A TAREFA FUNDAMENTAL DA FENOMENOLOGIA (TEXTO DE MICHEL HENRY)
A fenomenologia é a ciência dos fenômenos. Isso significa que ela é uma descrição, anterior a qualquer teoria e independente de qualquer pressuposto, de tudo o que nos é proposto, como existente, em qualquer ordem ou em qualquer campo. Entendida como descrição, a fenomenologia implica a rejeição de todas as hipóteses, de qualquer princípio que tenha um valor real ou suposto unificador em relação a um conjunto de saberes e, em última instância, em relação a um setor da realidade que nele encontraria uma regra ou uma inteligibilidade, mesmo uma condição necessária de sua existência. A ciência, é verdade, está preocupada em ir além dos fatos e coordená-los em sistemas de explicação. Mas, em todos os casos, o elemento científico e o conjunto em que está integrado referem-se necessariamente a um dado fenomenológico sem o qual, a rigor, não teriam sentido.
Além disso, esses
mesmos elementos e sistemas existem apenas para nós como dados. Eles
são justapostos no meio fenomenológico à própria realidade que tentam
explicar. Essa realidade, portanto, não pode ser completamente
reduzida; não mais, por outro lado, do que a própria
realidade científica pode ser reduzida em todas as
suas formas. Uma vez que seu valor explicativo é colocado entre parênteses (embora
subsistindo como tal), as teorias penetram em nosso ambiente como dados. Como
tal, também requerem a atenção do fenomenólogo, que é capaz de descrever
as estruturas de suas próprias configurações. A desconfiança que
a fenomenologia manifesta em relação às concepções filosóficas ou
científicas se deve apenas ao fato de que, em geral, somos mascarados por
uma realidade cujas facetas e cujo próprio sentido elas esquecem
ou distorcem ao pensar em explicá-los. No entanto, se observarmos mais de
perto, essa desconfiança é indicativo de
um trabalho positivo.
O que se encontra, primeiro
e na maioria das vezes, alterado pelas teorias, é o próprio sentido do
trabalho teórico e de seus resultados. É com respeito ao significado
dos conjuntos constituídos em princípios explicativos que a fenomenologia
realiza principalmente seu trabalho de preservação; o ser dos objetos
científicos e dos conjuntos que eles constituem é o que restitui à sua
integridade, conferindo-lhe um estatuto. A Fenomenologia está, assim,
defendendo a ciência contra a tentação de ser uma nova metafísica,
impedindo-a de se tornar realidade absoluta e operando, por outro lado,
a inclusão de edifícios e princípios abstratos no contexto da experiência
humana.
Se o objeto científico é
o mesmo que o objeto dessa experiência, não é apenas porque se refere necessariamente
a um objeto de experiência (sensível ou não), mas também porque é ele
próprio um objeto de experiência. Se o conceito de fenomenologia é fácil
de apreender em seu significado negativo, na medida em que implica colocar
entre parênteses todas as interpretações e construções que o pensamento
teórico sobrepõe ao real a ponto de tomar seus próprios produtos pela realidade e
“hipostasiá-los” sob uma forma absoluta, a sua determinação positiva, precisamente
porque visa introduzir-nos no domínio da positividade, exige análise. Isso
deve estar centrado na ideia de fenômeno, pois, como ciência dos
fenômenos, a fenomenologia tenta se ater exclusivamente ao que se
manifesta, exatamente como se manifesta.
Somos, como disse Edmund Husserl, os verdadeiros positivistas. É aqui, claro, para desafiar o
empirismo e reconhecer, como uma fonte de lei para o conhecimento,
"não apenas a visão empírica, mas a visão em geral, como uma consciência
doadora original em todas as suas formas". Quando o elemento
propriamente teórico do conhecimento se limita a expressar os dados
intuitivos em significados que lhe correspondem rigorosamente, é quando
pode servir, como fundamento, para o posterior desenvolvimento do
conhecimento, e assim ser o que Husserl chama de "começo absoluto" ou também “ponto de partida". Por se basear exatamente no que
se mostra tal como se mostra em si mesmo, o enunciado fenomenológico afirma ter
um valor absoluto. Absoluto é, com efeito, o manifesto a que se refere, na
medida em que é algo manifesto. O que aparece é o que não pode ser
contestado, o que escapa à redução.
