AS PALAVRAS E AS COISAS: UMA ARQUEOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS (RESUMO)
O que se segue é um resumo do livro As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas, do filósofo e historiador Michel Foucault. Nessa obra, Foucault traça o desenvolvimento histórico das ciências, começando pela Episteme do Renascimento, em que a interpretação da semelhança era o princípio básico do conhecimento, passando pela Episteme Clássica que se dá em termos de uma análise de identidade e diferença, chegando à Episteme Moderna de caráter antropológico com o surgimento das ciências humanas. É importante colocar que este
resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem
paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor
original.
I. AS MENINAS
As Meninas é uma pintura de 1656 por Diego Velázquez. A pintura retrata um grupo de pessoas, incluindo a princesa, reis, alguns servidores do palácio e o próprio artista Velázquez. A pintura mostra que a relação entre linguagem e pintura é infinita, se vê na pintura um conjunto de metáforas visuais da proposição conceitual básica de que toda classificação requer ou pressupõe um espaço comum, um espaço que não está naturalmente dado, antes, esse espaço é um lugar comum que é construído historicamente.
Há, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda, daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo, que é o mesmo, desapareceu. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação
II. A PROSA DO MUNDO
Até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. A pintura imitava o espaço. E a representação se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar.
A trama semântica da semelhança no século XVI é muito rica. Pode-se indicar quatro figuras principais que prescrevem suas articulações ao saber da semelhança: (i) conveniência: são “convenientes” as coisas que, aproximando-se umas das outras, vêm a se emparelhar; tocam-se nas bordas, suas franjas se misturam, a extremidade de uma designa o começo da outra; (ii) emulação: uma semelhança sem contato, os elos da emulação formam círculos concêntricos, refletidos e rivais. (iii) analogia: assegura o maravilhoso afrontamento das semelhanças através do espaço; mas fala, como aquela, de ajustamentos, de liames e de juntara, não precisa ser uma similitude visível, basta serem as semelhanças mais sutis das relações; (iv) simpatia: tem o poder de assimilar, de tornar as coisas idênticas umas às outras, de misturá-las, de fazê-las desaparecer em sua individualidade, de torná-las, pois, estranhas ao que eram, a simpatia transforma, altera, mas na direção do idêntico.
Não há semelhança sem assinalação. O mundo do similar só pode ser um mundo marcado. As semelhanças exigem uma assinalação, pois nenhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada. Chamemos hermenêutica ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir seu sentido; chamemos semiologia ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem distinguir onde estão os signos, definir o que os institui como signos, conhecer seus liames e as leis de seu encadeamento: o século XVI superpôs semiologia e hermenêutica na forma da similitude. Buscar o sentido é trazer à luz o que se assemelha. Buscar a lei dos signos é descobrir as coisas que são semelhantes. A gramática dos seres é sua exegese. E a linguagem que eles falam não narra outra coisa senão a sintaxe que os liga.
Tal é, em seu esboço geral, a epistémê do século XVI, marcada pela semelhança. A semelhança jamais permanece estável em si mesma; só é fixada se remete a uma outra similitude que, por sua vez, requer outras; de sorte que cada semelhança só vale pela acumulação de todas as outras, e que o mundo inteiro deve ser percorrido para que a mais tênue das analogias seja justificada e apareça enfim como certa.
No século XVI, a linguagem real não é um conjunto de signos independentes, uniforme e liso, em que as coisas viriam refletir-se como num espelho, para aí enunciar, uma a uma, sua verdade singular. É antes coisa opaca, misteriosa, cerrada sobre si mesma, massa fragmentada e ponto por ponto enigmática, que se mistura aqui e ali com as figuras do mundo e se imbrica com elas: tanto e tão bem que, todas juntas, elas formam uma rede de marcas, em que cada uma pode desempenhar, e desempenha de fato, em relação a todas as outras, o papel de conteúdo ou de signo, de segredo ou de indicação.
A linguagem faz parte da grande distribuição das similitudes e das assinalações. Por conseguinte, deve, ela própria, ser estudada como uma coisa da natureza. Saber consiste, em referir a linguagem à linguagem. Em restituir a grande planície uniforme das palavras e das coisas. Em fazer tudo falar. Isto é, em fazer nascer, por sobre todas as marcas, o discurso segundo do comentário. O que é próprio do saber não é nem ver nem demonstrar, mas interpretar.
III. REPRESENTAR
No começo do século XVII, nesse período que, com razão ou não, se chamou barroco, o pensamento cessa de se mover no elemento da semelhança. A similitude não é mais a forma do saber, mas antes a ocasião do erro, o perigo ao qual nos expomos quando não examinamos o lugar mal-esclarecido das confusões. O semelhante, que fora durante muito tempo categoria fundamental do saber se acha dissociado numa análise feita em termos de identidade e de diferença. Ao invés de interpretar, agora busca-se, na Idade Clássica, analisar.
