FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA E FILOSOFIA DO SER (TEXTO DE MICHEL HENRY)
Os pressupostos ontológicos pensados pela tradição filosófica como a condição da fenomenalidade e, portanto, como constituindo a essência do fenômeno, podem ser denominados como "monismo ontológico". Tais suposições regem, desde sua origem na Grécia, o desenvolvimento do pensamento ocidental; indicando a única direção de investigação e o único espaço onde algo pode se mostrar e, assim, ser encontrado por nós. A singularidade dessa direção só pode ser posta em questão por uma superação do monismo, e assim, surge o problema de saber se essa superação faz sentido, caso, de algum modo, se tenha tentado ou esboçado alguma vez o curso da história do pensamento humano.
A
história do pensamento humano tem feito
considerável progresso, especialmente nos
tempos modernos. No entanto, se consideramos
a questão mais de perto, percebemos que esse
progresso tem sido
desenvolvido sempre no horizonte ontológico traçado pelo monismo,
cujo resultado mais notável não se
trata da ontologia contemporânea, mas a
libertação desse horizonte, levado, por fim, à
claridade do conceito e agora pensado como “o horizonte do ser”.
Com isso, porém, o que se prescreve à experiência
é uma conformidade a um caminho único e que
determina, de forma insuperável,
o quadro, o sentido e
a natureza de nossa relação com o ser.
Por um longo tempo, desde o início
da filosofia moderna, não terá sido pensado ou se revelado
outra forma original do ser? Não
terá a filosofia da consciência, através
de suas perfeições e imperfeições, se constituído
na a abertura de uma
outra dimensão de essência e existência? Não terá
a filosofia moderna indicado ao ser
humano que para ele e nele há outra
região de experiência, outro modo de realidade, e isso em sentido ontológico? A
partir do momento que o pensamento é capaz
de conferir aparecimento aos problemas que ele suscitou um caráter e
alcance de ordem ontológica, as oposições aparentes que pretendiam servir
de evidência e traçar de alguma forma no campo da pesquisa, linhas
que demarcaram a reflexão posterior, são apagadas, seu
significado aparece, em todo caso, como algo que deve ser questionado
e, muitas vezes, acaba se revelando como nulo.
A oposição entre consciência e ser,
que parece dominar a história do pensamento filosófico, pode, de
fato, ser mantida apenas em um plano pré-filosófico e pré-crítico. Não pôde
vir à luz, precisamente, porque pelo menos um dos termos entre os quais
tentou estabelecer-se permaneceu mergulhado, em termos de seu conceito,
numa indeterminação profunda. A filosofia do ser encontra sua origem
na ontologia grega, mas, como Heidegger observou , muitas
vezes permanece ingênua em considerar o ente como ele se oferece a
nós e tomar seu ser dado como certo, em vez de considerá-lo em si mesmo, e
de se perguntar decididamente sobre ele. Com Heidegger, ao contrário,
o pensamento eleva à categoria de problema o que possibilita o ser
enquanto ente a que sempre temos acesso, eliminando a “ambiguidade” do
termo ser, que significa tanto uma coisa quanto sua essência, e
que, portanto, também é “ontológico”. “O termo grego ὄν,
'ente'”, diz Heidegger, “também esconde em si a essência de sua própria
entidade".
Levar em consideração essa essência
é fazer a divisão, na própria entidade, entre o que é ôntico
e o que permanece ontológico. Com esta dissociação, o conceito
de ser sai da sua indeterminação pré-filosófica, deixa de
designar indistintamente, como o faz demasiadas vezes na
história da filosofia e ainda em Sartre, o ente e o seu
fundamento ontológico, para se referir explicita e exclusivamente ao
último. A oposição entre ser e ente surge no mesmo momento em que a
problemática conquista seu significado ontológico.
Quando o conceito de ser recebeu
sua própria determinação ontológica, o problema de sua relação com o conceito
antitético de consciência pôde ser colocado em uma base
filosófica. Terá a oposição clássica desde Descartes, entre a
consciência e a coisa, se sobreposto, como tantas vezes aconteceu, à da
consciência e do ser? Ao contrário, não é evidente que a análise
filosófica da "coisa" cai na mesma dialética e obedece às mesmas
prescrições do ente? A coisa, que nada mais é do que o ente, requer o
mesmo fundamento ontológico: uma essência da coisa, a coisidade como
tal. A coisa compreendida em sua unidade com a essência que a funda,
ainda é um termo antitético para a consciência, ou a
consciência não é precisamente a própria coisidade da coisa e, como
tal, sua essência? Na verdade, não é o ser que se opõe, em seu
conceito, à consciência, mas ao ente.
A consciência recebe, como ser, o
sentido de ser a essência e o fundamento. A oposição entre a
consciência e a coisa é a mesma que entre ser e ente. O advento do idealismo
moderno, de fato, esconde o aparecimento na história do
pensamento de uma forma nova e propriamente filosófica de perguntar:
aquela que, ao perguntar sobre a condição de possibilidade da
coisa, propõe assim a reflexão, como seu próprio objeto, a respeito
da elucidação da esfera ontológica da existência. Essa existência, entendida
como condição ontológica de possibilidade da coisa, é assim a
existência do ente sobre o qual o pensamento antigo medieval debruçou
sem perguntar, porém, sobre essa existência como tal. Ao trazer a
essência do que a ontologia grega considerava de um modo pré-filosófico
ser ela mesma ao estado de problema, a filosofia da consciência
aparece como a realização da antiga filosofia do ser; é um
fim e não um começo. Coincide com a ontologia contemporânea, que
soube justamente proporcionar a condição ontológica da possibilidade
de ser como tema de sua pesquisa e compreender essa
condição como meio ontológico de verdade.
