SUBVERSÃO DE IDENTIDADE E DESCONSTRUÇÃO DA ORDEM SEXO/GÊNERO


O objetivo deste artigo é apresentar o problema sexo/gênero a partir de uma desconstrução da metafísica de substância. A intenção é subverter a ordem compulsória do sexo/gênero por meio de um questionamento da segmentação da humanidade em homens e mulheres, entendendo que essa segmentação é uma naturalização da divisão socialmente construída entre os sexos. 
Para entendermos o que significa “naturalização da divisão socialmente construída entre os sexos”, é preciso compreender o que significa essa naturalização. Em A Ideia da Fenomenologia, Edmund Husserl define a atitude natural como aquela na qual nos voltamos para as coisas considerando nosso conhecimento sobre elas como óbvio, dado e evidente. Essa é a postura adotada pela ciência. Quando um biólogo olha para a natureza, ele já toma como óbvios e dados diversos pressupostos inquestionados, ele já tem de antemão um determinado conceito dado do que significa “vida”, toma uma determinada classificação dos entes vivos como evidente e óbvia e entende seu objeto como factualidades dadas em si, independentes do sujeito. 
Fenomenologia, por outro lado, requer uma atitude reflexiva (filosófica), ela se assume como uma teoria crítica do conhecimento, exigindo de nós que coloquemos de lado nossas interpretações prévias sobre a realidade e que nos posicionemos de modo questionador diante daquilo que sempre tomamos como óbvio e dado. Assim, precisamos questionar, é realmente óbvio, dado e autoevidente a divisão da humanidade em dois sexos, homens e mulheres? 
De acordo com Pierre Bordieu, em A Dominação Masculina, a divisão entre os sexos é tomada como natural e inevitável justamente porque ela faz parte da atitude na qual compreendemos o mundo a partir de concepções naturalizada. Ele entende que é o mundo social que constrói o corpo como realidade sexuada e que cria a diferença biológica entre os sexos. Assim, os sexos não são uma percepção simples de propriedades naturais do ser humano, mas sim uma determinada definição social que, ao acentuar determinadas diferenças anatômicas em detrimento de outras, justifica por um argumento biológico uma diferença que é, na verdade, socialmente construída. 
Isso já havia sido constatado por Simone de Beauvoir no Segundo Sexo. De acordo com Beauvoir, há uma tentativa de buscar na biologia uma justificativa para interpretações socialmente construídas sobre o sexo. De acordo com o argumento biológico, macho e fêmea constituiriam dois tipos de indivíduos diferentes no interior da mesma espécie e o objetivo dessa diferença serviria aos fins de reprodução.  
Ao que parece, a diferenciação no interior de uma mesma espécie de indivíduos masculinos e femininos teria surgido da necessidade reprodutiva da espécie. No entanto, este argumento é invalidado pelo fato de que a diferenciação sexual não é necessária para a reprodução, como exemplificado pelos organismos assexuados. 
Nesse sentido, a diferenciação sexual não surgiu de uma necessidade biológica, ela é antes um fato contingente no processo de evolução das espécies. Isso requer que concebamos a diferenciação sexual não como um dado absoluto, fixo e imutável necessário para a reprodução das espécies, mas como um elemento contingente e mutável sujeito às modificações constantes do processo evolutivo. 
Thierry Hoquet, num capítulo intitulado As Filosofias do Vivo, parte integrante do livro História da Filosofia organizado por Jean François Pradeau, diz:

“A consideração das bactérias e dos micróbios leva igualmente à redefinição de conceitos como o de ‘sexo’. O sexo designa a partir de então um mecanismo de recombinação genética, uma simples mistura de genes, ou uma união de moléculas de DNA provindas de diferentes origens. No seio desta definição muito generalista, distingue-se o ‘sexo eucarioto’, definido pelo processo de meiose, tal qual conhecemos por exemplo nos animais superiores, e o sexo ‘procarioto’, o qual designa processos (lisogenia, transdução, etc.) de recombinação genética de entidades autopoiéticas (como as células bacterianas) ou não autopoiéticas (como os vírus e os plasmidos). É possível livrar o sexo das categorias de gênero  (masculino/feminino, macho/fêmea) e da convocação de uma finalidade reprodutiva.”

