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FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA E FILOSOFIA DO SER (TEXTO DE MICHEL HENRY)


Os pressupostos ontológicos pensados pela tradição filosófica como a condição da fenomenalidade e, portanto, como constituindo a essência do fenômenopodem ser denominados como "monismo ontológico". Tais suposições regem, desde sua origem na Grécia, o desenvolvimento do pensamento ocidental; indicando a única direção de investigação e o único espaço onde algo pode se mostrar e, assim, ser encontrado por nós. A singularidade dessa direção só pode ser posta em questão por uma superação do monismoe assim, surge o problema de saber se essa superação faz sentido, casode algum modose tenha tentado ou esboçado alguma vez o curso da história do pensamento humano.

 A história do pensamento humano tem feito considerável progresso, especialmente nos tempos modernos. No entanto, se consideramos a questão mais de perto, percebemos que esse progresso tem sido desenvolvido sempre no horizonte ontológico traçado pelo monismo, cujo  resultado mais notável não se trata da ontologia contemporânea, mas a libertação desse horizonte, levado, por fim, à claridade do conceito e agora pensado como “o horizonte do ser”. Com isso, porém, o que se prescreve à experiência é uma conformidade a um caminho único que determina, de forma insuperável, o quadrosentido e a natureza de nossa relação com o ser.

Por um longo tempo, desde o início da filosofia moderna, não terá sido pensado ou se revelado outra forma original do ser? Não terá a filosofia da consciênciaatravés de suas perfeições e imperfeições, se constituído na abertura de uma outra dimensão de essência e existênciaNão terá a filosofia moderna indicado ao ser humano que para ele e nele há outra região de experiência, outro modo de realidade, e isso em sentido ontológico? A partir do momento que pensamento é capaz de conferir aparecimento aos problemas que ele suscitou um caráter e alcance de ordem ontológica, as oposições aparentes que pretendiam servir de evidência e traçar de alguma forma no campo da pesquisa, linhas que demarcaram a reflexão posterior, são apagadas, seu significado aparece, em todo caso, como algo que deve ser questionado e, muitas vezes, acaba se revelando como nulo. 

A oposição entre consciência e ser, que parece dominar a história do pensamento filosófico, pode, de fato, ser mantida apenas em um plano pré-filosófico e pré-crítico. Não pôde vir à luz, precisamente, porque pelo menos um dos termos entre os quais tentou estabelecer-se permaneceu mergulhado, em termos de seu conceito, numa indeterminação profunda. A filosofia do ser encontra sua origem na ontologia grega, mas, como Heidegger observou , muitas vezes permanece ingênua em considerar o ente como ele se oferece a nós e tomar seu ser dado como certo, em vez de considerá-lo em si mesmo, e de se perguntar decididamente sobre ele. Com Heidegger, ao contrário, o pensamento eleva à categoria de problema o que possibilita o ser enquanto ente a que sempre temos acesso, eliminando a “ambiguidade” do termo ser, que significa tanto uma coisa quanto sua essência, e que, portanto, também é “ontológico”. “O termo grego ὄν, 'ente'”, diz Heidegger, “também esconde em si a essência de sua própria entidade".

Levar em consideração essa essência é fazer a divisão, na própria entidade, entre o que é ôntico e o que permanece ontológico. Com esta dissociação, o conceito de ser sai da sua indeterminação pré-filosófica, deixa de designar indistintamente, como o faz demasiadas vezes na história da filosofia e ainda em Sartre, o ente e o seu fundamento ontológico, para se referir explicita e exclusivamente ao último. A oposição entre ser e ente surge no mesmo momento em que a problemática conquista seu significado ontológico.

Quando o conceito de ser recebeu sua própria determinação ontológica, o problema de sua relação com o conceito antitético de consciência pôde ser colocado em uma base filosófica. Terá a oposição clássica desde Descartes, entre a consciência e a coisa, se sobreposto, como tantas vezes aconteceu, à da consciência e do ser? Ao contrário, não é evidente que a análise filosófica da "coisa" cai na mesma dialética e obedece às mesmas prescrições do ente? A coisa, que nada mais é do que o ente, requer o mesmo fundamento ontológico: uma essência da coisa, a coisidade como tal. A coisa compreendida em sua unidade com a essência que a funda, ainda é um termo antitético para a consciência, ou a consciência não é precisamente a própria coisidade da coisa e, como tal, sua essência? Na verdade, não é o ser que se opõe, em seu conceito, à consciência, mas ao ente.

A consciência recebe, como ser, o sentido de ser a essência e o fundamento. A oposição entre a consciência e a coisa é a mesma que entre ser e ente. O advento do idealismo moderno, de fato, esconde o aparecimento na história do pensamento de uma forma nova e propriamente filosófica de perguntar: aquela que, ao perguntar sobre a condição de possibilidade da coisa, propõe assim a reflexão, como seu próprio objeto, a respeito da elucidação da esfera ontológica da existência. Essa existência, entendida como condição ontológica de possibilidade da coisa, é assim a existência do ente sobre o qual o pensamento antigo medieval debruçou sem perguntar, porém, sobre essa existência como tal. Ao trazer a essência do que a ontologia grega considerava de um modo pré-filosófico ser ela mesma ao estado de problema, a filosofia da consciência aparece como a realização da antiga filosofia do ser; é um fim e não um começo. Coincide com a ontologia contemporânea, que soube justamente proporcionar a condição ontológica da possibilidade de ser como tema de sua pesquisa e compreender essa condição como meio ontológico de verdade.