No limiar da idade clássica, o signo deixa de ser uma figura do mundo; deixa de estar ligado àquilo que ele marca por liames sólidos e secretos da semelhança ou da afinidade. O classicismo o define segundo três variáveis: (i) a origem da ligação: só há signo a partir do momento em que se acha conhecida a possibilidade de uma relação de substituição entre dois elementos já conhecidos; (ii) o tipo de ligação: o signo, na idade clássica, não é mais encarregado de tornar o mundo próximo de si e inerente às suas próprias formas, mas, ao contrário, de estendê-lo, de justapô-lo segundo uma superfície indefinidamente aberta e de prosseguir a partir dele o desdobramento sem termo dos substitutos com os quais o pensamos e; (iii) a certeza da ligação: o signo não é mais do que um elemento subtraído às coisas e constituído como signo pelo conhecimento.
No entanto, a mais fundamental propriedade dos signos para a epistémê clássica que é a sua pura dualidade. O signo encerra duas ideias, uma da coisa que representa, outra da coisa representada, uma representação duplicada. Constituiu-se na idade clássica um espaço de empiricidade que não existira até o fim do Renascimento e que estava condenado a desaparecer desde o início do século XIX. Esse espaço de empiricidade é constituído pelo projeto de uma ciência geral da ordem; teoria dos signos analisando a representação; disposição em quadros ordenados das identidades e das diferenças.
O que torna possível o conjunto da epistémê clássica é, primeiramente, a relação a um conhecimento da ordem. Quando se trata de ordenar as naturezas simples, recorre-se a uma máthêsis cujo método universal é a Álgebra. Quando se trata de pôr em ordem naturezas complexas (as representações em geral, tais como são dadas na experiência), é necessário constituir uma taxinomia e, para tanto, instaurar um sistema de signos.
IV. FALAR
A existência da linguagem na idade clássica é a um tempo soberana e discreta. Soberana, pois que as palavras receberam a tarefa e o poder de “representar o pensamento”. Discreta, porque a linguagem, está presa na sua rede e tecida na trama mesma que ele desenvolve. Não é efeito exterior do pensamento, mas o próprio pensamento. E, desse modo, ela se faz invisível ou quase. A linguagem não tem mais outro lugar senão a representação, nem outro valor senão em si mesma.
Uma vez suprimida a existência da linguagem, subsiste na representação apenas seu funcionamento: sua natureza e suas virtudes de discurso. Este não é mais do que a própria representação, ela mesma representada por signos verbais. Ao primeiro exame, é possível definir as palavras por seu caráter arbitrário ou coletivo. No entanto, o que distingue a linguagem de todos os outros signos e lhe permite desempenhar na representação um papel decisivo não é tanto o fato de ser individual ou coletiva, natural ou arbitrária, mas, sim, o fato de que ela analisa a representação segundo uma ordem necessariamente sucessiva.
A linguagem é análise do pensamento: não simples repartição, mas instauração profunda da ordem no espaço. É aí que se situa esse domínio epistemológico novo que a idade clássica chamou de “gramática geral”. A Gramática Geral é o estudo da ordem verbal na sua relação com a simultaneidade que ela é encarregada de representar. É essa coisa ambígua, tão vasta quanto o conhecimento, mas sempre interior à representação, que a Gramática geral toma por objeto.
A proposição é para a linguagem o que a representação é para o pensamento: sua forma, ao mesmo tempo mais geral e mais elementar. As proposições nominais guardam todas a presença invisível de um verbo, o verbo é a condição indispensável a todo discurso: e onde ele não existir, ao menos de modo virtual, não é possível dizer que há linguagem.
A espécie inteira do verbo se reduz ao único que significa: ser. A essência inteira da linguagem se concentra nessa palavra singular. A linguagem é, toda ela, discurso, em virtude desse singular poder de uma palavra que passa por sobre o sistema dos signos em direção ao ser daquilo que é significado.
A palavra designa, o que quer dizer que, em sua natureza, é nome. Nome próprio, pois que aponta para tal representação e mais nenhuma. A articulação primeira da linguagem, se se puser de parte o verbo ser, que é condição tanto quanto parte do discurso, faz-se segundo dois eixos ortogonais: um que vai do indivíduo singular ao geral; outro que vai da substância à qualidade. No seu cruzamento reside o nome comum; numa extremidade, o nome próprio, na outra, o adjetivo.
Se, no fundo de si mesma, a linguagem tem por função nomear, isto é, suscitar uma representação ou como que mostrá-la com o dedo, ela é indicação e não juízo, nesse sentido ela aparece como designação. As palavras também sofrem modificações de forma que designamos como derivação. As modificações de forma não têm regra, são quase indefinidas e jamais estáveis. As quatro teorias, da proposição, da articulação, da designação e da derivação, formam como que os segmentos do quadrilátero da linguagem.