Uma ciência
verdadeiramente positiva é então possível, na medida em que se refere
constantemente a tal algo manifesto. Por querer confiar neles e
devolver-lhes todas as suas dimensões, a fenomenologia libera o fundamento
sobre o qual a metafísica e, ao mesmo tempo, o ser e a vida, como
dados absolutos, podem ser restabelecidos "em seu antigo direito ". Max Scheler escreveu, por exemplo: "Uma filosofia fundada na
intuição fenomenológica da essência deve afirmar que o ser absoluto é
cognoscível, de maneira evidente e adequada, em todas as esferas do mundo
externo e interno"
Uma filosofia que se
baseia em dados não evita, é claro, o problema da não-verdade. Mas ela
possui os meios de substituir a problemática tradicional do erro pela problemática mais radical da ilusão, que de fato justifica a aparência, cujo
"conteúdo" é sempre "verdadeiro", uma vez que deriva a ilusão da transferência inadequada de uma “situação” para uma camada de
ser que não é a sua. Quanto ao erro, que, em suma, nada mais é do que
um caso particular de ilusão, consiste no estabelecimento de uma relação
inadequada entre um pensamento de uma “situação” em juízo e a “situação”
correspondente presente na intuição.
Mas o fenômeno do conhecimento sempre e
em todos os casos, refere-se a um dado, a uma aparência ou aparecimento,
a algo manifesto, que desempenha o papel de fundamento último, e que temos
é apenas uma questão de compreender em seu sentido próprio e de
colocá-lo no plano de ser que lhe corresponde. Para isso, basta
deixar o aparecimento tal como aparece e simplesmente descrever o que nele
está indicado. O significado absoluto da fenomenologia é, portanto,
baseado na presença da coisa, isto é, em seu aparecimento. Quando fenomenologia é
interpretada como uma filosofia da consciência, este significado absoluto é
traduzido em um dogmatismo de intencionalidade, que, na medida em que atinge o
próprio ser, seria capaz de fornecer um verdadeiro fundamento ontológico.
No entanto, embora a
relação da coisa com a consciência se efetue, na medida em que é um
dado fenomenológico, um absoluto, seu significado logo se mostram
relativo. Isso se dá porque toda aparência como tal é cercada por uma área de
sombra. Os dados fenomenológicos contêm em si algumas implicações
cujo significado é sempre referir-se a algo que não existe. Entretanto,
não seria o significado da fenomenologia considerada como um método precisamente
buscar a elucidação "do que está 'implícito' no sentido do cogitatum sem ser
intuitivamente dado"; estendendo assim ao reino do aparecimento, isto
é, o da luz e da realidade, também o da racionalidade, que encontra seu
fundamento no aparecer? Todavia, a realização do trabalho
fenomenológico não pode, apesar de seu significado positivo, dissipar
completamente a sombra que o cerca quando ele considera o aparecimento e questiona
seu caráter absoluto.
Não há totalidade
intuitiva, porque a elucidação do que está implícito no dado aparente só
pode ser buscada se esse dado sacrificar sua presença para o
desenvolvimento posterior do processo fenomenológico. E esta pergunta
também se coloca a nós: Seria aquilo ao qual o aparecimento se refere também
capaz de se dar a nós, por sua vez, como aparecer? Ou a finitude em
virtude da qual um aparecimento sempre requer ser elucidado não se refere a uma
finitude mais essencial, em virtude da qual essa elucidação é, de fato, jamais
possível? Em qualquer caso, a lei que prescreve a colocação em relação ao
aparecer do processo de explicação fenomenológica permanece naturalmente
estranha à consciência até que os aparecimentos tenham sucesso; e também tal
lei permanece alheia a fenomenologia enquanto essa não for entendida de outra forma
senão como positivismo, mesmo que seja nesse sentido expandido que
restaura a pluralidade de suas dimensões fundamentais ao poder da visão.