A conexão da filosofia da consciência com o problema da verdade entendida em seu significado ontológico universal reside no fato de que o conceito de consciência é o elemento com o qual a filosofia moderna pensa sobre a possibilidade que as coisas têm de se manifestar: a essência da manifestação. Assim sendo, antes de declinar, com efeito, à categoria do ente simplesmente privilegiado, como atesta a oposição que se estabelece entre ela e a totalidade do ente que é “ externa a ela” , a consciência primeiro intervém no esboço ontológico de um pensamento que se questiona sobre o poder, que dá ao ente sua condição de fenômeno para nós. Se o conceito ontológico de ser designa a essência da manifestação, a existência, se esta é a "forma" do ser, se o ser é esta mesma forma, a consciência nada mais é que esta forma, isto é, a própria existência, a manifestação como tal. Que “a consciência é a existência absoluta ou a manifestação e revelação do ser em sua única forma possível” é o que Fichte afirma explicitamente.

Por isso, não poderia se estabelecer uma oposição no nível ontológico entre os conceitos de ser e consciência, antes, a demonstração de modo puro que se refere deveria ser considerada por nós como diferente nos dois casos. Seria necessário que o modo de manifestação pensado sob a denominação de consciência não fosse o mesmo que constitui a existência que é a essência do ser. Na verdade, Fichte pensa o mesmo poder ontológico de manifestação pelos títulos de existência, forma, representação, manifestação, revelação, imagem, consciência e ser em sentido filosófico, isto é, no mesmo que tem o verbo “ser” na expressão “a parede é”. Esse poder ontológico de manifestação consiste, como vimos, no processo pelo qual o ser se divide e se separa de si mesmo para existir, ou seja, para se manifestar. 

Fichte dá explicitamente o nome de consciência à existência fenomênica que ocorre em tal processo. Essa consciência, que surge em um determinado processo ontológico, tem, consequentemente, os caracteres ontológicos que lhe são conferidos pelo processo do qual é derivada, e esses caracteres são os mesmos da imagem ou representação, que também ocorrem dentro de tal processo e que não são, para dizer a verdade, senão a própria consciência: «A existência” - disse Fichte – “deve por seu próprio ser nadificar-se perante outra existência absoluta; o que precisamente lhe confere o caráter de simples imagem, representação ou consciência de ser”.

A consciência não é, então, uma forma de existência diferente daquela que surge na dilaceração interna do ser; é antes esta mesma existência, esta forma particular e única de todas as manifestações possíveis. “A consciência do ser, única forma e modo possível da existência do ser, é, portanto, ela mesma, totalmente imediata, pura e absolutamente, esta existência do ser”. A consciência designa a essência da manifestação interpretada de acordo com os pressupostos ontológicos fundamentais do monismo. Por isso , por se identificar com o processo de autorruptura e separação do ego do ser, a consciência é sempre apresentada, em sua efetuação e em seu devir, como um ato de separar-se do ser, de elevar-se acima dele, de distancie-se dele, para se opor a ele. 

A emergência da consciência surge assim em sua contemporaneidade com o desdobramento de uma distância, com o cumprimento da divisão, da separação, da oposição a si mesmo. Divisão, separação, oposição, entretanto, eram precisamente as condições da fenomenalidade no monismo ontológico. Todas essas condições, que são uma só, remetem, de fato, como tantos nomes diferentes, mas equivalentes, ao mesmo fenômeno de alienação pensado como o acontecimento fundamental que abre a dimensão do ser e da existência. A consciência nada mais é do que a alienação do ser, ou seja, o ser como tal. O tornar-se outro do ser é idêntico ao seu surgimento na condição fenomenal de presença.  Essa dimensão fenomenal da presença é a própria consciência.

Visto que o absoluto ainda não conhece essa divisão interna consigo mesmo que constitui a consciência, é por isso que permanece, em Schelling, privado dela. “Ele nada mais é do que a identidade absoluta na qual não há dualidade e que, precisamente porque a dualidade é a condição de toda consciência, nunca pode atingir a consciência”. O “termo supremo que se divide para aparecer” não atinge, então, a condição de existência fenomenal e consciente até que aceite abandonar-se à obra da alteridade e da divisão. A história será precisamente o movimento pelo qual o absoluto se manifesta de acordo com as condições que lhe são prescritas pela essência da manifestação interpretada segundo os pressupostos do monismo. A história, diz Schelling, é “uma manifestação nunca acabada desse absoluto que se divide na consciência, isto é, que se divide tão somente para que possa aparecer”.

A identificação do conceito de consciência com a concepção monística da essência da manifestação é, novamente, o que leva Schelling a estabelecer, no Sistema do Idealismo Transcendental, uma oposição irredutível entre inteligência e ação, o que ele também chama de “a Produção”; oposição cuja irredutibilidade se deve precisamente ao entendimento da oposição como essência da manifestação e da consciência. Para que tal oposição seja instituída e salvaguardada, e com ela a existência consciente, a inteligência deve se desligar e se separar de sua ação; o intervalo que aprofunda essa oposição constitui o meio fenomenológico onde a ação pode surgir e se estabelecer como algo consciente e objetivo. “A inteligência”, diz Schelling, “deve ser totalmente desligada da produção para que a consciência possa nascer”. E, também: “Enquanto a inteligência não difere de sua ação, nenhuma consciência dela é possível”.

Inteligência e ação não constituem, aos olhos de Schelling, duas realidades diferentes e originalmente separadas; elas não são mais do que uma e a mesma coisa; a inteligência não se opõe à ação, mas à “sua ação”, isto é, a si mesma como ativa; no entanto, precisamente essa separação de si mesma é a condição da fenomenalidade: uma condição primitiva que então faz a inteligência e a ação aparecerem como dois termos aparentemente diferentes, e o faz para que a consciência possa nascer. Inteligência não é, para dizer a verdade, senão a consciência de ação, ou seja, na verdade a própria ação em sua oposição fenomenal diante si. Já o pensamento de Böhme foi inteiramente guiado pela ideia de uma oposição e uma diferenciação interior à vida do absoluto e constitutiva desta vida na medida em que não é precisamente mais do que uma promoção à luz da manifestação. 