No entanto, há ainda mais um problema com o argumento biológico. Ele parte da visão animalista de que seríamos animais biológicos. Mas será que podemos ser compreendidos assim? Será que somos definidos por nossa constituição orgânico-biológica como o são os animais? Essa é mais uma interpretação naturalizada que a atitude filosófica requer que coloquemos sob questionamento.  
A pergunta pelo “eu sou” não parece ser corretamente respondida por “somos organismos animais”. O nosso “eu sou” é, em certo sentido, determinado pelo “eu penso” no sentido do cogito. Somos consciências e é em nossa consciência que parece ser possível encontrar nosso sentido de ser.  
Para entender melhor o argumento de que não somos organismos animais podemos recorrer a uma analogia. Imaginemos que duas pessoas, a pessoa A e a pessoa B, estejam em um carro. De repente a pessoa A tem seu corpo massacrado no acidente, conservando-se inteira somente sua cabeça. A pessoa B, por outro lado, tem sua cabeça destruída, restando-se apenas o seu corpo. Imaginemos que para salvar pelo menos uma vida, o médico una a cabeça da pessoa A ao corpo da pessoa B. Entendendo que o centro biológico da consciência emerge do cérebro, ao retomar a consciência, essa pessoa terá a memória da pessoa A, embora no corpo de B. Quem é a pessoa que retomou a consciência? 
Parece ser correto responder que, embora no corpo de B, a pessoa que temos diante de nós “é” a pessoa A. Isso significa que aquilo que somos não é definido por uma questão de constituição corporal, nós não somos organismos animais, antes somos consciências corporificadas. Suponhamos que a pessoa A fosse um homem e a B uma mulher, será que agora que a pessoa A está no corpo B, ela se tornaria uma mulher mesmo identificando-se por sua autoconsciência com o gênero masculino? Será mesmo que é nossa constituição anatômica que define nosso gênero? 
Se aquilo que somos não pode ser definido por nossa constituição anatômica, então “ser-homem” e “ser-mulher” não é um dado biologicamente determinado. Ser humano não é uma espécie natural, mas uma ideia histórica, de modo que “ser-homem” e “ser-mulher” também precisa ser compreendido, não como uma realidade biologicamente determinada, mas como uma construção histórica. 
 Mas aqui surge a necessidade de uma desconstrução ainda mais radical, dissemos no início que o objetivo deste artigo é apresentar o problema sexo/gênero a partir de uma desconstrução da metafísica de substância. Remetemo-nos aqui ao parágrafo 6 de Ser e Tempo, em que Heidegger propõe uma destruktion da história da ontologia.  
tarefa de uma destruição da ontologia requer uma desconstrução dos conceitos recebidos da ontologia tradicional, assim, não são só os conceitos recebidos pelas ciências naturais, como a biologia, que requerem serem colocados fora de circuito, mas também os conceitos filosóficos herdados de interpretações sedimentadas da história da filosofia.  
A linguagem filosófica tradicional entende o humano como sendo um ente simplesmente dado, isso significa que ele é entendido como um ser cuja essência já está previamente dada e determinada. Ser humano seria somente a realização ou efetivação de uma determinada natureza prévia anterior. Assim como o ser da cadeira como assento já está determinado até mesmo antes que uma determinada cadeira fática seja produzida, aquilo que o ser humano é já estaria previamente determinado. 
A noção de sexo como substância ou identidade fixa depende dessa compreensão ontológica tradicional sobre o ser. Judith Butler, em Problemas de Gênero, observa que essa compreensão ontológica substancialista oculta o fato de que “ser” um sexo ou um gênero é fundamentalmente impossível. Ela entende que a ontologia tradicional cai no erro de deduzir as noções de “Ser” e “Substância” a partir da crença de que a formulação gramatical de sujeito e predicado refletiria uma realidade ontológica anterior, de substância e atributo. 
Assim, Butler entende as noções de ser e substância como ilusórias e problematiza a ideia substancialista sobre os gêneros. A diferenciação entre os gêneros seria, na verdade, regulada e mantida pela matriz heterossexual compulsória, uma imposição que normatiza, estabelece padrões  e uniformiza. 
Se não vamos pensar o humano a partir da noção de espécie biológica, nem como um ente simplesmente dado, é preciso abandonar o próprio uso do termo “humano” na medida em que ele está carregado de interpretações sedimentadas. Heidegger sugere falar de “ser-aí” ou Dasein. O ser-aí é o ente que nós mesmos somos. No entanto, esse ente precisa ser distinguido de todos os demais entes, ele não é um ente simplesmente dado, mas um ente aberto ao possível, jamais determinado por qualquer destino social, biológico ou psíquico.  
Na medida em que rompemos com as interpretações prévias sobre o que significa ser humano, podemos dizer, como fala Marcos Casanova, que “o ser-aí não tem corpo, não tem alma, não tem genoma, fenótipo, não é social, político, não é racional, biológico ou orgânico.” Isso significa que, em sua constituição fundamental, o ser-aí não é nada que esteja previamente determinado. 
Aqui podemos tratar da questão da corporeidade, dizer que o ser-aí não tem corpo, não é excluir a corporeidade, mas sim entender que o corpo não é uma determinação prévia do ser-aí, antes a corporeidade do ser-aí é determinada a partir de sua existência. Assim, não é possível determinar o ser do ser-aí a partir de seu corpo, não se pode dizer que se é homem ou mulher a partir de uma determinada constituição corporal, antes é ser-aí que a cada vez determina a partir da existência o sentido do seu corpo.  