A conexão da filosofia da
consciência com o problema da verdade entendida em seu significado
ontológico universal reside no fato de que o conceito de consciência é o
elemento com o qual a filosofia moderna pensa sobre a
possibilidade que as coisas têm de se manifestar: a essência da
manifestação. Assim sendo, antes de declinar, com efeito, à
categoria do ente simplesmente privilegiado, como atesta a oposição
que se estabelece entre ela e a totalidade do ente que é “ externa a
ela” , a consciência primeiro intervém no esboço ontológico de um
pensamento que se questiona sobre o poder, que dá ao ente sua condição
de fenômeno para nós. Se o conceito ontológico de ser designa
a essência da manifestação, a existência, se esta é a "forma"
do ser, se o ser é esta mesma forma, a consciência nada mais é que
esta forma, isto é, a própria existência, a manifestação como
tal. Que “a consciência é a existência absoluta ou a manifestação e
revelação do ser em sua única forma possível” é o que Fichte afirma
explicitamente.
Por isso, não poderia se
estabelecer uma oposição no nível ontológico entre os conceitos de ser e
consciência, antes, a demonstração de modo puro que se refere
deveria ser considerada por nós como diferente nos dois casos. Seria
necessário que o modo de manifestação pensado sob a denominação de
consciência não fosse o mesmo que constitui a existência que é a essência
do ser. Na verdade, Fichte pensa o mesmo poder ontológico
de manifestação pelos títulos de existência, forma, representação,
manifestação, revelação, imagem, consciência e ser em sentido filosófico, isto
é, no mesmo que tem o verbo “ser” na expressão “a parede é”. Esse
poder ontológico de manifestação consiste, como vimos, no
processo pelo qual o ser se divide e se separa de si mesmo para existir,
ou seja, para se manifestar.
Fichte
dá explicitamente o nome de consciência à existência fenomênica que ocorre
em tal processo. Essa consciência, que surge em um determinado
processo ontológico, tem, consequentemente, os caracteres ontológicos que
lhe são conferidos pelo processo do qual é derivada, e esses caracteres
são os mesmos da imagem ou representação, que também ocorrem
dentro de tal processo e que não são, para dizer a verdade, senão a própria
consciência: «A existência” - disse Fichte – “deve por seu próprio
ser nadificar-se perante outra existência absoluta; o que
precisamente lhe confere o caráter de simples imagem, representação ou
consciência de ser”.
A consciência não é, então, uma forma de
existência diferente daquela que surge na dilaceração interna do
ser; é antes esta mesma existência, esta forma particular e
única de todas as manifestações possíveis. “A consciência
do ser, única forma e modo possível da existência do ser, é, portanto, ela
mesma, totalmente imediata, pura e absolutamente, esta existência do ser”.
A consciência designa a essência da manifestação
interpretada de acordo com os pressupostos ontológicos fundamentais do
monismo. Por isso , por se identificar com o processo de autorruptura
e separação do ego do ser, a consciência é sempre apresentada, em sua
efetuação e em seu devir, como um ato de separar-se do ser, de elevar-se
acima dele, de distancie-se dele, para se opor a ele.
A emergência da consciência surge
assim em sua contemporaneidade com o desdobramento de uma distância,
com o cumprimento da divisão, da separação, da oposição a si
mesmo. Divisão, separação, oposição, entretanto, eram precisamente as
condições da fenomenalidade no monismo ontológico. Todas
essas condições, que são uma só, remetem, de fato, como tantos nomes
diferentes, mas equivalentes, ao mesmo fenômeno de alienação
pensado como o acontecimento fundamental que abre a dimensão do ser e da
existência. A consciência nada mais é do que a alienação do ser,
ou seja, o ser como tal. O tornar-se outro do ser é idêntico ao seu
surgimento na condição fenomenal de presença. Essa dimensão
fenomenal da presença é a própria consciência.
Visto que o absoluto ainda não
conhece essa divisão interna consigo mesmo que constitui a consciência, é
por isso que permanece, em Schelling, privado dela. “Ele nada mais é
do que a identidade absoluta na qual não há dualidade e que, precisamente
porque a dualidade é a condição de toda consciência, nunca pode atingir a
consciência”. O “termo supremo que se divide para aparecer” não atinge,
então, a condição de existência fenomenal e consciente até que
aceite abandonar-se à obra da alteridade e da divisão. A história
será precisamente o movimento pelo qual o absoluto se manifesta de acordo
com as condições que lhe são prescritas pela essência da manifestação
interpretada segundo os pressupostos do monismo. A história, diz Schelling,
é “uma manifestação nunca acabada desse absoluto que se divide
na consciência, isto é, que se divide tão somente para que possa aparecer”.
A identificação do conceito de
consciência com a concepção monística da essência da manifestação é, novamente,
o que leva Schelling a estabelecer, no Sistema do Idealismo Transcendental,
uma oposição irredutível entre inteligência e ação, o que ele também chama
de “a Produção”; oposição cuja irredutibilidade se deve
precisamente ao entendimento da oposição como essência da manifestação e
da consciência. Para que tal oposição seja instituída e
salvaguardada, e com ela a existência consciente, a inteligência deve
se desligar e se separar de sua ação; o intervalo que aprofunda essa
oposição constitui o meio fenomenológico onde a ação pode surgir e
se estabelecer como algo consciente e objetivo. “A
inteligência”, diz Schelling, “deve ser totalmente desligada da
produção para que a consciência possa nascer”. E, também: “Enquanto
a inteligência não difere de sua ação, nenhuma consciência dela é
possível”.
Inteligência e ação
não constituem, aos olhos de Schelling, duas realidades diferentes e
originalmente separadas; elas não são mais do que uma e a mesma
coisa; a inteligência não se opõe à ação, mas à “sua ação”,
isto é, a si mesma como ativa; no entanto, precisamente essa separação de
si mesma é a condição da fenomenalidade: uma condição primitiva que
então faz a inteligência e a ação aparecerem como
dois termos aparentemente diferentes, e o faz para que a
consciência possa nascer. Inteligência não é, para dizer a verdade, senão
a consciência de ação, ou seja, na verdade a própria ação em
sua oposição fenomenal diante si. Já o pensamento de Böhme foi
inteiramente guiado pela ideia de uma oposição e uma diferenciação
interior à vida do absoluto e constitutiva desta vida na medida em que não
é precisamente mais do que uma promoção à luz da manifestação.
