo é exterior porque a negação é interior, porque o seu ser é o nada.

O pensamento ilusório, que pensaria que poderia vagar livremente sobre o conteúdo, deve ser lembrado do significado de toda transcendência como tal: constituir o ser do ente. Em sua ultrapassagem radical em relação a tudo o que existe, é a isso, porém, que essa transcendência é ordenada e ligada de forma não menos radical. Ligada a ela no próprio ato pelo qual ela lhe dá existência e a conserva, a transcendência, porque constitui precisamente a essência da determinação ôntica enquanto tal, é essencialmente finita. Essa finitude, mais original que a finitude da determinação que dela deriva, não afeta inevitavelmente a transcendência, a partir do momento em que se desenvolve para além do existente, isto é, de fato e sempre dele? O vínculo que une na origem a finitude e a transcendência não é o que, ultrapassando a si mesmo, se religa justamente àquilo que é ultrapassado? O significado de tal ultrapassamento não é então invertido?

Não é o “impulso para o além de si mesma” da transcendência, na verdade, um “retornar-se para”, se é verdade que ir além do existente é apenas o que lhe abre um lugar? Nessa “abertura para”, “o impulso para além de si” realmente encontra seu objetivo. O ente é aquilo para além do qual a transcendência, na seu ultrapassamento radical, desdobra o horizonte, só porque é primeiro aquilo em vista do qual esse horizonte é, como tal, aberto. O movimento, mais do que o existente, da transcendência encontra seu τέλος (finalidade) neste. 

Toda transcendência é, como tal, essencialmente receptiva. Na receptividade da transcendência reside sua finitude mais essencial. Essa finitude decorre do fato de que, na própria realização da transcendência que constitui a possibilidade de um acolhimento, se inscreve uma necessidade: a necessidade do que será recebido nesse acolhimento como tal. O que encontra a possibilidade de sua recepção no desdobramento da transcendência, não é, com todas as evidências, o próprio ente? A transcendência é a necessidade do ente. Na medida em que é a transcendência, a essência deixa de ser realizada quando essa necessidade que ela carrega é satisfeita. A essência só obtém sua concretização nessa realização. Mas a essência é, como tal, concreta. A necessidade de transcendência já foi realizada se a transgressão do ente é identicamente o retorno sobre ele e, como tal, o próprio ato pelo qual o ente é colocado. É por isso que o ser é, em virtude de sua própria estrutura, sempre e necessariamente o ser do ente. Em virtude de sua estrutura, o ser é sempre esse ato de “ir além” e “retornar para”, que é um ato de ir além do ente e retornar a ele. Esse ato é tão essencial ao ente quanto a transcendência que a constitui. A transcendência é finita na medida em que o ente está envolvido nela como o que ela necessita.

Terá sido em Kant que a essência do poder ontológico foi captada por si mesma e entendida a partir da ideia de transcendência, e que essa finitude se afirmou pela primeira vez e com a maior força? “Kant”, diz Heidegger, “teve que buscar a finitude no próprio ser racional”. Porque o ser racional se compreende em sua ontologia como transcendência, é que a finitude pode e deve buscar-se primeiramente nela. O ser racional é finito no sentido de que deve encontrar fora de si o ente que por isso deve receber, e de tal forma que só nessa recepção se realize a essência ou, como diz Kant, a razão alcance o conhecimento. Assim, a finitude não está ligada no homem do mesmo modo que uma sensibilidade está ligada sinteticamente à pura racionalidade que o define como ser metafísico, e de uma forma incompreensível para nós; na verdade, é a própria racionalidade pura que é finita, na medida em que, como transcendência, ela é e continua a ser essencialmente receptiva, ou seja, está fundamentalmente orientada para o ente que ela não é. 