O “Schiedlichkeit” (a Separabilidade) é a condição da consciência. O conceito de consciência é pensado por Böhme em sua solidariedade com os conceitos de alteridade, espelhamento e desdobramento, ou seja, em sua unidade com o processo ontológico de divisão interna do ser. Essa divisão se apresenta como a condição da visão com a qual se identifica o conhecimento, ou seja, a consciência e a existência fenomênica. A interpretação do conceito de consciência a partir do desdobramento pelo qual o ser se oferece como espetáculo e assim pode ser percebido e conhecido, não se manifesta apenas, sob a influência de Böhme , no Sistema do Idealismo Transcendental: na verdade, domina toda obra posterior de Schelling e, acima de tudo, sua filosofia posterior. 

Os grandes fenômenos humanos (por exemplo, o nascimento e desenvolvimento da mitologia) ou divinos (por exemplo, a criação) são ali interpretados de fato em termos da necessidade de um advento da consciência, um advento que sempre é pensado, a partir do fenômeno central da alienação, como divisão e separação. “Essa separação”, poderia dizer um comentarista, “essa Scheidung [divisão], não seria a condição de todo conhecimento consciente?”.

No entanto, a interpretação da essência da consciência a partir de uma concepção monística do modo de manifestação da realidade está muito longe de ser apresentada apenas dentro de uma determinada corrente de pensamento filosófico. Não apenas nos pós- kantianos , e especialmente em Hegel, a consciência em seu conceito é identificada com o fenômeno ontológico da alienação do ser e sua oposição a si mesmo: esta concepção de fato domina toda a filosofia da consciência , e ela encontra sua ilustração, bem como sua formulação mais geral, na compreensão da essência da consciência como “representação”.

A representação designa um modo de presença. Representar significa estar presente. A representação é sempre a representação de algo; implica algo representado que tem justamente a missão de tornar-se presente. Portanto, é conveniente distinguir a representação entendida como um ato de estar presente e, por outro lado, a realidade que a presença atinge nesse ato, ou seja, o representado como tal. O que é representado é algo ôntico; já a representação, que significa presença como tal, refere-se antes a um processo ontológico. O processo em que se baseia a representação, na medida em que designa a essência da presença, é o processo ontológico de alienação. A representação é uma apresentação que implica uma duplicação. Essa duplicação encontra seu fundamento na duplicação oposta, pela qual o ser se separa de si mesmo para se perceber e, precisamente, para se “representar”.

A presença que emerge nesse desdobramento oposto é a “existência” de Fichte, que, por isso, é entendida como representação. “A existência”, disse Fichte, “deve por seu próprio ser contra outra existência absoluta; o que fornece precisamente o caráter de uma simples imagem, representação ou consciência de ser”. “A existência do ser”, diz também Fichte, “é a consciência ou representação do ser”. A assimilação da consciência à representação não é acidental: ela se baseia na comunidade de essência que se manifesta por trás dos conceitos de “consciência” e “representação” a partir do momento em que queremos apreendê-los em seu significado ontológico.

A vontade de captar a essência da consciência leva ao pensamento antes do processo ontológico que dá a essa essência sua própria estrutura, e precisamente quando sua essência é entendida a partir disso é que a consciência é pensada como representação. Portanto, a representação não designa de forma alguma um modo particular de vida da consciência, como se houvesse para ela, como uma oportunidade que lhe é oferecida, uma vida representativa com outras formas e outros modos possíveis - por exemplo de existência, junto com uma vida sensível, conceitual ou afetiva. A essência da consciência é o que deve ser entendido em sua própria estrutura eidética e, como tal, universal à luz do conceito de “representação”. É por isso que Heidegger pôde dizer que “a representação (Vor-stellen) reina sobre todos os modos de consciência”.

A representação assim entendida é o que “se apresenta no modo de representação”; refere-se explicitamente à essência como tal da presença, o que nos convida a entendê-la como uma presença que é aquela do representado, ou seja, a presença de algo que vem antes, em um meio de exterioridade o qual não é dela mesma enquanto essência comum de consciência e representação, mas da abertura. Uma das indicações mais constantes pelas quais a filosofia da consciência às vezes tenta especificar o conceito de representação em que se apoia, é a designação desta como certeza. O que caracteriza a representação é a certeza de si mesma. A representação é verdadeira. Ser representado também é verdade, mas sua certeza está baseada na da representação. Ou, para ser mais exato, a certeza do ser representado reside justamente na sua representação. O que é verdade é a questão da consciência natural. Mas o ser verdadeiro do verdadeiro é precisamente a certeza como tal.

 Aqui surge uma questão: quando a representação é entendida como autocerteza, ela ainda designa a própria essência da manifestação? Ou a intervenção do conceito de certeza contribui de fato com uma modificação real para a compreensão dessa essência? A partir de Descartes, ser verdadeiro (ens verum) é interpretado como ser certo (ens certum). Não é, porém, uma nova interpretação da verdade do ser, mas o momento em que, pela primeira vez, essa verdade é trazida à condição de problema. Levar em conta esse problema nos leva a pensar que a verdade do ente consiste no fato, para ele, de ser representado. O ente é representado quando é arrancado da noite à qual, por si só, é dado em princípio. A representação do ente é, ao contrário, sua emergência à luz, que efetua e traduz sua ascensão ao posto de "fenômeno"; trata-se da verdade entendida em um sentido ontológico.

Como a verdade ontológica, idêntica à representação, é compreendida quando também é identificada com a certeza? Se a certeza designa o ser-certo do que é verdadeiro, o fato de que o que nos aparece apareça, a emergência à luz em virtude da qual o ente se oferece a nós como é, essa emergência pela qual o ente se torna um ente verdadeiro ou certo ( ens verum , ens certum ) é obra da representação. A certeza é a certeza da representação. A essência da manifestação que constitui o ser-verdadeiro do verdadeiro, ou seja, a certeza como tal, é aquela cuja estrutura se constitui pelo processo ontológico da representação na medida em que não é outro senão a da alienação. 