O “Schiedlichkeit” (a
Separabilidade) é a condição da consciência. O conceito
de consciência é pensado por Böhme em sua solidariedade com os conceitos de
alteridade, espelhamento e desdobramento, ou seja, em sua unidade com o processo ontológico
de divisão interna do ser. Essa divisão se apresenta como a
condição da visão com a qual se identifica o conhecimento, ou seja, a
consciência e a existência fenomênica. A interpretação do conceito de
consciência a partir do desdobramento pelo qual o ser se oferece como
espetáculo e assim pode ser percebido e conhecido, não se manifesta
apenas, sob a influência de Böhme , no Sistema do Idealismo Transcendental:
na verdade, domina toda obra posterior de Schelling e, acima de tudo,
sua filosofia posterior.
Os grandes fenômenos humanos
(por exemplo, o nascimento e desenvolvimento da mitologia) ou divinos
(por exemplo, a criação) são ali interpretados de fato em termos da
necessidade de um advento da consciência, um advento que sempre é
pensado, a partir do fenômeno central da alienação, como divisão e
separação. “Essa separação”, poderia dizer um comentarista, “essa Scheidung [divisão],
não seria a condição de todo conhecimento consciente?”.
No entanto, a interpretação da essência
da consciência a partir de uma concepção monística do modo de manifestação
da realidade está muito longe de ser apresentada apenas dentro de uma
determinada corrente de pensamento filosófico. Não apenas nos pós- kantianos ,
e especialmente em Hegel, a consciência em seu conceito é
identificada com o fenômeno ontológico da alienação do ser e sua oposição
a si mesmo: esta concepção de fato domina toda a filosofia da
consciência , e ela encontra sua ilustração, bem como sua formulação
mais geral, na compreensão da essência da consciência como “representação”.
A representação designa um modo
de presença. Representar significa estar presente. A
representação é sempre a representação de algo; implica algo
representado que tem justamente a missão de tornar-se presente. Portanto,
é conveniente distinguir a representação entendida como um ato de estar
presente e, por outro lado, a realidade que a presença atinge nesse ato,
ou seja, o representado como tal. O que é representado é algo
ôntico; já a representação, que significa presença como tal,
refere-se antes a um processo ontológico. O processo em que se baseia
a representação, na medida em que designa a essência da presença, é o processo
ontológico de alienação. A representação é uma apresentação que
implica uma duplicação. Essa duplicação encontra seu fundamento na
duplicação oposta, pela qual o ser se separa de si mesmo para se perceber
e, precisamente, para se “representar”.
A presença que emerge nesse
desdobramento oposto é a “existência” de Fichte, que, por isso, é
entendida como representação. “A existência”, disse Fichte, “deve por
seu próprio ser contra outra existência absoluta; o que fornece
precisamente o caráter de uma simples imagem, representação ou
consciência de ser”. “A existência do ser”, diz também Fichte, “é a
consciência ou representação do ser”. A assimilação da consciência à
representação não é acidental: ela se baseia na comunidade de essência que
se manifesta por trás dos conceitos de “consciência” e “representação”
a partir do momento em que queremos apreendê-los em seu significado
ontológico.
A vontade de captar a essência da
consciência leva ao pensamento antes do processo ontológico que dá a essa
essência sua própria estrutura, e precisamente quando
sua essência é entendida a partir disso é que a consciência é
pensada como representação. Portanto, a representação não designa de forma
alguma um modo particular de vida da consciência, como se houvesse para
ela, como uma oportunidade que lhe é oferecida, uma vida
representativa com outras formas e outros modos possíveis - por exemplo de
existência, junto com uma vida sensível, conceitual ou afetiva. A
essência da consciência é o que deve ser entendido em sua própria estrutura
eidética e, como tal, universal à luz do conceito de “representação”. É
por isso que Heidegger pôde dizer que “a representação (Vor-stellen)
reina sobre todos os modos de consciência”.
A representação assim entendida é o que “se
apresenta no modo de representação”; refere-se explicitamente à
essência como tal da presença, o que nos convida a entendê-la como uma
presença que é aquela do representado, ou seja, a presença de algo que vem
antes, em um meio de exterioridade o qual não é dela mesma enquanto essência comum
de consciência e representação, mas da abertura. Uma das indicações
mais constantes pelas quais a filosofia da consciência às vezes tenta
especificar o conceito de representação em que se apoia, é a designação
desta como certeza. O que caracteriza a representação é a
certeza de si mesma. A representação é verdadeira. Ser
representado também é verdade, mas sua certeza está baseada na da
representação. Ou, para ser mais exato, a certeza do ser representado
reside justamente na sua representação. O que é verdade é a questão
da consciência natural. Mas o ser verdadeiro do verdadeiro é
precisamente a certeza como tal.
Aqui surge uma
questão: quando a representação é entendida como autocerteza, ela
ainda designa a própria essência da manifestação? Ou a
intervenção do conceito de certeza contribui
de fato com uma modificação real para a compreensão dessa
essência? A partir de Descartes, ser verdadeiro (ens verum)
é interpretado como ser certo (ens certum). Não
é, porém, uma nova interpretação da verdade do ser, mas o momento em
que, pela primeira vez, essa verdade é trazida à condição
de problema. Levar em conta esse problema nos leva a pensar que
a verdade do ente consiste no fato, para ele, de ser representado. O ente
é representado quando é arrancado da noite à qual, por si só, é dado em
princípio. A representação do ente é, ao contrário, sua
emergência à luz, que efetua e traduz sua ascensão ao posto de
"fenômeno"; trata-se da verdade entendida em um sentido
ontológico.
Como a verdade ontológica, idêntica à
representação, é compreendida quando também é identificada com a
certeza? Se a certeza designa o ser-certo do que é verdadeiro, o fato
de que o que nos aparece apareça, a emergência à luz em virtude da qual o
ente se oferece a nós como é, essa emergência pela qual o ente se
torna um ente verdadeiro ou certo ( ens verum , ens certum )
é obra da representação. A certeza é a certeza da representação. A
essência da manifestação que constitui o ser-verdadeiro do verdadeiro,
ou seja, a certeza como tal, é aquela cuja estrutura se constitui
pelo processo ontológico da representação na medida em que não é outro
senão a da alienação.