Como receptiva, a transcendência constitui assim a sensibilidade enquanto tal e em sua possibilidade. Sensibilidade com respeito ao ente, isto é, a possibilidade de recebê-lo, é, portanto, fundada precisamente como a possibilidade de qualquer conhecimento efetivo em geral. O ultrapassamento do ente é identicamente o ato que o mantém em existência. Assim, o mundo que se constitui em tal ultrapassamento é transcendente aos "fenômenos" apenas na medida em que é, de fato, referido a eles. Se a totalidade nunca é dissociável do que nela se manifesta, é porque a transcendência do mundo é a própria finitude. A tarefa imposta pela ontologia de pensar a essência em sua pureza não pode significar a quebra do vínculo que une a transcendência enquanto tal aos fenômenos com os quais se relaciona. Em vez disso, está na compreensão desse vínculo

"Na inversão”, diz Heidegger, “a consciência não deve abandonar a sua morada no meio do ente; deve assumi-lo expressamente em sua verdade. Pensar na verdade dessa morada é entender como e por que ela é sempre na realidade para nós uma morada junto ao ente. A natureza da tarefa imposta pela ontologia no projeto que a define não esclarece, portanto, suficientemente a forma como deve ser levada a cabo para ser realizada? Se, segundo seu caráter mais próprio, a tarefa de pensar sobre a essência não pode ser cumprida fora da relação fundamental pela qual a transcendência, no retorno que é inseparável de seu impulso, é remetida aos fenômenos, a necessidade que ela tem não tem a ontologia de se dar um fundamento ôntico, portanto, começa a ser esclarecida e compreendida? 

Visto que o ser é o ser do ente, por que o nada é sempre o nada daquilo que nadifica, por isso a pergunta sobre o ser que promove a ontologia é sempre necessariamente e primeiro uma pergunta sobre o ente que se questiona em seu ser. Assim, a finitude que afeta o processo pelo qual a ontologia é construída em seu cumprimento é na verdade una com a do próprio ser, isto é, com a finitude da transcendência na medida em que se refere aos fenômenos no próprio ato pelo qual ela os transgride. A necessidade de a ontologia se dar fundamento ôntico nada mais é do que a expressão, no plano em que a filosofia se constitui, do elo indissolúvel segundo o qual o ser é sempre o ser do ente.

O que significa, do ponto de vista fenomenológico, a afirmação de que o ser é sempre na realidade o ser do ente? Ser designa a essência da manifestação. Que o ser é sempre o ser do ente, não significa, então, que a manifestação como tal, e em sua pureza, é sempre e apenas a manifestação de algo que se manifesta? E como entender fenomenologicamente essa referência necessária da essência da manifestação à determinação que se manifesta? Se a essência do fenômeno se refere necessariamente ao próprio fenômeno, não é porque aquela obra que o define e que é o ato de fazê-lo surgir na presença, não se cumpre com a essência da manifestação em relação a si mesma, mas apenas no que diz respeito à determinação que se segue graças a ela como um "fenômeno"? 

A essência é a essência da manifestação, mas a manifestação não é uma manifestação pura que se esclarece e é autossuficiente nesse aparecimento que se dá e com a qual se confunde. A essência da manifestação não é a manifestação de si mesma. O que se manifesta não é a essência, é o ente. A manifestação é a manifestação do ente. Uma manifestação, já dizia Böhme, só pode manifestar outra coisa. Na medida em que é necessariamente, em sua própria estrutura, a manifestação de outra coisa, a manifestação é essencialmente finita.

A essência é o que faz o ser não apenas ser-em-si, mas ser que existe para si, ser-para-si. A essência é a mesma para si mesma como tal, mas enquanto em seu ato de aparecer o que aparece não é este ato de aparecer, o para-si não é a manifestação de si mesmo, não é uma essência autocentrada [autônoma]. É o ser-em-si que se torna para-si , é isso que aparece. Precisamente porque, segundo Sartre, ser-em-si é o que se torna para-si , é que o para-si carrega consigo uma contingência intransponível, na medida em que nunca é outra coisa senão o ser-para-si do em-si, ou seja, a aparência de determinação contingente. É também por esta razão, porque o para-si nada mais é que o ser-em-si convertido em para-si , isto é, aparecendo, que “não podemos nos perguntar sobre a forma como o para-si pode unir - se o em-si". Comentando Heidegger, Sartre já havia escrito na introdução de O Ser e o Nada: “O ser é simplesmente a condição de todo desvelar: é ser-para-desvelar e não ser desvelado” . E depois: “O ser do fenômeno, embora coextensivo ao fenômeno, deve escapar da condição fenomênica e, consequentemente, transborda e estabelece o conhecimento que dele se adquire”.