Essa lei, com efeito,
é a da essência, que não é levada em consideração enquanto o
pensamento obedece ao que parece ser o absoluto. Mas tal pensamento
permanece no nível de uma interpretação ingênua e de alguma forma pré-crítica da
fenomenologia: ele usa um conceito de fenômeno que permanece na
realidade não elaborado. O que, então, com efeito, torna os fenômenos
possíveis no sentido do positivismo? O que é que estabelece para nós
a presença do que aparece, senão o próprio ato de aparecer, a essência do
fenômeno e da presença como tal? E enquanto a consciência natural
lamenta o destino temporário do ser que lhe chega, o pensamento que se preocupa
com a essência compreende a necessidade de voltar à lei que rege esse
destino.
Bem, o conteúdo que
aparece a cada vez não é responsável por esse destino; em vez disso,
ele sofre isso como uma lei estrangeira. Mas a razão que o coloca e o
sustenta no aparecer lhe escapa, assim como a razão que o tira da
existência. É, aliás, mais do que uma única e mesma razão, uma e
mesma lei, que a fundou e suprimiu, e o conteúdo não a contém. A
profunda dependência do que aparece no ato de aparecer exige que se
constitua o sujeito do problema de agora em diante. Ele aponta para a
presença do que está presente; refere-se à essência em cujo
fundamento tudo o que nos é dado pode precisamente estar lá para nós. Seu
objeto é o modo de manifestação do que se manifesta. Trata-se, como
dizia Georg Hegel comentando sobre as religiões da luz, da “mera
manifestação”.
O pensamento só
alcança tal objeto quando é capaz de ir além da consideração do existente
singular que nos é proposto, elevando-se ao ser desse existente, ou seja, ao
ato de aparecer como tal. A crítica do positivismo significa que a fenomenologia
não pode ser confundida com uma descrição da ordem ôntica, por mais
extenso que seja seu campo, mas que não adquire seu significado propriamente
filosófico até que seja compreendida em seu esboço ontológico, segundo o qual
esta superação do existente se opera em direção à essência que o funda em
seu ser. A fenomenologia é a ciência dos fenômenos em sua realidade. Seu
objeto não é o conjunto dos fenômenos, com suas estruturas e, consequentemente,
suas áreas específicas, mas a essência do fenômeno como tal. A
redução fenomenológica não pretende salvar certos conteúdos considerados
"verdadeiros", enquanto outros seriam descartados ou suspensos. A realidade que
ela traça como fundamento irredutível não é um fenômeno privilegiado, mas
a essência onipresente e universal de todos os fenômenos como tais.
Por isso, a redução
fenomenológica é uma redução eidética. Por redução, entende-se o
pôr em liberdade a essência, que não pode ser reduzida e subsiste sozinha, como
condição. A redução, portanto, nos introduz na esfera do absoluto. O
fato de a condição ser absoluta decorre de que ela não é postulada
pela análise e é simplesmente considerada necessária. A condição é a
essência do fenômeno, aparecendo como tal, em seu ato de aparecer. A
verdade transcendental a que a redução fenomenológica nos apresenta não
é uma realidade misteriosa, é, ao contrário, a própria verdade, identificada
com o ser, enquanto "ser" e "verdade" designam apenas o aparecer
como tal. “Ser e verdade são contemporâneos”, dizia Martin Heidegger. Isso
significa que o fato de aparecer é o que confere a todo o ser, e que a
verdade, entendida em um sentido primordial, nada mais é que esse ato de
aparecer considerado em e para si. Essa verdade, na medida em que é
transcendental, também podemos chamá-la de “Forma”. O elemento formal
propriamente ontológico é aquilo a que pertence o fenômeno apenas enquanto fenômeno.
A insuficiência do
positivismo se deve ao fato de não dar conta da positividade que constantemente pressupõe ao
descrever os fenômenos, sem antes ter perguntado sobre o ser
fenomenal como tal. Na medida em que está ligada à essência do fenômeno, a
problemática que a fenomenologia institui deve ser entendida em seu
sentido absolutamente universal e fundamental. Se o erro ou, mais
exatamente, a ilusão é, pelo menos para o positivismo fenomenológico, um
problema, a reflexão que aponta para a essência do fenômeno encontra no
exame da "mera aparência" uma confirmação de seu caráter absoluto. Pois
a essência é "o ato de aparecer” que até mesmo a aparência precisa
ser algo que aparece. Erro, ilusão, verdade (em um sentido
racional) são co-determinados por um fundamento comum.