A certeza é uma denominação para
designar o que se produz graças a tal processo, ou seja, a existência
fenomênica e a manifestação como tal. O que se pretende no conceito
de certeza é o significado fenomenológico do poder ontológico
de representação. O poder ontológico de representação certamente se
esgota neste significado fenomenológico. O ato de apresentar é
identificado com a emergência na luz. Por isso, precisamente,
a certeza não difere da representação enquanto tal e lhe
pertence como própria. Sua essência é a da representação. Visto
que a essência da certeza é a da representação, a certeza é sempre a
certeza de algo. Apenas designa, como certeza, a verdade do ser. Com
a intervenção do conceito de certeza, o que é pensado não é outra
forma de verdade, outra verdade diferente daquela do ser: o que é pensado é
esta própria verdade, em si e para si. A certeza da representação é o
meio ontológico no qual o ente se manifesta, é a essência da
manifestação e a verdade do ente.
Com o conceito de certeza, a ideia de
uma subjetividade se delineia no horizonte. A certeza é subjetiva. A
representação opõe-se ao representado como o subjetivo
ao objetivo. Na medida em que reside na certeza da
representação, a verdade também é dada como subjetiva. O
sentido último da verdade entendida em um sentido ontológico depende da
interpretação que deve ser dada ao conceito de "subjetividade". A subjetividade
é a essência do sujeito. O sujeito aparece como
condição da fenomenalidade dos fenômenos. O objeto não pode
simplesmente se tornar o que é para nós, isto é, um fenômeno, não mais do
que quando é referido ao sujeito. A clássica oposição entre sujeito e
objeto surge quando o ser do objeto se torna um problema, isto é,
quando se trata de pensar o objeto em sua qualidade de ob-jeto. O
que torna o objeto o que é, isto é, algo que se coloca diante de nós, é o
sujeito na medida em que é justamente a potência que opera essa posição
"diante de".
O objeto se manifesta na medida em que
é consciente. Mas o ser consciente do objeto reside no
sujeito. A consciência, entretanto, não é o sujeito. Se consideramos
mais de perto, constataremos que a oposição estabelecida
pela filosofia clássica entre o sujeito e o objeto não é de
forma alguma uma oposição entre algo que
é consciente (o sujeito) e algo que não é consciente (o objeto),
entre a consciência e inconsciência. O
que caracteriza o objeto é justamente o fato de ele ser consciente. O
ser-em-si ao qual muitas vezes assimilamos o objeto não é de forma
alguma um ob-jeto. Ser um ob-jeto é estar localizado na dimensão
fenomenal da existência e pertencer, como tal, à
consciência. Esse pertencimento à consciência se baseia, é claro, na
relação com o sujeito.
A consciência reside precisamente
na relação do sujeito e objeto, ela é essa relação enquanto tal. Se o
desígnio ontológico do idealismo moderno se expressa
na oposição incansavelmente formulada entre sujeito e
objeto, então a consciência reside em seus olhos exatamente nessa
oposição. O sujeito não é nada diferente do objeto e que poderíamos
opor a ele como opomos uma realidade a outra, contra o pano de fundo de
uma diferença em suas propriedades e seus caracteres, de uma diferença,
por exemplo, entre o ser consciente e o ser inconsciente. Em
si mesmo, o sujeito não se opõe ao objeto. “Não há separação
entre eles até que não haja consciência”.
A consciência não é, então, o
sujeito, mas a oposição de sujeito e objeto. Quando Charles Renouvier fala da
“oposição do sujeito e do objeto essencial a toda consciência”, o que seu
pensamento pressupõe está mais do que implícito. Esse
pressuposto também aparece claramente nas teses de Schelling,
segundo as quais não é o sujeito, mas a dualidade, a divisão como tal, a
condição de manifestação, da consciência. Visto que a consciência é a
divisão, é a produção dos dois termos, e não de um deles, o sujeito, com o
qual se identificaria para se opor ao outro em uma oposição que
permaneceria externa a ela e seria acrescentada sinteticamente
ou acrescentada por um observador externo. A oposição é interna à
consciência. É tão interna que a consciência nada mais é do que essa
oposição.
Como a consciência é a oposição, não é
um dos termos, mas os dois termos ao mesmo tempo, na medida em que é a lei
que os engendra: “O eu da consciência”, diz Schelling numa proposição
fundamental, “não é sujeito puro: é ao mesmo tempo sujeito e objeto”. A
consciência reside na oposição do sujeito e do objeto, ou seja, em sua
relação. Ela é a relação enquanto tal. A relação é o
termo concreto; os abstratos, ao contrário, são os termos entre os quais
a relação se estabelece: “o puro subjetivo, como o puro objetivo”,
diz Hegel, “é uma abstração” . “O sujeito e o objeto aparecem
como dois momentos abstratos de uma única estrutura, que é a presença”,
diz Merleau-Ponty.
O objeto não pode ser abstraído
dessa estrutura da presença, pois somente dentro dela está um ob-jeto. O
sujeito, por sua vez, não tem subsistência enquanto estiver determinado
em frente ao objeto. Visto que Sartre confunde a consciência com o
sujeito abstrato (assim como confunde o ser com o objeto), é
precisamente por levado a pensá-la como algo abstrato; afirmar
que “O Para-si não é de forma alguma uma substância
autônoma”; que o dualismo vem da abstração da consciência e do
ser; que o que é concreto é a relação entre eles. A afirmação do
caráter abstrato do sujeito e do objeto (indevidamente chamados Para-si ,
em-si, consciência, ser, etc.) e, inversamente, do caráter concreto de sua
relação, permite a Sartre desafiar o dualismo resultante da abstração e
rejeitar a objeção da incomunicabilidade das duas regiões
por ele distinguidas: o em-si e o Para-si: “A relação das
regiões do ser é um brotamento primitivo que faz parte da própria
estrutura desses seres”.