A certeza é uma denominação para designar o que se produz graças a tal processo, ou seja, a existência fenomênica e a manifestação como tal. O que se pretende no conceito de certeza é o significado fenomenológico do poder ontológico de representação. O poder ontológico de representação certamente se esgota neste significado fenomenológico. O ato de apresentar é identificado com a emergência na luz. Por isso, precisamente, a certeza não difere da representação enquanto tal e lhe pertence como própria. Sua essência é a da representação. Visto que a essência da certeza é a da representação, a certeza é sempre a certeza de algo. Apenas designa, como certeza, a verdade do ser. Com a intervenção do conceito de certeza, o que é pensado não é outra forma de verdade, outra verdade diferente daquela do ser: o que é pensado é esta própria verdade, em si e para si. A certeza da representação é o meio ontológico no qual o ente se manifesta, é a essência da manifestação e a verdade do ente.

Com o conceito de certeza, a ideia de uma subjetividade se delineia no horizonte. A certeza é subjetiva. A representação opõe-se ao representado como o subjetivo ao objetivo. Na medida em que reside na certeza da representação, a verdade também é dada como subjetiva. O sentido último da verdade entendida em um sentido ontológico depende da interpretação que deve ser dada ao conceito de "subjetividade". A subjetividade é a essência do sujeito. O sujeito aparece como condição da fenomenalidade dos fenômenos. O objeto não pode simplesmente se tornar o que é para nós, isto é, um fenômeno, não mais do que quando é referido ao sujeito. A clássica oposição entre sujeito e objeto surge quando o ser do objeto se torna um problema, isto é, quando se trata de pensar o objeto em sua qualidade de ob-jeto. O que torna o objeto o que é, isto é, algo que se coloca diante de nós, é o sujeito na medida em que é justamente a potência que opera essa posição "diante de". 

O objeto se manifesta na medida em que é consciente. Mas o ser consciente do objeto reside no sujeito. A consciência, entretanto, não é o sujeito. Se consideramos mais de perto, constataremos que a oposição estabelecida pela filosofia clássica entre o sujeito e o objeto não é de forma alguma uma oposição entre algo que é consciente (o sujeito) e algo que não é consciente (o objeto), entre a consciência e inconsciência. O que caracteriza o objeto é justamente o fato de ele ser consciente. O ser-em-si ao qual muitas vezes assimilamos o objeto não é de forma alguma um ob-jeto. Ser um ob-jeto é estar localizado na dimensão fenomenal da existência e pertencer, como tal, à consciência. Esse pertencimento à consciência se baseia, é claro, na relação com o sujeito. 

A consciência reside precisamente na relação do sujeito e objeto, ela é essa relação enquanto tal. Se o desígnio ontológico do idealismo moderno se expressa na oposição incansavelmente formulada entre sujeito e objeto, então a consciência reside em seus olhos exatamente nessa oposição. O sujeito não é nada diferente do objeto e que poderíamos opor a ele como opomos uma realidade a outra, contra o pano de fundo de uma diferença em suas propriedades e seus caracteres, de uma diferença, por exemplo, entre o ser consciente e o ser inconsciente. Em si mesmo, o sujeito não se opõe ao objeto. “Não há separação entre eles até que não haja consciência”.

A consciência não é, então, o sujeito, mas a oposição de sujeito e objeto. Quando Charles Renouvier fala da “oposição do sujeito e do objeto essencial a toda consciência”, o que seu pensamento pressupõe está mais do que implícito. Esse pressuposto também aparece claramente nas teses de Schelling, segundo as quais não é o sujeito, mas a dualidade, a divisão como tal, a condição de manifestação, da consciência. Visto que a consciência é a divisão, é a produção dos dois termos, e não de um deles, o sujeito, com o qual se identificaria para se opor ao outro em uma oposição que permaneceria externa a ela e seria acrescentada sinteticamente ou acrescentada por um observador externo. A oposição é interna à consciência. É tão interna que a consciência nada mais é do que essa oposição.

Como a consciência é a oposição, não é um dos termos, mas os dois termos ao mesmo tempo, na medida em que é a lei que os engendra: “O eu da consciência”, diz Schelling numa proposição fundamental, “não é sujeito puro: é ao mesmo tempo sujeito e objeto”. A consciência reside na oposição do sujeito e do objeto, ou seja, em sua relação. Ela é a relação enquanto tal. A relação é o termo concreto; os abstratos, ao contrário, são os termos entre os quais a relação se estabelece: “o puro subjetivo, como o puro objetivo”, diz Hegel, “é uma abstração” . “O sujeito e o objeto aparecem como dois momentos abstratos de uma única estrutura, que é a presença”, diz Merleau-Ponty.

O objeto não pode ser abstraído dessa estrutura da presença, pois somente dentro dela está um ob-jeto. O sujeito, por sua vez, não tem subsistência enquanto estiver determinado em frente ao objeto. Visto que Sartre confunde a consciência com o sujeito abstrato (assim como confunde o ser com o objeto), é precisamente por levado a pensá-la como algo abstrato; afirmar que “O Para-si não é de forma alguma uma substância autônoma”; que o dualismo vem da abstração da consciência e do ser; que o que é concreto é a relação entre eles. A afirmação do caráter abstrato do sujeito e do objeto (indevidamente chamados Para-si , em-si, consciência, ser, etc.) e, inversamente, do caráter concreto de sua relação, permite a Sartre desafiar o dualismo resultante da abstração e rejeitar a objeção da incomunicabilidade das duas regiões por ele distinguidas: o em-si e o Para-si: “A relação das regiões do ser é um brotamento primitivo que faz parte da própria estrutura desses seres”.

