O CONCEITO DE DISTÂNCIA FENOMENOLÓGICA (TEXTO DE MICHEL HENRY)
Em um texto de objeções
às Meditações de Descartes, Pierre Gassendi escreveu:
“Considerando a razão pela qual e como pode ser que o olho não se veja e que o entendimento não seja concebido, chegou-se à conclusão de que nada age sobre si mesmo; pois, na verdade, a mão, ou pelo menos a ponta da mão, não toca em si mesma, nem o chute chuta o próprio pé que chuta. Ora, visto que, por outro lado, é necessário ter conhecimento de uma coisa que essa coisa atua na faculdade que ela conhece, isto é, que lhe envia sua espécie ou que a informa e a preenche com sua imagem, é evidente que a própria faculdade, não estando fora de si, não pode transmitir para si sua espécie, nem, consequentemente, a forma, a noção de si mesma. E por que não se considera que o olho, que não vê a si mesmo, no entanto, vê-se a si mesmo em um espelho? Sem dúvida, porque entre o olho e o espelho existe um espaço, e o olho age da mesma forma contra o espelho, enviando sua imagem para ele, que o espelho então age contra o olho, enviando contra ele sua própria espécie. Então, dê-me um espelho contra o qual você age da mesma forma, e eu lhe asseguro que, ao refletir sua própria espécie contra você, você será capaz de ver e se conhecer, não realmente com conhecimento direto, mas pelo menos com um conhecimento do reflexo; caso contrário, não espero que você tenha qualquer noção ou ideia de si mesmo”.
O empirismo de
Gassendi aparece neste texto sobredeterminado por concepções
herdadas da filosofia escolástica e, por seu intermédio, do
pensamento antigo. No entanto, estas concepções não constituem o
pano de fundo do argumento dirigido aqui contra Descartes, e o empirismo por
sua vez é apenas uma expressão possível do pressuposto ontológicos fundamental
que, embora não seja nem tenha sido dito, nem sequer tenha sido claramente
percebido, é, contudo, o centro deste argumento. Porém, a esse pressuposto
ontológico, a teoria das espécies, a ideia de ação à distância sobre as
coisas e sobre si mesmo, a do "espelho", enfim, não são estranhas. Ao
contrário, para um pensamento que ainda não conseguiu elevar a um plano
ontológico uma problemática que ele instituiu e que vive de "teorias",
elas se constituem como maneiras diferentes de expressar os pressupostos
ontológicos últimos dessas teorias, que jamais se mostram completamente
separadas desse pressuposto.
O fato de um único
e mesmo pressuposto ser expresso por meio dessas várias teorias atesta a persistência
ao longo da história de um horizonte ontológico comum sob um material filosófico
variável; e o fato de tal horizonte ter sido capaz de permanecer
intacto até hoje apesar de tantas revoluções de pensamento, e
em particular apesar da revolução cartesiana - porque esses choques
sempre ocorreram dentro e contra o pano de fundo desse horizonte, muito
longe de colocá-lo em questão, é o que se manifesta com evidência se
compararmos com o texto de Gassendi este outro em que um autor
contemporâneo (Lucien Malverne), comentando sobre ontologia moderna,
exprime-se nestes termos:
“Para ver algo é necessário o que
chamamos de campo. Só vejo claramente este tinteiro, este livro,
porque uma certa distância me separa deles. Se os aproximo dos meus
olhos, percebo-os cada vez menos à medida que a distância diminui. No
final não vejo mais nada. Quanto à minha córnea, estou para sempre
proibido de vê-la. Posso perceber sua imagem em vidro e sua estrutura
em um tratado de anatomia. Mas o que vejo não é mais ela. Certamente, ainda
pode ser visto, mas só por outra pessoa que não eu, e porque esse alguém
tem um campo. Em suma, o conhecimento imediato é, na
realidade, sempre mediato: ele opera a uma distância mínima. Agora, é
um fato que o ser é conhecido, seja pelo homem ou seja por qual consciência
for. Portanto, é necessário que o ser se distancie de si mesmo”.
O pressuposto, subjacente ao texto de Gassendi
e que se revela mais claramente na citação que acabo de aduzir, é apenas vagamente
delineado, é claro. O significado ontológico desse pressuposto é
questionado no exato momento em que parece afirmar-se, pois a única
precisão que contribui para a natureza da distância estabelecida
como condição do saber do ser tende a confundir essa distância com uma distância
real, assimilável a uma característica ôntica da existente. Com
efeito, a córnea do olho é o que se entende como o ponto zero dessa
distância, da qual, por outro lado, se admite que possa ser mais ou menos
grande.