A relação é na verdade a região
ontológica Fundamental, é justamente o brotar da luz que define o
campo transcendental do ser e da existência. A consciência é ela mesma
essa relação como tal. Do ponto de vista ontológico, não há duas
regiões do ser, mas uma única região, e a consciência, que não é o sujeito
nem o objeto, mas sua relação, é precisamente essa região
ontológica fundamental, não uma das duas regiões distinguidas pela
abstração. No plano ontológico, a filosofia da consciência
não funda nem autoriza nenhum dualismo. Ao rejeitar as formulações
impróprias nas quais quase sempre esteve embutida, para finalmente se
compreender à luz do sentido da problemática fundamental que
tentou estabelecer desde o início, a filosofia da
consciência surge como expressão do monismo ontológico. Entendida
como essência, sem constituir de forma alguma um dos termos de uma
dualidade, a consciência é o comércio que se estabelece entre
esses termos; é o ser desse “entre”.
Se considerarmos a totalidade
concreta da realidade, a totalidade constituída pelo real em sua
realidade, isto é, no ato pelo qual ele se manifesta, vemos que essa
totalidade não pode de forma alguma ser traduzida com a equação “consciência
+ relação com o objeto + objeto”. A consciência, de fato,
nada mais é do que a relação com o objeto. Mas pode a ideia de
sujeito ser mantida como um termo oposto ao objeto, de modo
que tenhamos a equação “sujeito + relação com o objeto
(ou consciência) + objeto”? Os três termos desta equação não
estariam, para começar, de forma alguma situados no mesmo plano? Apenas
o segundo desses termos, a relação como tal com o objeto, é de ordem
ontológica.
Mas se o objeto é uma realidade ôntica
cujo ser é constituído pela relação como tal; se permanece, portanto,
uma determinação real que encontra seu fundamento ontológico na
consciência, tal situação não pode ser conveniente para o sujeito. O
ser do sujeito é, com efeito, a relação como tal. A dissociação entre
os conceitos de consciência e de sujeito só é possível na medida em que,
em relação a este último, se mantém em uma determinação pré-crítica que
faz com que a realidade que ela designa decline ao nível de uma
realidade de ordem ôntica. De fato, a realidade ontológica como tal é
o que aponta a filosofia da consciência quando faz
intervir o conceito de sujeito em sua problemática.
O sujeito designa o evento
ontológico que faz com que o ente acesse a condição de objeto, ou
seja, a condição de fenômeno para nós. O sujeito não é nada fora de
tal evento compreendido em seu significado ontológico absolutamente
puro. Fazer com que o ente acesse o âmbito do fenômeno, fazê-lo
surgir à luz da existência fenomênica e consciente, é obra que se
pensa como própria do sujeito, e o ser deste nada é fora de tal obra,
pois, ao contrário, ele se esgota nela. O ser do sujeito é, portanto,
identicamente a própria emergência da existência fenomenal: consiste na
abertura da dimensão ontológica da presença. Visto que essa dimensão
ontológica da presença é tradicional e indevidamente pensada com o
nome de "conhecimento", é por isso que o sujeito é
entendido precisamente como a "condição do conhecimento". O
sujeito é o poder do conhecimento, o cognoscente como
tal. Mas “o cognoscente nada mais é do que aquilo que faz com
que o conhecido esteja lá enquanto presença”. “O conhecimento e o próprio
cognoscente nada mais são do que a presença do ser”. O conhecimento,
em suma, é “a pura solidão do conhecido”.
Desse modo, o sujeito é o que torna o
objeto presente: é sua presença como tal. O que torna o objeto presente,
o que o torna ob-jeto, o que o torna o que é, o
objeto enquanto objeto, é o seu ser. O sujeito é o ser do
objeto. É a base ontológica a partir da qual o objeto é o que
é. O dualismo do sujeito e do objeto não é um dualismo ontológico: é
o dualismo da essência e da determinação ôntica que encontra seu
fundamento ontológico nessa essência. O dualismo
tradicional surge assim como formulação primeira, como
pensamento pré-crítico de uma dissociação propriamente
filosófica entre o ente e o seu ser, entre o que é de ordem ôntica e o que
pertence, ao contrário, à esfera ontológica da essência. Essa região
ontológica da essência é o que se pensa sob a denominação de sujeito,
enquanto o objeto designa o ente no fundo da essência nela, em sua unidade
inseparável com ela.
O que está oculto na distinção entre
sujeito e objeto é uma e a mesma essência, e o dualismo tradicional
é um monismo ontológico. Mas a unidade essencial cujo título é monismo
ontológico não é, embora o funda, a unidade do sujeito e da determinação
ôntica; o que essa unidade significa é a singularidade do modo de
manifestação segundo o qual a entidade se realiza no sujeito, que nada
mais é do que esse modo de manifestação como tal.
Os pressupostos últimos aos quais se
dirige a denominação de monismo ontológico não se esgotam na afirmação da
unicidade do modo de manifestação compreendido em sua pureza
fenomenológica essencial: de fato conferem a esse modo uma estrutura
eidética perfeitamente definida. Não é apenas a afirmação da
singularidade da essência fenomenológica, mas a identidade da estrutura
dessa essência que estabelece a identidade essencial, para além das
diferenças aparentes, da filosofia da consciência e
da filosofia do ser. Ao pensar o sujeito como fundamento
da fenomenalidade dos fenômenos, a filosofia da consciência
acaba interpretando o ser desse sujeito como a Relação. Na
medida em que é a relação, o sujeito é o estabelecimento e a manutenção de
uma distância, a potência ontológica que desdobra o horizonte, a
espacialidade original e transcendental que abre o lugar onde algo
pode se manifestar; e algo se distingue disso como o meio puro e
privado de determinação no qual a determinação é capaz de aparecer. “A
consciência”, diz Hegel, “é ela própria o espaço privado
de determinabilidade”.
Na medida em que é a Relação, o
sujeito é o Ser-em. O Ser-em é um Ser-no-mundo. Mas o
mundo em si nada mais é do que ser-em. É o espaço primitivo e
não espacial que significa a abertura de um meio. A espacialidade do
Ser-em é uma denominação para o processo ontológico de alienação; é a
autosseparação da essência que faz surgir o intervalo e, como
tal, a própria Relação na sua origem. A luz que surge nesse
intervalo é tanto a do mundo quanto a da consciência.