A relação é na verdade a região ontológica Fundamental, é justamente o brotar da luz que define o campo transcendental do ser e da existência. A consciência é ela mesma essa relação como tal. Do ponto de vista ontológico, não há duas regiões do ser, mas uma única região, e a consciência, que não é o sujeito nem o objeto, mas sua relação, é precisamente essa região ontológica fundamental, não uma das duas regiões distinguidas pela abstração. No plano ontológico, a filosofia da consciência não funda nem autoriza nenhum dualismo. Ao rejeitar as formulações impróprias nas quais quase sempre esteve embutida, para finalmente se compreender à luz do sentido da problemática fundamental que tentou estabelecer desde o início, a filosofia da consciência surge como expressão do monismo ontológico. Entendida como essência, sem constituir de forma alguma um dos termos de uma dualidade, a consciência é o comércio que se estabelece entre esses termos; é o ser desse “entre”.

Se considerarmos a totalidade concreta da realidade, a totalidade constituída pelo real em sua realidade, isto é, no ato pelo qual ele se manifesta, vemos que essa totalidade não pode de forma alguma ser traduzida com a equação “consciência + relação com o objeto + objeto”. A consciência, de fato, nada mais é do que a relação com o objeto. Mas pode a ideia de sujeito ser mantida como um termo oposto ao objeto, de modo que tenhamos a equação “sujeito + relação com o objeto (ou consciência) + objeto”? Os três termos desta equação não estariam, para começar, de forma alguma situados no mesmo plano? Apenas o segundo desses termos, a relação como tal com o objeto, é de ordem ontológica.

Mas se o objeto é uma realidade ôntica cujo ser é constituído pela relação como tal; se permanece, portanto, uma determinação real que encontra seu fundamento ontológico na consciência, tal situação não pode ser conveniente para o sujeito. O ser do sujeito é, com efeito, a relação como tal. A dissociação entre os conceitos de consciência e de sujeito só é possível na medida em que, em relação a este último, se mantém em uma determinação pré-crítica que faz com que a realidade que ela designa decline ao nível de uma realidade de ordem ôntica. De fato, a realidade ontológica como tal é o que aponta a filosofia da consciência quando faz intervir o conceito de sujeito em sua problemática. 

O sujeito designa o evento ontológico que faz com que o ente acesse a condição de objeto, ou seja, a condição de fenômeno para nós. O sujeito não é nada fora de tal evento compreendido em seu significado ontológico absolutamente puro. Fazer com que o ente acesse o âmbito do fenômeno, fazê-lo surgir à luz da existência fenomênica e consciente, é obra que se pensa como própria do sujeito, e o ser deste nada é fora de tal obra, pois, ao contrário, ele se esgota nela. O ser do sujeito é, portanto, identicamente a própria emergência da existência fenomenal: consiste na abertura da dimensão ontológica da presença. Visto que essa dimensão ontológica da presença é tradicional e indevidamente pensada com o nome de "conhecimento", é por isso que o sujeito é entendido precisamente como a "condição do conhecimento". O sujeito é o poder do conhecimento, o cognoscente como tal. Mas “o cognoscente nada mais é do que aquilo que faz com que o conhecido esteja lá enquanto presença”. “O conhecimento e o próprio cognoscente nada mais são do que a presença do ser”. O conhecimento, em suma, é “a pura solidão do conhecido”.

Desse modo, o sujeito é o que torna o objeto presente: é sua presença como tal. O que torna o objeto presente, o que o torna ob-jeto, o que o torna o que é, o objeto enquanto objeto, é o seu ser. O sujeito é o ser do objeto. É a base ontológica a partir da qual o objeto é o que é. O dualismo do sujeito e do objeto não é um dualismo ontológico: é o dualismo da essência e da determinação ôntica que encontra seu fundamento ontológico nessa essência. O dualismo tradicional surge assim como formulação primeira, como pensamento pré-crítico de uma dissociação propriamente filosófica entre o ente e o seu ser, entre o que é de ordem ôntica e o que pertence, ao contrário, à esfera ontológica da essência. Essa região ontológica da essência é o que se pensa sob a denominação de sujeito, enquanto o objeto designa o ente no fundo da essência nela, em sua unidade inseparável com ela.

O que está oculto na distinção entre sujeito e objeto é uma e a mesma essência, e o dualismo tradicional é um monismo ontológico. Mas a unidade essencial cujo título é monismo ontológico não é, embora o funda, a unidade do sujeito e da determinação ôntica; o que essa unidade significa é a singularidade do modo de manifestação segundo o qual a entidade se realiza no sujeito, que nada mais é do que esse modo de manifestação como tal.

Os pressupostos últimos aos quais se dirige a denominação de monismo ontológico não se esgotam na afirmação da unicidade do modo de manifestação compreendido em sua pureza fenomenológica essencial: de fato conferem a esse modo uma estrutura eidética perfeitamente definida. Não é apenas a afirmação da singularidade da essência fenomenológica, mas a identidade da estrutura dessa essência que estabelece a identidade essencial, para além das diferenças aparentes, da filosofia da consciência e da filosofia do ser. Ao pensar o sujeito como fundamento da fenomenalidade dos fenômenos, a filosofia da consciência acaba interpretando o ser desse sujeito como a Relação. Na medida em que é a relação, o sujeito é o estabelecimento e a manutenção de uma distância, a potência ontológica que desdobra o horizonte, a espacialidade original e transcendental que abre o lugar onde algo pode se manifestar; e algo se distingue disso como o meio puro e privado de determinação no qual a determinação é capaz de aparecer. “A consciência”, diz Hegel, “é ela própria o espaço privado de determinabilidade”.

Na medida em que é a Relação, o sujeito é o Ser-em. O Ser-em é um Ser-no-mundo. Mas o mundo em si nada mais é do que ser-em. É o espaço primitivo e não espacial que significa a abertura de um meio. A espacialidade do Ser-em é uma denominação para o processo ontológico de alienação; é a autosseparação da essência que faz surgir o intervalo e, como tal, a própria Relação na sua origem. A luz que surge nesse intervalo é tanto a do mundo quanto a da consciência.