Além disso, a
"distância" intervém como condição universal do conhecimento:
ela se impõe a ele, em seu cumprimento, com a necessidade de uma ordem
eidética. "O conhecimento imediato é, na verdade, sempre
mediato”. Aquilo de que a distância é condição ainda não é pensado,
é verdade, a não ser como conhecimento. No entanto, no pensamento
do autor não há restrição ao significado universal e eidético da condição
assim definida: ela não se limita de forma alguma ao fenômeno do
conhecimento apenas, que pretende definir, trata-se, ao contrário, da
própria possibilidade de um "fenômeno" em geral. Que isso,
entendido em sua estrutura ontológica universal, seja erroneamente
identificado com o conhecimento entendido em um sentido clássico, é precisamente
uma herança do pensamento clássico. O que se pretende, em última
instância, apesar das imperfeições e imprecisões da análise, é, então, a
possibilidade ontológica e universal de um fenômeno em geral: a essência
do fenômeno.
Na medida em que
é pensada como condição do fenômeno enquanto tal, ou seja, na medida
em que se identifica com sua essência, a distância em questão merece ser
chamada por nós de "distância fenomenológica". Somente
com o conceito de "distância fenomenológica" chegamos ao último pressuposto ontológico
que subjaz aos textos que acabamos de evocar. Entendida em seu significado
ontológico como condição para que algo como um "fenômeno" nos
seja oferecido ou, mais exatamente, como a própria estrutura da fenomenalidade,
o conceito de distância fenomenológica deve evidentemente ser distinguido
daquele de distância espacial ou "real". A
distância que separa as coisas ou que nos separa delas é uma distância que
podemos medir objetivamente, mas que já existe antes de qualquer medida,
como uma distância imediatamente experimentada, que pertence ao mundo ao
redor.
No entanto , essa
distância vivida na experiência perceptual original baseia-se, por sua
vez, como o espaço que vem estruturar e ao qual pertence, em uma espacialidade
mais original, que nada mais é do que o meio fenomenológico originalmente aberto
em que até mesmo algo como um espaço pode começar a se manifestar. Essa
espacialidade original é o fenômeno do mundo, o fenômeno de todos
os fenômenos, sua visibilidade como tal. O mundo, entendido em sua
mundanidade pura, é justamente essa visibilidade da qual tudo tira a
possibilidade de se manifestar e, assim, ser um "fenômeno". O
mundo é a condição transcendental do espaço, pois, como Martin Heidegger
mostrou, longe do mundo que se apoia no espaço, é antes o espaço que
se apoia no mundo.
Entretanto, o conceito
de distância fenomenológica não está vinculado ao espaço, e é aqui que ele
difere fundamentalmente de nosso conceito comum de distância. “Fundamentalmente”,
isto é, na medida em que pertence ao fundamento, ao mundanismo do mundo. O
conceito de distância fenomenológica não está "ligado" apenas ao de
"mundo": o desdobramento dessa distância é o mesmo, na realidade, que
a emergência do mundo em sua pureza. Compreendido em seu significado ontológico
radical, o conceito de distância fenomenológica é válido como um título
para a essência. Mas esse significado ontológico só é resguardado e,
sobretudo, pensado, se o conceito de distância recebe, em oposição a
qualquer ideia de distância espacial, o significado original de um poder.
As distâncias em que
baseamos o conceito que normalmente corresponde a eles em nosso espírito, são
distâncias encontradas. Encontrado, aliás, dentro de um campo
que, antes de ser espacial, é um campo fenomenológico. Mas a
distância, na medida em que agora caracteriza a extensão fenomenológica
original e não espacial desse campo puro, não é ela própria distância
encontrada. Em vez disso, é o poder que nos permite encontrar, é a
obra original de transcendência que se desdobra no horizonte. É o
"distanciamento", mas entendido, como quer Heidegger, “em um
sentido ativo e transitivo”. Antes de se referir a estar longe ou estar distante,
a distância é o que afasta. É o que afasta, não como um comportamento
particular e determinado, pelo qual empurramos um objeto sobre a mesa ou
atiramos uma pedra no campo. Esse comportamento, material ou não, é,
com efeito, nada mais que um processo de ordem ôntica. Pressupõe,
como condição do distanciamento que cada vez realiza, um distanciamento
mais original, a saber: o evento ontológico que dá origem ao
horizonte para o qual e dentro do qual atos concretos de aproximação ou
distanciamento podem realmente ocorrer.