A verdade
absoluta é o que permite que a ilusão se manifeste, e assim a funda em
seu ser. O erro não está por um instante separado do absoluto. A
imanência do conhecimento absoluto dentro do conhecimento não verdadeiro é o que
nos permite responder à pergunta de Hegel: “Como o conhecimento verdadeiro pode testar
sua verdade contra o conhecimento não verdadeiro?” “Ele se limitará a afirmar
que é o verdadeiro conhecimento?” Com tal afirmação, Hegel assinala, que
alguém poderia argumentar que a força do conhecimento verdadeiro reside em seu
ser, mas o conhecimento falso também apela para este mesmo fato: que ele é.
No entanto, o que falta ao conhecimento falso, para que também seja conhecimento
verdadeiro e real, é compreender o significado de sua afirmação. Pois o
fato de que nenhum conhecimento verdadeiro é, é o que o torna um
conhecimento verdadeiro, em sentido absoluto. Saber é a manifestação e,
como tal, a essência. Por ser conhecimento, o conhecimento não verdadeiro também
é algo que se manifesta; carrega consigo, como condição, o ato de se manifestar, ou
seja, a essência. Ao refletir sobre o ato de aparecer, sobre o fato
de aparecer o mesmo conhecimento aparente, a problemática que considera a
essência se reduz a ela e subordina aos problemas que dizem respeito à
"verdade" ou ao "erro", à "aparência" ou
"realidade", entendidos cada vez em um sentido particular. Quanto
a ela, tem um sentido universal: mostra que a realidade é precisamente a
realidade do aparecimento, do aparecer em todas as suas formas e, portanto,
uma realidade absoluta.
Assim, surge a ideia
da igualdade de conhecimento verdadeiro e falso com respeito ao conhecimento absoluto. O
conhecimento verdadeiro, em oposição ao conhecimento não verdadeiro, é
verdadeiro apenas em um segundo sentido, porque assim como o sol brilha
sobre os justos e sobre os injustos, a verdade entendida em um sentido
absoluto não faz distinção e, em seu poder ontológico, ela promove a existência
e protege a ilusão e a "realidade". Ela é a realidade
absoluta, a verdade do verdadeiro e do falso, a origem que tudo
esclarece, o fundamento universal. É verdade que a consciência natural
muitas vezes esquece a essência que lhe dá o dom da presença, e que, em
oposição ao seu conhecimento aparente, podemos chamar de conhecimento
verdadeiro ou real aquele que reconhece a obra da essência. A
fenomenologia é precisamente o conhecimento verdadeiro assim compreendido, na
medida em que, entendido em seu significado universal, busca ser o
conhecimento da essência. A fenomenologia é a ciência da essência do
fenômeno.
Por entender o ser
como a essência do fenômeno, Heidegger pôde dizer que a fenomenologia
é a ciência do ser e, como tal, ontologia. Pois a fenomenologia não
consiste de forma alguma na aplicação de um método monótono a vários
problemas. É conveniente distinguir aqui os problemas últimos da
fenomenologia, que definem o campo de uma "fenomenologia primeira", em
oposição a uma "fenomenologia segunda", que visa elucidar o sentido do ser nas
diferentes regiões. Expressões como "fenomenologia do ser",
"fenomenologia do ego", "fenomenologia do tempo" são elas
mesmas essencialmente ambíguas, uma vez que as disciplinas que indicam correm
o risco de se encontrarem justapostas em nossas mentes com uma
fenomenologia das formas sociais ou objetos matemáticos, por exemplo. Agora,
enquanto essas últimas investigações pertencem claramente ao domínio de
uma fenomenologia segunda, ao contrário, surge o problema de
saber se a fenomenologia do ego ou do tempo não é fenomenologia entendida
em um primeiro sentido.
Nesse caso, o ego e o
tempo não seriam realidades da mesma ordem da sociedade ou da matemática,
no sentido de que, longe de estarem sujeitos à essência, pertenceriam
pelo contrário, à sua estrutura interna e assim entrariam como elementos
constitutivos, na definição imanente da verdade absoluta. Mas se essa
questão não pode ser respondida até que a essência do fenômeno tenha
sido clarificada, o que parece muito claro de agora em diante é que o
objeto da fenomenologia primeira não pode ser externo a ela. Ao contrário,
ele é tão interno a ela que ela se funda nele e nele encontra seu princípio. Esse
objeto é a essência do fenômeno, e a fenomenologia nada mais é do que o
trabalho dessa essência na medida em que, a partir dela, aponta
para uma " elucidação", ou seja, para uma promoção e uma
realização na presença.