Sem dúvida, Husserl diz que a
consciência não é nada do mundo, mas por mundo ele entende
apenas a totalidade do ser, e que a consciência não é nada do mundo assim
compreendido significa apenas que, como essência ontológica, ela mesma não
é, em sua transcendência em relação a tudo o que existe, mais do que o
próprio mundo em sua mundanidade pura. O mundo em sua
mundanidade pura não é, de fato, um caráter de ser. “O
fenômeno do mundo pertence, como momento estrutural essencial do ser-no-mundo,
à constituição fundamental do Dasein”. Portanto, o mundo
pertence à estrutura da essência ontológica da presença, mas, neste
pertencer à essência, se confunde com ela.
O ser-em e o mundo
designam de forma idêntica o reino de uma presença que se realiza na forma
de uma pura espacialidade. Qualquer referência do Ser-em a uma
subjetividade que não pertence a essa espacialidade
transcendental original é excluída por princípio. Pode-se dizer que o
mundo é "subjetivo", mas isso significa apenas que é “mais
objetivo do que qualquer objeto”. A subjetividade do mundo
apenas marca sua transcendência com respeito a todos os entes: é transcendência
como tal. A transcendência é a essência da manifestação, o
aparecimento do que aparece. Na medida em que é o Ser-em e a Relação,
o sujeito é este aparecendo como tal: é a essência da manifestação no
sentido monístico. “A subjetividade do sujeito”, diz Heidegger, “é o
próprio Erscheinen [aparecer]”.
O aparecimento do que aparece, o ser
do ente é o que constitui a subjetividade do sujeito humano. A
luz que passa por nós é a do mundo. A verdade está em nós, no
interior do homem. A consciência tem em si a medida da
verdade. Mas a verdade que constitui a nossa própria interioridade
não é senão a luz absoluta da exterioridade. A subjetividade humana
é a transcendência do mundo. A identificação da essência da
consciência com a pura exterioridade da transcendência surge no
momento em que a problemática da consciência é compreendida em seu puro
significado ontológico.
Quando a essência da consciência é
apreendida como verdade no sentido ontológico, isto é, como a essência
pura da manifestação, essa essência da consciência é necessariamente
identificada com a essência da manifestação. Chegando ao seu último
estágio e compreendendo-se plenamente em sua verdade, a filosofia da
consciência só pode ser uma repetição dos pressupostos fundamentais
do monismo. Na verdade, o progresso na determinação da
essência da consciência e na compreensão da estrutura interna
da manifestação pura são paralelos. A determinação da essência
da consciência constitui precisamente um momento essencial dessa
compreensão. Tal determinação começa com a concepção de um
sujeito do conhecimento e prossegue com a interpretação do ser do
sujeito como uma relação com o objeto. A consciência é então
entendida à luz do conceito central de intencionalidade. Toda
consciência é consciência de alguma coisa. Como intencional, a
consciência é essa ultrapassagem que dá acesso às coisas.
O mais recente progresso na
determinação ontológica do conceito de consciência reside na afirmação de
que a consciência nada mais é do que essa ultrapassagem. Então, o ser
da consciência é verdadeiramente identificado com o processo ontológico da
realidade; deixa de ser o ser determinado de um sujeito oposto, como
realidade dada, à realidade dada do objeto, para se tornar o princípio de
toda realidade como tal.
A consciência não é mais o predicado, ou
mesmo o atributo essencial, do ser substancial do sujeito. A substancialidade
do sujeito consiste na própria superação pela qual temos acesso às
coisas, e o sujeito é o próprio acesso, o Ser-em como tal. “Toda a
consciência é posicional e se esgota nessa mesma posição”. A essência do homem
na direção do ser é essa direção. Não basta dizer, como Sartre
também faz, que Heidegger rejeita “o isolamento megárico e antidialético
das essências”; o que nela se manifesta é uma nova concepção de
essência, segundo a qual a essência é a própria dialética,
troca e passagem. E essa essência define a própria humanidade do
homem, é a essência da realidade humana. É, portanto, no interior do
homem, nas profundezas de seu ser, onde reside a força ontológica da
dialética.
Todos os poderes do homem são
baseados exclusivamente neste poder que está nele. A visão, por
exemplo, “só é preparada internamente pela minha abertura para um campo de
transcendência”. A abertura enquanto tal ao campo transcendental, abertura
que é este próprio campo: tal é, em sua essência, o ser íntimo do homem. O
ser mais íntimo do homem é, então, a espacialidade original pensada como a
condição de toda presença. A compreensão do ser íntimo do homem a partir
da espacialidade transcendental da presença está na origem do conceito
monístico de existência. “A existência é espacial, ou seja, por uma
necessidade interior, se abre para um exterior”.
A exterioridade mais radical, mais
objetiva do que qualquer objeto, define a interioridade
mais íntima. O que é mais objetivo do que qualquer objeto é sua
condição, sua existência. O significado é a condição do objeto como
tal. O objeto é o ser transcendente. Mas a transcendência é a
interioridade do sujeito humano, é o ser mais íntimo do homem. A
transcendência é existência universal. A existência do homem é a
existência das coisas. A subjetividade do sujeito nada mais é do que
a objetividade do objeto. A identidade da subjetividade do sujeito e a
objetividade do objeto podem permanecer ocultas por muito tempo. O
fato de não ter se manifestado antes na problemática filosófica se deve,
em primeiro lugar, ao fato de a objetividade do objeto ainda não ter
sido elevada ao estado do problema.
Enquanto o pensamento filosófico nada
mais era do que a promoção conceitual do que a consciência natural
aponta, o objeto só poderia aparecer como uma dada realidade
oposta ao homem. Ao contrário, uma vez que o problema se situa em
um plano ontológico, desde que se leve em consideração o ser do
objeto, não só se formula a relação do ente com um sujeito do
conhecimento, mas o ser desse sujeito já aparece, em fato, identificado
com a condição ontológica da possibilidade do objeto, ou seja, com a
objetividade como tal.