A concepção segundo a qual o para-si constituiria uma essência autônoma não pode, na realidade, vir à luz, exceto precisamente quando seu significado de ser a essência foi perdido. O momento em que o para-si é considerado como um ente oposto ao em-si, é que pode parecer que tem, como termo oposto e independente, uma autonomia e uma suficiência pelo menos relativa. Desde que o sentido da essência não é mais disfarçado e o para-si é considerado como a manifestação pura, a sua referência necessária para o ente também trata de luz, uma vez que o para-si é, então, nada mais do que o aparecimento do ente.

Mesmo quando o pensamento de Sartre consegue evitar essa queda da essência na determinação ôntica (queda que caracterizamos não como subjetivação, mas como entização), o significado do para-si de ser nada mais que a simples presença do conhecido se encontra inevitavelmente afirmada: “o conhecimento nada mais é”, diz Sartre, “do que a presença do ser para o para-si , e o para-si nada mais é do que o nada que realiza essa presença” . Se por "ser" queremos compreender, como deve ser, o próprio ente, vemos que o "conhecimento" que encontra seu fundamento no para-si não é de forma alguma o ato de uma determinada realidade em oposição ao em si, mas a manifestação pura e simples do próprio ser-em-si e como tal. Portanto, no próprio momento em que a essência é compreendida em sua pureza, também se compreende o vínculo indissolúvel que a une ao ente.

Enquanto o ser do fenômeno escapa da condição fenomênica que só o fenômeno atinge, a essência da manifestação se oculta no próprio momento em que cumpre sua função. Este auto-ocultamento da essência da fenomenalidade é a automanifestação do ser. Na medida em que a essência é essa dissimulação, ela está necessariamente ligada ao que se manifesta, ou seja, ao ente. A não-verdade da essência é a verdade do ser. O ser, portanto, carrega em si, em sua verdade, a não-verdade da essência da manifestação. Precisamente porque a essência é a não-verdade, ela não se manifesta senão na verdade do ente ou seja, no próprio fenômeno e como tal. 

Só há essência onde há manifestação, ainda que seja, e porque é, esse "lá", esse "onde", esse "é" como tal. O significado fenomenológico do vínculo que une indissoluvelmente o ser e o ente consiste no fato de que a luz da manifestação não brilha em outro lugar senão no ente que se manifesta. Para dizer a verdade, não é a luz do ser que brilha no ente: na verdade, é o próprio ente que nela brilha, nesta luz que nada mais é do que o seu próprio esplendor.

“A luz”, diz Hegel na Filosofia da História, só é vivificante se for aplicada ao diferente de si, agindo sobre ele e fazendo-o frutificar. O que é diferente de si mesmo é o que permite que a luz seja vivificante, ou seja, que ela cumpra sua função, a saber, ser luz. Agindo sobre o ente que ela não é e fazendo-a frutificar, a luz primeiro se dá a possibilidade de se historicizar, não de outra forma, porém, senão no ato pelo qual se aplica ao que é diferente de si.  O que é diferente de si mesma é a única coisa que permite que a luz se manifeste; o ente é o que manifesta a essência da manifestação.

À medida que o ente permite que a essência da manifestação se manifeste, o vínculo indissolúvel que une o ser e o ente torna-se fenomenologicamente claro. De acordo com esse vínculo, manifesta-se que a única coisa concreta é a totalidade, por ela constituída, do ser e do ente. O ser está ligado ao ente como a luz àquilo em que se torna visível. Porque o aparecer só aparece naquilo que aparece e de que é, o elemento ontológico está inextricavelmente ligado à determinação ôntica. 