A distância
fenomenológica modela as distâncias originais; ela desdobra o último
horizonte de visibilidade dentro do qual tudo pode se tornar visível para
nós. Cada presença é uma presença desde o horizonte e no fundo
dele. O horizonte desdobra precisamente o meio da presença, abre a
dimensão ontológica da existência. A distância fenomenológica é o
poder ontológico que nos dá acesso às coisas; é esse acesso em si: um
acesso na e pela distância.
Dizemos coisas que estão
distantes ou próximas de nós e essa determinação varia correlativamente
com as modalidades de comportamento ôntico real ou virtual que nos vincula
a elas. Mas essa relação, com seus personagens cada vez determinados,
apoia-se em uma relação mais original, que é obra do afastamento. Proximidade
e distanciamento são duas modalidades dentro de um distanciamento mais
fundamental que corresponde, como condição, à própria estrutura da fenomenalidade. A
essência do fenômeno é o próprio distanciamento como distanciamento
transcendental. Esse desapego é a condição de toda presença; constitui
a proximidade, por outro lado variável, das coisas, proximidade da qual o distanciamento
de que costumamos falar é apenas uma modalidade.
A proximidade
também não entendida como uma ordem de caracterização ôntica, mas como
possibilidade ontológica, ou seja, em sua essência, coincide com a distância primitiva
que é a obra da essência. Proximidade e distância são títulos
equivalentes para a essência do fenômeno considerado em sua pureza; em
conjunto, eles significam que a essência da presença de algum modo abriga
uma antinomia interna, mas é precisamente isso que dá à essência
seu próprio poder ontológico. A distância é a condição de toda
presença enquanto tal. A distância é a essência da proximidade. Assim,
pôde dizer Heidegger, “o ser humano é um ser de distância. Somente
por causa dessas distâncias originais que ele forma na sua transcendência
para com tudo o que existe, é que a verdadeira proximidade das coisas
cresce no homem”.
A compreensão do
status transcendental do distanciamento nos convida a refletir sobre o
caráter não original do significado dos conceitos de "perto"
e "longe" já em uso na filosofia clássica e retomados por Edmund
Husserl na fenomenologia da razão. Quando ele estuda, por
exemplo em Ideen, a "proximidade" e "afastamento" do
dado, ou, em Erfahrung und Urtei , as
diferenças na aparência dos objetos de acordo com "perto" ou
"longe", bem como, para cada objeto, sua maneira de passar do
"longe" ao "próximo", as características fenomenológicas
para as quais ele então aponta, claramente ainda não se referem a outra
coisa senão aos diferentes conteúdos do pensamento. O que se
diz próximo ou distante, segundo o modo como ocorre, segundo uma série de
graus de clareza ou indistinção, é cada vez um conteúdo, seja um
objeto empírico ou um objeto ideal; enquanto a consciência que obedece ao telos ; a
evidência tenta percorrer essa série de graus no sentido de que leva à
maior clareza possível para um determinado conteúdo. Quando esse grau
máximo de clareza é alcançado, diz-se que o objeto está em “proximidade
absoluta”. No nível ontológico, entretanto, esse conceito de
proximidade absoluta não tem, estritamente falando, qualquer significado. A
proximidade como tal é sempre absoluta, assim como a distância é sempre
absoluta, que é o mesmo que ela.
Na proximidade só
existem graus no momento em que deixa de ser considerada em seu
significado ontológico - na medida em que pertence, como estrutura constitutiva,
à essência da fenomenalidade - para se tornar uma característica
fenomenológica da própria entidade. Considerada como a potência
ontológica que nos dá acesso aos "fenômenos" e, assim, funda o "conhecimento"
em sua possibilidade, a distância fenomenológica não pode ser considerada
mais ou menos grande, e não faz sentido falar em "distância mínima". Quando
a distância entre meu olho e o objeto diminui progressivamente, obviamente
é apenas uma distância espacial. Quando essa distância chega a zero,
não vejo mais nada, como diz Malveme. Mas quando digo que não vejo
nada, essa proposição, se faz sentido, fala sobre uma experiência. Que
eu não vejo mais nada é um fato positivo, um "fenômeno". Para
ele, a essência já cumpriu seu dever: se desdobrou uma distância que
certamente não é espacial nem "real", mas constitui a própria
realidade do real, a possibilidade de toda presença como tal. Esta
distância fenomenológica transcendental distingue-se assim da maneira mais
clara de todas as distâncias espaciais, visto que subsiste no seu absoluto
também onde a distância espacial se torna nula, também onde a estrutura do
ser é tal que já não faz sentido falar de distância.