Sem dúvida, Husserl diz que a consciência não é nada do mundo, mas por mundo ele entende apenas a totalidade do ser, e que a consciência não é nada do mundo assim compreendido significa apenas que, como essência ontológica, ela mesma não é, em sua transcendência em relação a tudo o que existe, mais do que o próprio mundo em sua mundanidade pura. O mundo em sua mundanidade pura não é, de fato, um caráter de ser. “O fenômeno do mundo pertence, como momento estrutural essencial do ser-no-mundo, à constituição fundamental do Dasein”. Portanto, o mundo pertence à estrutura da essência ontológica da presença, mas, neste pertencer à essência, se confunde com ela. 

O ser-em e o mundo designam de forma idêntica o reino de uma presença que se realiza na forma de uma pura espacialidade. Qualquer referência do Ser-em a uma subjetividade que não pertence a essa espacialidade transcendental original é excluída por princípio. Pode-se dizer que o mundo é "subjetivo", mas isso significa apenas que é “mais objetivo do que qualquer objeto”. A subjetividade do mundo apenas marca sua transcendência com respeito a todos os entes: é transcendência como tal. A transcendência é a essência da manifestação, o aparecimento do que aparece. Na medida em que é o Ser-em e a Relação, o sujeito é este aparecendo como tal: é a essência da manifestação no sentido monístico. “A subjetividade do sujeito”, diz Heidegger, “é o próprio Erscheinen [aparecer]”.

O aparecimento do que aparece, o ser do ente é o que constitui a subjetividade do sujeito humano. A luz que passa por nós é a do mundo. A verdade está em nós, no interior do homem. A consciência tem em si a medida da verdade. Mas a verdade que constitui a nossa própria interioridade não é senão a luz absoluta da exterioridade. A subjetividade humana é a transcendência do mundo. A identificação da essência da consciência com a pura exterioridade da transcendência surge no momento em que a problemática da consciência é compreendida em seu puro significado ontológico.

Quando a essência da consciência é apreendida como verdade no sentido ontológico, isto é, como a essência pura da manifestação, essa essência da consciência é necessariamente identificada com a essência da manifestação. Chegando ao seu último estágio e compreendendo-se plenamente em sua verdade, a filosofia da consciência só pode ser uma repetição dos pressupostos fundamentais do monismo. Na verdade, o progresso na determinação da essência da consciência e na compreensão da estrutura interna da manifestação pura são paralelos. A determinação da essência da consciência constitui precisamente um momento essencial dessa compreensão. Tal determinação começa com a concepção de um sujeito do conhecimento e prossegue com a interpretação do ser do sujeito como uma relação com o objeto. A consciência é então entendida à luz do conceito central de intencionalidade. Toda consciência é consciência de alguma coisa. Como intencional, a consciência é essa ultrapassagem que dá acesso às coisas.

O mais recente progresso na determinação ontológica do conceito de consciência reside na afirmação de que a consciência nada mais é do que essa ultrapassagem. Então, o ser da consciência é verdadeiramente identificado com o processo ontológico da realidade; deixa de ser o ser determinado de um sujeito oposto, como realidade dada, à realidade dada do objeto, para se tornar o princípio de toda realidade como tal. 

A consciência não é mais o predicado, ou mesmo o atributo essencial, do ser substancial do sujeito. A substancialidade do sujeito consiste na própria superação pela qual temos acesso às coisas, e o sujeito é o próprio acesso, o Ser-em como tal. “Toda a consciência é posicional e se esgota nessa mesma posição”. A essência do homem na direção do ser é essa direção. Não basta dizer, como Sartre também faz, que Heidegger rejeita “o isolamento megárico e antidialético das essências”; o que nela se manifesta é uma nova concepção de essência, segundo a qual a essência é a própria dialética, troca e passagem. E essa essência define a própria humanidade do homem, é a essência da realidade humana. É, portanto, no interior do homem, nas profundezas de seu ser, onde reside a força ontológica da dialética.

Todos os poderes do homem são baseados exclusivamente neste poder que está nele. A visão, por exemplo, “só é preparada internamente pela minha abertura para um campo de transcendência”. A abertura enquanto tal ao campo transcendental, abertura que é este próprio campo: tal é, em sua essência, o ser íntimo do homem. O ser mais íntimo do homem é, então, a espacialidade original pensada como a condição de toda presença. A compreensão do ser íntimo do homem a partir da espacialidade transcendental da presença está na origem do conceito monístico de existência. “A existência é espacial, ou seja, por uma necessidade interior, se abre para um exterior”.

A exterioridade mais radical, mais objetiva do que qualquer objeto, define a interioridade mais íntima. O que é mais objetivo do que qualquer objeto é sua condição, sua existência. O significado é a condição do objeto como tal. O objeto é o ser transcendente. Mas a transcendência é a interioridade do sujeito humano, é o ser mais íntimo do homem. A transcendência é existência universal. A existência do homem é a existência das coisas. A subjetividade do sujeito nada mais é do que a objetividade do objeto. A identidade da subjetividade do sujeito e a objetividade do objeto podem permanecer ocultas por muito tempo. O fato de não ter se manifestado antes na problemática filosófica se deve, em primeiro lugar, ao fato de a objetividade do objeto ainda não ter sido elevada ao estado do problema. 

Enquanto o pensamento filosófico nada mais era do que a promoção conceitual do que a consciência natural aponta, o objeto só poderia aparecer como uma dada realidade oposta ao homem. Ao contrário, uma vez que o problema se situa em um plano ontológico, desde que se leve em consideração o ser do objeto, não só se formula a relação do ente com um sujeito do conhecimento, mas o ser desse sujeito já aparece, em fato, identificado com a condição ontológica da possibilidade do objeto, ou seja, com a objetividade como tal. 