É por isso que é em Kant que,
talvez pela primeira vez, e de forma tão explícita quanto decisiva, o tema
do pensamento se constitui pelo problema da possibilidade do objeto,
e da determinação dessa possibilidade, entendida, em seu significado
ontológico absolutamente puro, como condição universal de possibilidade
de uma experiência em geral, seu resultado é realizado e alcançado na
e através da análise da subjetividade do sujeito do conhecimento,
entendida como esta forma a priori de toda experiência possível.
A forma a priori de toda
experiência possível aparece ao mesmo tempo que constitui contemporaneamente
e conjuntamente o ser do sujeito e do objeto. O ser do sujeito se
revela idêntico ao do objeto, é precisamente a condição de qualquer
objeto, o ser universal de todo objeto possível em
geral. Precisamente porque, segundo Kant, as condições de
possibilidade dos objetos da experiência nada mais são do que as condições
subjetivas do pensamento, é por isso que um “acordo” é
possível, ou melhor, que se encontra realizado desde o início, entre as leis
do pensamento e das coisas. Tal “acordo”, para dizer a verdade,
não consiste de forma alguma numa adequação entre duas
realidades distintas, embora ligadas por uma afinidade
misteriosa: funda-se de facto numa identidade de essência, na identidade
essencial do ser do sujeito e do objeto.
O sujeito não é um poder de
algum modo externo às coisas - o de dirigir julgamentos sobre elas ou de
estabelecer relações entre elas. Não há coisas fora do sujeito ou
abstraídas dele. O ser das coisas é o próprio sujeito. A crítica
do kantismo como intelectualismo, mais ou menos tingido de
psicologismo, permanece superficial e ignora
o profundo significado ontológico da Estética e Analítica transcendentais. De
acordo com este sentido, é claro que a estrutura da potência
transcendental do conhecimento constitui e define precisamente, como forma
pura e a priori, a própria estrutura do objeto como uma estrutura
universal e absolutamente necessária, isto é, como um estrutura e
como uma forma de objetos, que o objeto deve submeter para ser um
objeto.
A identidade do ser do sujeito
transcendental e a estrutura a priori do próprio
objeto manifesta-se ainda mais claramente se observa-se que convém, de
fato, inverter a fórmula proposta anteriormente e segundo a qual a
determinação da possibilidade ontológica do objeto em geral é realizada
na análise da subjetividade do sujeito do conhecimento. O que é
verdadeiro é antes o oposto: é na determinação progressiva da estrutura a priori
do objeto que a do ser do sujeito transcendental e de sua
subjetividade se realiza gradualmente, e isso porque a
subjetividade desse sujeito não é precisamente senão a estrutura a
priori do objeto: visto que a identidade do ser do sujeito e do objeto deve
finalmente receber seu verdadeiro sentido, segundo o qual se manifesta que
essa identidade se estabelece em detrimento da concepção de um ser próprio
e específico da subjetividade do sujeito, que de fato é pura e
simplesmente reduzida à objetividade e confundida com ela - com o que constitui
o próprio ser do objeto -.
A identidade da subjetividade do sujeito
e da objetividade do objeto, no pano de fundo da assimilação pura e simples do
primeiro ao segundo, persiste na filosofia transcendental, pelo menos
enquanto esta última permanecer no nível da primeira finalidade
ontológica. A necessidade, que aparece em Jules Lachelier como
a estrutura do espírito, constitui e define conjuntamente a própria
existência das coisas, e isso em um sentido ontológico. Existência no
sentido ontológico, “a existência de uma coisa distinta dessa coisa”, é o
meio ontológico que permite que essa coisa seja: é a sua verdade. “Verdade
ou existência”, diz Julian Lachelier.
A verdade de uma coisa é diferente dessa
coisa porque se opõe aos dados empíricos e da sensibilidade. Uma
coisa não existe em virtude destes, já que geralmente afirmamos a
existência de uma coisa na ausência de tais dados, e já que, por outro
lado, sua própria presença os transcende infinitamente na medida em que
não contêm os caracteres em si aquele que realiza tal operação. Esta
sua presença se confunde, ao contrário, com verdade ou existência,
que Lachelier interpreta à luz da ideia de necessidade. É
na necessidade de uma coisa que sua existência se funda para nós. A
necessidade não é um princípio lógico: é a dimensão ontológica da
existência. Como síntese da verdade que abre a dimensão
ontológica, a necessidade é ideal. Como tal, não se opõe, porém, à
realidade do objeto, mas constitui essa própria
realidade. O objeto é real na medida em que é necessário. A
necessidade é o ser do ente. A ideia de necessidade é a verdade
ontológica; é juntamente o ser das coisas e o “sujeito do conhecimento”. Essa ideia,
e somente ela, pode ser objeto de conhecimento, pois não é uma coisa, mas
a verdade a priori de todas as coisas.
A identificação do ser mais íntimo da
realidade humana com a própria essência das coisas não pode deixar de
contradizer as preocupações morais de um pensamento que acreditava ver no
conceito de “sujeito” a forma de afirmar, ao contrário, a supremacia do
ser humano, o homem sobre a natureza e, em primeiro lugar, removê-lo
da lei do objeto. No momento em que o sujeito deixa de ser
ingenuamente interpretado como um ente superior às demais para ser
entendido em sua verdade ontológica como a própria verdade desta natureza
e como sua lei mais íntima, surge um significativo esforço para dissociar
o sujeito da essência das coisas, de alguma forma colocando um segundo
sujeito atrás do primeiro, que então é abandonado, como sua própria
estrutura, à necessidade inflexível que constitui o ser do ente.
Vemos assim como Lagneau, ao final de
sua Lição sobre o Juízo, faz com que o ato superior do espírito consista
na distância que ele é capaz de tirar de seu próprio ser, para escapar de uma
natureza que é identicamente sua e das coisas. Mas essa distância, que encontra
sua formulação psicológica numa espécie de dúvida que a mente preserva em
relação a todos os seus julgamentos, não separa bem o espírito de sua
própria natureza quanto o revela a si mesmo. Não será essa natureza
algo diferente do próprio movimento pelo qual o espírito se separa de si
mesmo para se manifestar? A necessidade, entretanto, não é tanto essa
natureza do sujeito que ele deixa diante dele no ato pelo qual se retira
de si mesmo para escapar à lei da existência universal: ela pertence de
fato à estrutura interna deste ato como o princípio transcendental que
assegura a sua unidade.