A compreensão do
elo que une a fenomenologia (como fenomenologia primeira) ao seu
objeto é, no entanto, difícil. A fenomenologia é, com efeito, o
modo de tratamento que queremos aplicar à realidade, isto é, à essência. É
o "como" que nos diz como lidar com o que deve ser debatido por
ele. O que deve ser debatido, no entanto, nada mais é do que o
"como", a maneira como a realidade se manifesta e deve se
manifestar a nós. A realidade do real nada mais é do que a maneira
como o real se manifesta. “Ontologia e fenomenologia não são”, diz
Heidegger, “duas disciplinas pertencentes, lado a lado, à filosofia”. Esses
dois títulos caracterizam a própria filosofia de acordo com o
objeto e de acordo com o modo de seu tratamento. Mas, no caso presente, o
objeto é o próprio modo de tratamento.
A fenomenologia é o
que nos dá acesso ao fenômeno compreendido em sua realidade, ou seja, ao
fenômeno como tal. Mas a via de acesso ao fenômeno é o
próprio fenômeno. A fenomenologia nos é proposta como meio: meio de
trazer conosco a essência concreta e verdadeira, a essência da presença, o
absoluto enquanto Parusia (“presença”). Mas o meio é o próprio
absoluto, pois o ato de fazer aparecer a nós é obra da essência, na medida
em que é a essência da presença, da Parusia e do absoluto. A
fenomenologia busca a Parusia do absoluto sobre o fundamento do
absoluto entendido como Parusia.
Na medida em que é a aplicação do
método fenomenológico ao problema da essência do fenômeno, a fenomenologia
se move em círculo. Este é o sinal de seu caráter absoluto. Este
caráter absoluto da problemática que estabelece não significa que a
fenomenologia não tenha pressupostos. Pelo contrário, admite um
pressuposto fundamental na medida em que esse pressuposto é o próprio fundamento,
o absoluto. A fenomenologia é uma investigação que visa elucidar o seu próprio
fundamento, é uma reflexão sobre si mesma. A fenomenologia é seu
próprio objeto.
Os últimos problemas da
fenomenologia referem-se à reflexão da fenomenologia sobre si mesma e
sobre seus fundamentos. Na resposta dada a estes últimos problemas, o
significado da fenomenologia é decidido. Isso depende, com
efeito, da natureza da fundação. Como a fenomenologia pode adentrar em
relação com a essência, isto é, com o “Como fundamental” segundo o
qual a realidade se realiza ao se tornar um "fenômeno",
obviamente depende da natureza do "Como". O problema da
essência do fenômeno é primeiro com respeito ao da elucidação. A
fenomenologia é guiada por seu objeto. O “como” de sua abordagem está subordinado
ao “como” da realidade da qual se aproxima, uma realidade que é o próprio
"como". É por conta dessa realidade que chega até nós
e nos ilumina. A maneira como essa realidade vem ao nosso
encontro não deveria governar a maneira como a acolhemos e nos abrimos a
ela? Ou melhor, não deveria o como de nossa recepção ser e não é necessariamente
igual ao como do absoluto vindo a nós? O olho com o qual o absoluto
nos olha é o mesmo com o qual olhamos para o absoluto. Mas como
entender esse olho, que é o próprio absoluto? Qual é a natureza da
visão? Qual é a essência do fenômeno?
Todos os problemas, já formulados
ou apenas vislumbrados, que dizem respeito à primeira fenomenologia permanecem
pendentes sobre esta questão. A compreensão do elo que une ontologia e fenomenologia
permanece indeterminada enquanto o pensamento não atingir o interior da
estrutura da essência. Uma vez que permanece subordinado a uma
essência não revelada, o próprio projeto de essência elucidativa, que
define antes de tudo o trabalho metodológico da fenomenologia, permanece
incerto sobre si mesmo, seu significado e seu fundamento.