É por isso que é em Kant que, talvez pela primeira vez, e de forma tão explícita quanto decisiva, o tema do pensamento se constitui pelo problema da possibilidade do objeto, e da determinação dessa possibilidade, entendida, em seu significado ontológico absolutamente puro, como condição universal de possibilidade de uma experiência em geral, seu resultado é realizado e alcançado na e através da análise da subjetividade do sujeito do conhecimento, entendida como esta forma a priori de toda experiência possível.

A forma a priori de toda experiência possível aparece ao mesmo tempo que constitui contemporaneamente e conjuntamente o ser do sujeito e do objeto. O ser do sujeito se revela idêntico ao do objeto, é precisamente a condição de qualquer objeto, o ser universal de todo objeto possível em geral. Precisamente porque, segundo Kant, as condições de possibilidade dos objetos da experiência nada mais são do que as condições subjetivas do pensamento, é por isso que um “acordo” é possível, ou melhor, que se encontra realizado desde o início, entre as leis do pensamento e das coisas. Tal “acordo”, para dizer a verdade, não consiste de forma alguma numa adequação entre duas realidades distintas, embora ligadas por uma afinidade misteriosa: funda-se de facto numa identidade de essência, na identidade essencial do ser do sujeito e do objeto

O sujeito não é um poder de algum modo externo às coisas - o de dirigir julgamentos sobre elas ou de estabelecer relações entre elas. Não há coisas fora do sujeito ou abstraídas dele. O ser das coisas é o próprio sujeito. A crítica do kantismo como intelectualismo, mais ou menos tingido de psicologismo, permanece superficial e ignora o profundo significado ontológico da Estética e Analítica transcendentais. De acordo com este sentido, é claro que a estrutura da potência transcendental do conhecimento constitui e define precisamente, como forma pura e a priori, a própria estrutura do objeto como uma estrutura universal e absolutamente necessária, isto é, como um estrutura e como uma forma de objetos, que o objeto deve submeter para ser um objeto. 

A identidade do ser do sujeito transcendental e a estrutura a priori do próprio objeto manifesta-se ainda mais claramente se observa-se que convém, de fato, inverter a fórmula proposta anteriormente e segundo a qual a determinação da possibilidade ontológica do objeto em geral é realizada na análise da subjetividade do sujeito do conhecimento. O que é verdadeiro é antes o oposto: é na determinação progressiva da estrutura a priori do objeto que a do ser do sujeito transcendental e de sua subjetividade se realiza gradualmente, e isso porque a subjetividade desse sujeito não é precisamente senão a estrutura a priori do objeto: visto que a identidade do ser do sujeito e do objeto deve finalmente receber seu verdadeiro sentido, segundo o qual se manifesta que essa identidade se estabelece em detrimento da concepção de um ser próprio e específico da subjetividade do sujeito, que de fato é pura e simplesmente reduzida à objetividade e confundida com ela - com o que constitui o próprio ser do objeto -.

A identidade da subjetividade do sujeito e da objetividade do objeto, no pano de fundo da assimilação pura e simples do primeiro ao segundo, persiste na filosofia transcendental, pelo menos enquanto esta última permanecer no nível da primeira finalidade ontológica. A necessidade, que aparece em Jules Lachelier como a estrutura do espírito, constitui e define conjuntamente a própria existência das coisas, e isso em um sentido ontológico. Existência no sentido ontológico, “a existência de uma coisa distinta dessa coisa”, é o meio ontológico que permite que essa coisa seja: é a sua verdade. “Verdade ou existência”, diz Julian Lachelier. 

A verdade de uma coisa é diferente dessa coisa porque se opõe aos dados empíricos e da sensibilidade. Uma coisa não existe em virtude destes, já que geralmente afirmamos a existência de uma coisa na ausência de tais dados, e já que, por outro lado, sua própria presença os transcende infinitamente na medida em que não contêm os caracteres em si aquele que realiza tal operação. Esta sua presença se confunde, ao contrário, com verdade ou existência, que Lachelier interpreta à luz da ideia de necessidade. É na necessidade de uma coisa que sua existência se funda para nós. A necessidade não é um princípio lógico: é a dimensão ontológica da existência. Como síntese da verdade que abre a dimensão ontológica, a necessidade é ideal. Como tal, não se opõe, porém, à realidade do objeto, mas constitui essa própria realidade. O objeto é real na medida em que é necessário. A necessidade é o ser do ente. A ideia de necessidade é a verdade ontológica; é juntamente o ser das coisas e o “sujeito do conhecimento”. Essa ideia, e somente ela, pode ser objeto de conhecimento, pois não é uma coisa, mas a verdade a priori de todas as coisas.

A identificação do ser mais íntimo da realidade humana com a própria essência das coisas não pode deixar de contradizer as preocupações morais de um pensamento que acreditava ver no conceito de “sujeito” a forma de afirmar, ao contrário, a supremacia do ser humano, o homem sobre a natureza e, em primeiro lugar, removê-lo da lei do objeto. No momento em que o sujeito deixa de ser ingenuamente interpretado como um ente superior às demais para ser entendido em sua verdade ontológica como a própria verdade desta natureza e como sua lei mais íntima, surge um significativo esforço para dissociar o sujeito da essência das coisas, de alguma forma colocando um segundo sujeito atrás do primeiro, que então é abandonado, como sua própria estrutura, à necessidade inflexível que constitui o ser do ente. 

Vemos assim como Lagneau, ao final de sua Lição sobre o Juízo, faz com que o ato superior do espírito consista na distância que ele é capaz de tirar de seu próprio ser, para escapar de uma natureza que é identicamente sua e das coisas. Mas essa distância, que encontra sua formulação psicológica numa espécie de dúvida que a mente preserva em relação a todos os seus julgamentos, não separa bem o espírito de sua própria natureza quanto o revela a si mesmo. Não será essa natureza algo diferente do próprio movimento pelo qual o espírito se separa de si mesmo para se manifestar? A necessidade, entretanto, não é tanto essa natureza do sujeito que ele deixa diante dele no ato pelo qual se retira de si mesmo para escapar à lei da existência universal: ela pertence de fato à estrutura interna deste ato como o princípio transcendental que assegura a sua unidade. 