V. CLASSIFICAR
Nos séculos XVII e XVIII, a ciência buscou formas para classificar os seres vivos. No entanto, essa busca em classificar os seres vivos produziu discrepâncias. A dificuldade de apreender a rede capaz de ligar, umas às outras, pesquisas tão diversas como as tentativas de taxionomia e as observações e os conflitos entre os fixistas e os que não são, ou entre os partidários do método e os partidários do sistema; a obrigação de dividir o saber em duas tramas que se imbicam, embora estranhas uma à outra: a primeira, definida pelo saber já acumulado (a herança aristotélica ou escolástica, o peso do cartesianismo, o prestígio de Newton), a segunda pelo que ainda se ignorava (a evolução, a especificidade da vida, a noção de organismo); e, sobretudo, a aplicação de categorias que são rigorosamente anacrônicas em relação a esse saber.
A biologia não existia no século XVIII e a repartição do saber que nos é familiar há mais de 150 anos não pode valer para um período anterior. E que, se a biologia era desconhecida, o era por uma razão bem simples: é que a própria vida não existia. Existiam apenas seres vivos e que apareciam através de um crivo do saber constituído pela história natural. A história natural não é nada mais que a nomeação do visível, assim, a teoria da história natural não é dissociável da teoria da linguagem.
VI. TROCAR
Existe, nos séculos XVII e XVIII, uma noção que nos permaneceu familiar, embora tenha perdido para nós sua precisão essencial. Nem é de “noção” que se deveria falar a seu respeito, trata-se antes de um domínio geral, esse domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza. A análise das riquezas não se constituiu segundo os mesmos meandros nem ao mesmo ritmo que a gramática geral ou que a história natural, a reflexão sobre a moeda, o comércio e as trocas está ligada a uma prática e a instituições.
O século XVI, o pensamento econômico está limitado, ou quase, ao problema dos preços e ao da substância monetária. O metal só aparecia como signo, e como signo medindo riquezas, na medida em que ele próprio era uma riqueza. Assim como as palavras tinham a mesma realidade daquilo que diziam. Assim como as marcas dos seres vivos estavam inscritas sobre seu corpo à maneira de marcas visíveis e positivas, assim os signos que indicavam as riquezas e as mediam deviam trazer, eles próprios sua marca real. Para poderem dizer o preço, era necessário que fossem preciosos, raros, úteis, desejáveis e que essas qualidades fossem estáveis para que a marca por eles imposta fosse uma verdadeira assinalação, universalmente legível.
A configuração do conhecimento sobre o domínio das riquezas sofre alteração no século XVII, na Idade Clássica. As propriedades da moeda, metal precioso por excelência, se fundamentavam em ter preço, medir os preços e poder trocar o que tem preço. Enquanto o Renascimento fundava as duas funções do metal monetizado sobre a reduplicação de seu caráter intrínseco, o fato de ser precioso, o século XVII desloca a análise; é a função de troca que serve de fundamento para os dois outros caracteres, a aptidão para medir e a capacidade de receber um preço surgem então como qualidades que derivam dessa função. Para o mercantilismo a moeda tem o poder de representar toda forma de riqueza. Toda riqueza é monetizável; e é assim que ela entra em circulação.
VII. OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO
Os últimos anos do século XVIII são rompidos por uma descontinuidade simétrica àquela que, no começo do século XVII, cindira o pensamento do Renascimento. A configuração do saber, a partir da lógica da representação, a linguagem como quadro espontâneo e quadriculado das coisas; como suplemento indispensável entre a representação e os seres, desvanecem-se. Surge uma nova configuração na produção dos saberes, um ponto de ruptura na camada das continuidades.
A História passará a definir o lugar do nascimento do que é empírico e a Analogia e a Sucessão, e não mais a identidade e as diferenças, que serão os princípios organizadores de um novo espaço de empiricidades. As palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação. Tais modificações provocarão, as primeiras fissuras no campo da análise das representações e criarão as condições de possibilidade de novas empiricidades.
VIII. TRABALHO, VIDA, LINGUAGEM
O trabalho, a vida e a linguagem constituem as novas empiricidades tornadas possíveis com as modificações trazidas pela ruptura com a representação. Podemos considerar cada uma dessas empiricidades em relação à essa ruptura:
(i) o trabalho: a análise das riquezas, os indícios de configuração de uma nova positividade podem ser encontrados na abordagem proposta por Adam Smith acerca do conceito de trabalho. Adam Smith provocará um deslocamento no conceito de trabalho por tomá-lo como uma unidade de medida absoluta, irredutível e insuperável. As análises de Smith permitirão a Ricardo novas possibilidades de análise da riqueza, não mais pelo quadro da representação, num sistema de equivalências, mas em sua organização na cadeia temporal, de tal modo que todo valor se determina não segundo os instrumentos que permitem analisá-lo, mas segundo as condições de produção que o fizeram nascer; e mais ainda, essas condições são determinadas por quantidades de trabalho aplicadas para produzi-las.