O ser-aí não tem corpo, ele corporifica, é a partir de sua existência que o ser-aí determina sua corporeidade. O corpo não é um dado prévio que determina o ser do ser-aí, não é um fato orgânico que lhe impõe um destino, não é um objeto à disposição do ser-aí como o são os utensílios. O corpo é uma situação do ser-aí, constitui a mediação do ser-aí com a totalidade de significância do mundo. O corpo desenha uma circunvizinhança e é perpassado por um movimento de existência em direção ao próprio mundo. 
De acordo com Merleau-Ponty, o corpo próprio possui seus "caracteres", que são a espacialidade (a distância vivida que conecta as coisas do mundo na amplidão da existência), a motricidade (a intencionalidade originária pela qual nosso corpo se move em direção às coisas), a sexualidade (o movimento ekstático do desejo que dispõe as coisas no interior de uma esfera de afetividade) e a linguagem (em que o corpo se mostra como discurso, expressão e fala). O corpo é inseparável da totalidade interpretativa do ser-no-mundo e é atravessado pela temporalidade e pela historicidade. Isso significa que o corpo sempre surge num horizonte interpretativo, nunca como dado puro e que ele sempre se dá perpassado por significados histórica e socialmente construídos. 
Se o corpo é inseparável de seu carácter linguístico, então não é possível pensar o corpo como dado biológico puro separado das interpretações sociais e históricas que são feitas sobre ele. Simone de Beauvoir, no Segundo Sexo, pontua que a perspectiva existencial compreende que o próprio corpo precisa ser considerado dentro de um contexto de significações. Quando alguém olha para o corpo de um bebê com um pênis e diz “isto é um menino”, tal conclusão não é uma percepção pura de dados biológicos, antes é a inscrição no corpo de significações histórica e socialmente construídas.  
Se o corpo surge sempre num horizonte de significados, então não é possível fazer uma distinção entre sexo e gênero, como se o sexo pertencesse ao corpo biológico considerado em si mesmo e o gênero a uma construção social ou a uma identificação mental. O sexo é tão construído quanto o gênero e, nesse sentido, quando falamos de sexo ou de gênero estamos falando da mesma coisa, estamos falando de categorias socialmente construídas.  
Dizemos que o ser-aí não é nada que já se encontra previamente determinado, nesse sentido não há nada prévio que determine o ser-aí como homem ou mulher. Poderia se dizer, a partir de uma leitura sartriana (Ser e Nada), que o ser-aí nada mais é do que o nada. Se o ser-aí é o nada, isso significa que não encontramos qualquer algo dado na realidade humana. Não há algo no sentido de uma personalidade, um temperamento ou um caráter, como elementos dados, inatos ou adquiridos. Portanto, não há um ser-homem e ser-mulher entendidos como categorias que incluiriam um determinado temperamento ou modo de ser ou se comportar. 
No que diz respeito ao ser-aí, "ser é fazer" como coloca Jean-Paul Sartre. O ser-aí não é uma identidade substancial, não possui uma essência ontológica prévia que determina a cada vez seu existir. O ser-aí nada mais é do que "fazer" e "agir", ele é uma unidade organizada de atos e condutas. Ser isso ou aquilo é simplesmente conduzir-se desta ou daquela maneira e sempre é possível ao ser-aí conduzir-se de maneiras diversas daquelas pelas quais ele conduziu-se até aqui. A realidade humana não é um agir determinado por um ser-que-age, antes o ser-que-age é, ele mesmo, seu próprio agir. O ser-aí é nada, é ausência de ser. O que é dado na ausência própria de cada ser-aí é o possível. O possível surge no fundo de nadificação do ser-aí. Assim, o ser-aí só pode aparecer projetado para suas múltiplas possibilidades, possibilidades em que o ser-aí sempre se lança em seu livre-agir. 
Assim, sexo e gênero também precisam ser compreendidos como atos, atos que Judith Butler designa como performativos. O efeito substantivo do sexo e gênero é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero. Não há nenhum “ser” ou “substância” por traz do “fazer”, não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; a identidade de gênero é performativamente constituída pelas próprias "expressões” comportamentais do gênero. Não é o comportamento que resulta do gênero, o ser-aí não se conduz de determinado modo por ser de um determinado sexo ou gênero, antes é o comportamento do ser-aí, a maneira como o ser-aí se conduz, que determina a cada vez o seu ser isto ou aquilo.  
Ser de um gênero, portanto, é efeito de uma construção. O gênero não é uma realidade ontológica separada dos atos que o constituem.  O gênero é o próprio ato substantivado. Isso significa que os atos criam a ilusão de uma substância de gênero, ilusão que serve ao propósito de regular a sexualidade nos termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora.  Por isso questionar a compreensão ontológica do gênero é subverter a ordem compulsória sexo/gênero que normatiza a sexualidade. 

       O gênero é um ato performativo, performativo significa uma construção dramática e contingente do sentido. O gênero não é uma identidade fixa, mas uma identidade constituída por meio de uma repetição articulada e contínua de atos. A segmentação da humanidade em "homem" e "mulher" só surge da divisão "eu - Outro" em que a mulher é identificada com o Outro. Assim como não é preciso dividir as pessoas em negros e brancos, ou mesmo entre quem tem cabelo ruivo, moreno e escuro ou quem gosta de sorvete e quem não gosta, não há uma necessidade de segmentar a sociedade em homens e mulheres. Essa segmentação é contingente e socialmente construída.

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