Na medida em que é a condição que permite que o múltiplo e o diverso da intuição “se unam em uma consciência”, a necessidade é a potência que garante de dentro a unidade fenomenológica do ser como unidade de representação. Longe de poder deixar a necessidade fora de si mesma como uma natureza alheia à sua própria essência, a transcendência a carrega, ao contrário, nela como a condição interna da unidade de seu êxtase, isto é, como uma estrutura eidética própria de sua liberdade ontológica. Como tal, como este êxtase livre cuja necessidade garante sua unidade interna, a transcendência é simultânea e conjuntamente a essência do sujeito e das coisas: é a existência universal.

O significado ontológico da filosofia transcendental pode se perder no neokantismo e na filosofia clássica, que muitas vezes é orientada para um psicologismo moral em que o sujeito é considerado um ser livre. Que esse ser seja então entendido como ente privilegiado não impede que esse privilégio tenha de ser fundado. Ele encontra, de fato, e mesmo quando o pensamento não se preocupa em se voltar para ele, em sua origem na essência. A concepção de um sujeito livre, cuja liberdade se manifesta na dúvida ou em algum outro comportamento característico, finalmente encontra seu fundamento na pura essência da transcendência.

 A concepção de sujeito certamente evoluiu, pelo menos implicitamente, uma vez que o problema da subjetividade do sujeito raramente é sujeito da problemática. No entanto, o sentido dessa evolução é fazer aparecer cada vez mais claramente uma identidade fundamental entre a compreensão da subjetividade do sujeito e a da objetividade do objeto. A substituição final do sujeito clássico por um “sujeito temporal” nada mais faz do que afirmar a interpretação ontológica implícita ou explícita do ser desse sujeito como transcendência. A temporalidade é a essência do significado. Ela é conjuntamente a subjetividade do sujeito e o “horizonte do ser”.

A concepção de um ser-comum da subjetividade do sujeito e da objetividade do objeto revela plenamente a vaidade das discussões clássicas entre os defensores da objetividade e os adeptos de uma filosofia subjetiva. O caráter ingênuo e pré-filosófico de certas críticas "decisivas", como, por exemplo, aquela que os promotores do behaviorismo dirigiram à filosofia da consciência torna-se especialmente notável. Assim, de acordo com Watson, consciência é um conceito que não é definido nem útil; algo evasivo que ninguém viu, tocou ou colocou em um tubo de ensaio e que, consequentemente, deve ser considerado em pé de igualdade com a antiga entidade metafísica e religiosa da alma, para a qual é apenas um substituto moderno: a hipótese incontrolável.

Especificando sua crítica, Watson acrescentou: “Se você é uma das pessoas que afirma que existe uma coisa chamada consciência, que a consciência está em você; bem, experimente. Você afirma que tem sensações, percepções e imagens; bem, mostre tais coisas assim como as outras ciências modernas mostram seus objetos”. Quanto ao primeiro ponto, segundo o qual consciência é um conceito indefinido, não podemos deixar de concordar com os behavioristas. É neles, porém, que essa ausência de qualquer definição se manifesta, como se manifesta a ausência de qualquer problemática filosófica séria a respeito do conceito antitético em que pretendem, pelo contrário, basear-se, isto é, a de objeto.

“Prove essa existência para nós, mostrando-nos”, diz Watson. A consciência é precisamente esse poder de mostrar, ao qual as “outras ciências” e os próprios behavioristas procuram constantemente apelar. Querem uma filosofia ou ciência fundada exclusivamente no objeto e, ao mesmo tempo, ignoram o que faz do objeto um objeto. Contemporâneo dessa rejeição da condição do objeto é o apelo exclusivo e bombástico a essa condição: “Faça ver”, dizem eles. Assim, no próprio momento em que o negam, utilizam constantemente o princípio de que afirmam, aliás, pretendendo ser os únicos que empregam legitimamente o termo.

Por outro lado, quando Sartre reprova Heidegger por abordar diretamente a analítica existencial sem passar pelo cogito; quando, após definir o Dasein como o projeto ekstático de suas próprias possibilidades, isto é, como uma compreensão de si mesmo, pergunta: “Mas o que seria uma compreensão que, em si mesma, não fosse consciência (de) ser compreensão?”; quanto a ele a consciência é a posição do objeto, pois está exaurida nesta mesma posição e nada mais é do que o ekstase da transcendência, isto é, exatamente o que Heidegger entende pela compreensão ontológica (Verstehen) do ser, e assim a crítica de Sartre não tem conteúdo.

“Subjetividade”, declara Heidegger ao comentar a filosofia clássica, “é presença no modo de representação”. A representação encontra seu fundamento no fenômeno ontológico da alienação que abre o horizonte transcendental do ser, ou seja, em última instância, na transcendência do mundo. O mundo é minha representação. A inversão da doutrina, que aparece nas obras posteriores de Heidegger, nas quais o princípio da fenomenalidade é buscado na exterioridade radical do ser, encontra suas premissas em Ser e Tempo e no pensamento filosófico tradicional, no qual de fato já está incluído. O problema de saber se o acesso ao transcendental deve ser feito à luz de uma filosofia do ser ou de uma filosofia da consciência é de pouca importância se a essência da manifestação que finalmente se visa e que constitui esse transcendental é a mesma em ambos os casos. A determinação do transcendental permanece condicionada, e de maneira essencial, enquanto for apenas o princípio do objeto. Não há diferença entre a filosofia da consciência e a filosofia do ser.

 

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HENRY, Michel. La esencia de la manifestación. Traducción anotada de Miguel Üarcía-Baró y Mercedes Uarte. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2015, §11.


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