Na medida em que é a condição que
permite que o múltiplo e o diverso da intuição “se unam em uma consciência”,
a necessidade é a potência que garante de dentro a unidade
fenomenológica do ser como unidade de representação. Longe
de poder deixar a necessidade fora de si mesma como uma natureza
alheia à sua própria essência, a transcendência a carrega, ao contrário,
nela como a condição interna da unidade de seu êxtase, isto é, como
uma estrutura eidética própria de sua liberdade ontológica. Como
tal, como este êxtase livre cuja necessidade garante sua
unidade interna, a transcendência é simultânea e conjuntamente a essência
do sujeito e das coisas: é a existência universal.
O significado ontológico
da filosofia transcendental pode se perder no neokantismo e
na filosofia clássica, que muitas vezes
é orientada para um psicologismo moral em que o sujeito é
considerado um ser livre. Que esse ser seja então entendido como ente
privilegiado não impede que esse privilégio tenha de ser fundado. Ele encontra,
de fato, e mesmo quando o pensamento não se preocupa em se voltar para ele,
em sua origem na essência. A concepção de um sujeito livre,
cuja liberdade se manifesta na dúvida ou em algum outro
comportamento característico, finalmente encontra seu fundamento na pura essência da
transcendência.
A
concepção de sujeito certamente evoluiu, pelo menos implicitamente, uma
vez que o problema da subjetividade do sujeito raramente é sujeito da
problemática. No entanto, o sentido dessa evolução é fazer aparecer
cada vez mais claramente uma identidade fundamental entre a compreensão da
subjetividade do sujeito e a da objetividade do objeto. A
substituição final do sujeito clássico por um “sujeito temporal” nada
mais faz do que afirmar a interpretação ontológica implícita ou explícita
do ser desse sujeito como transcendência. A temporalidade é a essência do
significado. Ela é conjuntamente a subjetividade do sujeito e o “horizonte
do ser”.
A concepção de um ser-comum da
subjetividade do sujeito e da objetividade do objeto revela plenamente a
vaidade das discussões clássicas entre os defensores da objetividade e os
adeptos de uma filosofia subjetiva. O caráter ingênuo
e pré-filosófico de certas críticas "decisivas", como, por
exemplo, aquela que os promotores do behaviorismo dirigiram
à filosofia da consciência torna-se especialmente notável. Assim,
de acordo com Watson, consciência é um conceito que não é definido
nem útil; algo evasivo que ninguém viu, tocou ou colocou em um tubo
de ensaio e que, consequentemente, deve ser considerado em pé de igualdade
com a antiga entidade metafísica e religiosa da alma,
para a qual é apenas um substituto moderno: a hipótese incontrolável.
Especificando sua crítica, Watson
acrescentou: “Se você é uma das pessoas que afirma que existe uma coisa
chamada consciência, que a consciência está em você; bem,
experimente. Você afirma que tem sensações, percepções
e imagens; bem, mostre tais coisas assim como as outras ciências
modernas mostram seus objetos”. Quanto ao primeiro ponto, segundo o
qual consciência é um conceito indefinido, não podemos deixar de concordar
com os behavioristas. É neles, porém, que essa ausência de
qualquer definição se manifesta, como se manifesta a ausência de
qualquer problemática filosófica séria a respeito do conceito antitético
em que pretendem, pelo contrário, basear-se, isto é, a de objeto.
“Prove essa existência para nós,
mostrando-nos”, diz Watson. A consciência é precisamente esse poder
de mostrar, ao qual as “outras ciências” e os próprios
behavioristas procuram constantemente apelar. Querem
uma filosofia ou ciência fundada exclusivamente no objeto e, ao
mesmo tempo, ignoram o que faz do objeto um
objeto. Contemporâneo dessa rejeição da condição do objeto é o apelo
exclusivo e bombástico a essa condição: “Faça ver”, dizem eles. Assim,
no próprio momento em que o negam, utilizam constantemente o princípio de
que afirmam, aliás, pretendendo ser os únicos que empregam legitimamente o
termo.
Por outro lado, quando Sartre
reprova Heidegger por abordar diretamente a analítica existencial sem
passar pelo cogito; quando, após definir o Dasein como o
projeto ekstático de suas próprias possibilidades, isto
é, como uma compreensão de si mesmo, pergunta: “Mas o que seria uma
compreensão que, em si mesma, não fosse consciência (de) ser compreensão?”; quanto a
ele a consciência é a posição do objeto, pois está exaurida nesta mesma
posição e nada mais é do que o ekstase da transcendência, isto
é, exatamente o que Heidegger entende pela compreensão ontológica (Verstehen) do
ser, e assim a crítica de Sartre não tem conteúdo.
“Subjetividade”, declara Heidegger ao
comentar a filosofia clássica, “é presença no modo de
representação”. A representação encontra seu fundamento no fenômeno
ontológico da alienação que abre o horizonte transcendental do ser, ou
seja, em última instância, na transcendência do mundo. O mundo é
minha representação. A inversão da doutrina, que aparece nas
obras posteriores de Heidegger, nas quais o princípio da fenomenalidade é
buscado na exterioridade radical do ser, encontra suas premissas em Ser
e Tempo e no pensamento filosófico tradicional, no qual de fato já
está incluído. O problema de saber se o acesso ao transcendental deve
ser feito à luz de uma filosofia do ser ou de
uma filosofia da consciência é de pouca importância se a
essência da manifestação que finalmente se visa e que constitui esse
transcendental é a mesma em ambos os casos. A determinação do
transcendental permanece condicionada, e de maneira essencial, enquanto
for apenas o princípio do objeto. Não há diferença entre
a filosofia da consciência e a filosofia do ser.
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