Vemos assim na obra de arte como a luz se une à terra, e de tal forma que a luz nada mais é do que o próprio elemento ctônico, que emerge da noite e brilha por um instante para nós, como se tivesse arrancado o Ser das trevas de seu ambiente original não era diferente da luz que vinha de um reino que não é em si uma noite menos profunda do que a do mármore ou da coluna.   Desse modo, o artista necessita da pedra não apenas como material para seu cinzel, mas principalmente como uma superfície sólida na qual a manifestação se reflete e pode brilhar. É no elemento ctônico e abstruso da determinação ôntica que a essência encontra seu lar. A Terra é o lugar da luz. A casa luminosa de que fala Ésquilo e que Marx queria dar aos trabalhadores é feita de seixos, blocos grossos e pedras sem alma. Hegel se refere às palavras de Heródoto segundo as quais os persas não tinham ídolos e riam das representações antropomórficas dos deuses. Essas piadas têm um significado limitado se a essência se refere necessariamente ao fenômeno, se ela se refere apenas a pura manifestação brilhar na figura; se a imagem é sempre essa imagem.

Assim, a essência da manifestação não é passível de ser mostrar exceto na determinação ôntica e por ela. No ser efetivo desta é onde a essência da fenomenalidade pura encontra a condição de sua realidade; é no próprio fenômeno que ele atinge a condição fenomenal.  A essência, porém, não é a determinação e tampouco o fenômeno. Se a fenomenalidade encontra sua eficácia imediata na determinação em que aparece, ela não tem menos imediatamente o significado de não ser a essência. A essência da fenomenalidade pura é distinta de sua eficácia. Na medida em que a essência da fenomenalidade é distinta de sua eficácia, ela encontra nela sua própria supressão. A determinação manifesta a essência, de tal forma, porém, que fica oculta naquela manifestação. 

À medida que a determinação manifesta a essência, é a sua verdade. Enquanto a essência está oculta nesta manifestação; na medida em que não se sobrepõe ao conteúdo fenomenológico real da determinação, a verdade desse conteúdo é alheia a ela: é, antes, a respeito dela, a não-verdade. Essa não-verdade da essência, finalmente, é o que está oculto na verdade da fenomenalidade real. Ela é oferecida como verdade da essência. Mas a verdade da essência é a mentira de sua não-verdade.

Para ser eficaz, a essência teve que se alienar. A essência é alienada não apenas porque se torna outra na qual se realiza, mas, mais originalmente, porque se perde nessa realização em que se esconde manifestando-se. Porque a essência não pode manifestar-se na determinação senão disfarçando-se, o que a essência manifesta tem o sentido de ser também aquilo que a oculta. A determinação é o enigma. É a aparência (Schein), mas uma aparência tal (Erscheinung) que nela o que aparece inevitavelmente se refere ao que não aparece. Como a manifestação real manifesta a essência ocultando-a, ela só pode manifestar essa ocultação desaparecendo.

A dissimulação da essência na entidade efetiva significa uma desigualdade da entidade em relação à essência. A supressão dessa desigualdade é a supressão da entidade. A morte da determinação é a manifestação da manifestação pura. Ou melhor, como com esse desaparecimento da entidade o elemento em que a essência encontra sua eficácia e, também, desaparece sua verdade, essa essência só pode ser diferente do nada graças ao surgimento da nova entidade. A essência chega até nós apenas no tempo das coisas, e a consciência que busca apreendê-la, perdida de fato por ela e incessantemente retirada do objeto de sua busca, não pode deixar de errar de experiências em experiências, de objetos em objetos, sem encontrar descanso.


________________________


HENRY, Michel. La esencia de la manifestación. Traducción anotada de Miguel Üarcía-Baró y Mercedes Uarte. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2015, §13.

Comentários

Postagens mais visitadas