É claro que não nos
deixamos deter pela objeção do círculo: a tarefa de elucidação é
empreendida e continuada sem medo de se afastar da essência, pois, pelo
contrário, lhe é confiada , e desta forma a essência vai acabar se
tornando transparente em meio a esse trabalho. A menos que seja da
vontade da essência recusar essa transparência final e permanecer
definitivamente um mistério. Em qualquer caso, isso será revelado, e
a essência será apresentada a si mesma. Como, aliás, deve ser
realizada essa colocação da essência na presença de si mesma? A essência entendida
como a força ontológica que funda toda presença não é, obviamente,
estranha à consciência natural. Na medida em que se trata de uma
consciência, um ser-aí (Dasein)ou estar-aí, o conhecimento absoluto
é imanente a ela.
Mas, não consistiria a apreensão temática da essência, o conhecimento verdadeiro e real, isto é, o conhecimento do conhecimento absoluto compreendido em seu caráter absoluto, na representação da essência? Isso só é possível se a própria essência consiste na representação. E como sua natureza deve ser interpretada? Assim, a compreensão da relação da essência consigo mesma depende, em última instância, da determinação da estrutura da essência. Essa determinação é a única coisa que pode dizer se esse "relacionamento" finalmente faz sentido. "Na esfera do psíquico”, diz Husserl, “não há diferença entre ser e aparência”. Mas essa afirmação, na qual se acredita poder fundamentar o caráter absoluto da problemática fenomenológica na medida em que aponta para a esfera imanente da consciência, é de fato um indício extremamente vago, enquanto não se definiu o que deveria ser entendido pelo Fato de Aparecer.
Da
mesma forma, se se diz que há na própria essência algo que não aparece,
aquilo que não aparece ou, para ser mais exato, o fato de não aparecer, permanece
tão indeterminado em seu ser quanto a manifestação pura e simples, não sendo captado de forma rigorosa em
sua essência. Além disso, o fato de não aparecer talvez tenha apenas
um significado limitado, puramente negativo, se permanecer em relação a um
conceito não trabalhado da essência fenomênica; visto que seria possível
que o que é dado como não aparecendo só seja assim diante do olhar de uma
concepção unilateral e, como tal, abstrata da essência. Levar ao fim
a determinação da essência para reconhecê-la em seu caráter plenamente
concreto é talvez trazer à luz uma “Forma”, um “Como” mais fundamental,
cuja lei confere uma presença, embora de outra ordem, ao que se pensava
originalmente como "não-aparecendo".
A determinação da
essência deve também nos fornecer o arcabouço ontológico para discutir a
relação dessa essência com a existente que nela encontra seu fundamento. Na
verdade, essa determinação é a única coisa que pode dizer se a superação
do positivismo é, do ponto de vista ontológico, definitiva e irrevogável; se
a transgressão do existente opera irreversivelmente; e se a essência
que se adquire em tal transgressão pode fechar-se em si mesma, abstrair da
determinação ôntica, se absolutizar nessa abstração e, no entanto, subsistir
assim, preservando seu absolutismo em sua autonomia. O que está em
causa é a forma de compreender o caráter concreto da essência e, por fim,
o seu caráter absoluto.
A determinação da estrutura
interna da essência é a única coisa capaz, finalmente, de delimitar o
campo dos problemas últimos da fenomenologia. Só ela pode dizer se a
fenomenologia do ego pertence a este campo dos primeiros problemas e em que sentido. A tarefa de determinar
a essência do fenômeno aparece como a tarefa fundamental da
fenomenologia. Ela é imposta a nós e o faz de uma maneira ainda mais
urgente porque a filosofia sempre levantou e resolveu seus
problemas com base em uma concepção inexplicada do fenômeno. A
elucidação da essência do fenômeno mostrará que, quando essa essência
finalmente se constituiu em sujeito de um problema explícito, apenas
ratificou, levando-os ao absoluto, os pressupostos ontológicos que, desde
o início e quase ininterruptamente, nortearam, mas também, e
ainda mais, perdido na pesquisa e no pensamento filosófico.
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Fonte: HENRY, Michel. La esencia de la manifestación. Traducción anotada de Miguel Üarcía-Baró y
Mercedes Uarte. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2015, §8.
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