No caso das
distâncias que estruturam o mundo objetivo e, principalmente, o
mundo da vida, é claro que pertencem à entidade intramundana como determinações ônticas. Precisamente
na medida em que aparece como uma “determinação categorial”, usar uma
expressão de Heidegger, isto é, em relação à entidade que não é conforme o Dasein,
a distância é suscetível de diferenciação. Por outro lado, na medida em
que é um “existencial”, isto é, co-pertence à estrutura ontológica da
essência, carrega em si essa característica eidética de estar sempre a uma
distância absoluta.
Enquanto distância
absoluta e transcendental, a distância fenomenológica também deve ser diferenciada
em seu conceito enquanto "distância existencial", que
caracteriza a maior ou menor proximidade em que as coisas se mantêm para
nós de acordo com o interesse que por elas dedicamos. Essa proximidade não
tem relação com a proximidade espacial. Coisas muito distantes de nós no
espaço podem estar muito “próximas” e podemos nos tornar “contemporâneos” de um
acontecimento ocorrido há vinte séculos. A distância existencial está ligada
ao Cuidado. O Cuidado vive no mundo ao seu redor, mas de tal forma que
nunca cuida do mundo como tal, mas apenas do que acontece dentro do mundo. Há
no Dasein, diz Heidegger, uma tendência fundamental para o
próximo. Mas o que está perto de nós é sempre este ou aquele
determinado conteúdo, nunca a proximidade enquanto tal.
Pelo contrário, a
proximidade como tal é o que está mais distante de nós, e não porque seja
em si idêntica à essência originária do distante, mas porque nunca é para
nós o objeto de nosso cuidado. O objeto sempre determinado de nosso
Cuidado esconde de nossos olhos o meio ontológico em que aparece. A
orientação cuidadosa estando longe de nós oculta o distanciamento
como tal. O ser-alienado encontra seu fundamento, entretanto, no próprio estranhamento. As
distâncias vividas, existenciais ou espaciais, que moldam nosso mundo
são desenhadas no próprio fundo do mundo como tal e repousam sobre ele. Por
mais que caracterizem a entidade intramundana e pertençam a ela, o ser
dessa entidade é o próprio ser do mundo. As determinações categoriais são
baseadas em estruturas existenciais. O ser transcendente,
embora nos mascare todas as vezes a obra da transcendência, recebe dela todos
os seus caracteres ontológicos. Esses são, é claro, apenas
caracteres derivados, mas devem estar ligados, e isso em princípio, à
essência da qual são derivados.
A essência pode ser
mal interpretada quando compreendida a partir do que acontece graças a ela. É
possível confundir o conceito transcendental de estranhamento com o
de ser-distante que surge para nós na distância original. Porém,
para o desapego original, o ser-desapego deve ser o que é. O
conceito não elaborado de distância ainda é apenas a maneira pela qual a
consciência natural e pré-filosófica representa a condição do
fenômeno, e essa representação ainda não é um pensamento. Porém, com a
ajuda de elementos que supõem a essência e que nela encontram seu
fundamento, é assim que o pensamento a realiza. Por mais impróprio
que seja essa figura, ela ainda é significativa.
A ação à
distância, a teoria das espécies, os conceitos de "reflexão" e de
"imagem", o pressuposto da distância, não remetem mais do que
fatos ou processos de ordem ôntica. Mas estes são válidos apenas como símbolos,
e o que eles simbolizam não é homogêneo para eles: é o seu próprio fundamento. Trata-se,
de fato, de circunscrever a essência do fenômeno, e se o pensamento
filosófico tradicional se mostrou incapaz de localizar e manter sua
problemática no plano ontológico, sua intenção profunda deve, no entanto,
brilhar um dia. Heidegger pensa o mesmo que Gassendi, mas ele pensa
em sua verdade ontológica.
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Fonte: HENRY, Michel. La esencia de la manifestación. Traducción anotada de Miguel Üarcía-Baró y Mercedes Uarte. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2015, §9.
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