(ii) a vida: na taxonomia clássica, a vida aparecia como o efeito de um recorte, como uma simples fronteira classificatória, mas a partir de Curvier, é a vida, no que tem de puramente funcional, que funda a possibilidade exterior de uma classificação, o ser vivo escapa, ao menos em primeira instância, às leis gerais do ser extenso; o ser biológico regionaliza-se e autonomiza-se; a vida é, nos confins do ser, o que lhe é exterior e que, contudo, se manifesta nele e, assim, torna-se possível uma biologia.
(iii) a linguagem: a linguagem passa a não ser mais constituída somente de representações e de sons que, por sua vez, as representam e se ordenam entre si como o exigem os liames do pensamento; é ademais, constituída de elementos formais, agrupados em sistema, e que impõem aos sons, às sílabas, às raízes, um regime que não é o da representação. A linguagem passa a se constituir como objeto autônomo, liberta do campo da representação, a linguagem passa a ser investigada em conexão com suas relações internas e com a historicidade própria a cada objeto.
IX. O HOMEM E SEUS DUPLOS
Com a superação da ordem do pensamento clássico, tem-se um retorno da linguagem com a literatura, com o retorno da exegese e a preocupação da formalização, com a constituição de uma filologia. Todo pensamento filosófico contemporâneo se sustenta na questão sobre o ser da linguagem. A linguagem é compreendida como constituindo o ser do homem, de modo que surge a necessidade uma epistêmi que trate do ser do homem.
Nesse sentido, o homem não existia antes do fim do século XVIII, pois não havia consciência epistemológica do homem como tal. O homem é dominado pelo trabalho, pela vida e pela linguagem, de forma que sua existência é determinada por estes três aspectos. para o pensamento moderno, a positividade da vida, da produção e do trabalho (que têm sua existência, sua historicidade e suas leis próprias) funda, como sua correlação negativa, o caráter limitado do conhecimento; e inversamente, os limites do conhecimento fundam positivamente a possibilidade de saber, mas numa experiência sempre limitada, o que são a vida, o trabalho e a linguagem.
Nesse sentido, há uma finitude do homem que embasa todas as positividades empíricas. Para o pensamento moderno, a positividade da vida, da produção e do trabalho, que têm sua existência, sua historicidade e suas leis próprias, funda, como sua correlação negativa, o caráter limitado do conhecimento; e, inversamente, os limites do conhecimento fundam positivamente a possibilidade de saber, mas numa experiência sempre limitada, o que são a vida, o trabalho e a linguagem.
Esta constatação dos limites do conhecimento, conduz à compreensão do homem enquanto duplo empírico-transcendental. Sendo duplo empírico-transcendental, o homem não se pode dar na transparência imediata e soberana de um cogito; mas tampouco pode ele residir na inércia objetiva daquilo que, por direito, não acede e jamais acederá à consciência de si.
Porque é duplo empírico-transcendental, o homem é também o lugar do desconhecimento, este desconhecimento que expõe sempre seu pensamento a ser transbordado por seu ser próprio e que lhe permite, ao mesmo tempo, se interpelar a partir do que lhe escapa. É essa a razão pela qual a reflexão transcendental, sob sua forma moderna, não mais encontra o ponto de sua necessidade, como em Kant, na existência de uma ciência da natureza, à qual se opõem o combate perpétuo e a incerteza dos filósofos, mas na existência muda, prestes porém a falar e como que toda atravessada secretamente por um discurso virtual, desse não-conhecido a partir do qual o homem é incessantemente chamado ao conhecimento de si. A questão não é mais: como pode ocorrer que a experiência da natureza dê lugar a juízos necessários? Mas sim: como pode ocorrer que o homem pense o que ele não pensa, habite o que lhe escapa sob a forma de uma ocupação muda, anime, por uma espécie de movimento rijo, essa figura dele mesmo que se lhe apresenta sob a forma de uma exterioridade obstinada?
X. AS CIÊNCIAS HUMANAS
O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis: está, ao mesmo tempo, no fundamento de todas as positividades, e presente, de uma forma que não se pode sequer dizer privilegiada, no elemento das coisas empíricas. Esse fato é, sem dúvida, decisivo para o estatuto a ser dado às “ciências humanas”, a esse corpo de conhecimentos que toma por objeto o homem no que ele tem de empírico.
As ciências humanas não são uma análise do que o homem é por natureza; são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode falar. O surgimento das ciências humanas traz a questão de em qual categoria das ciências ela deve ser situada. A ciência moderna apresenta três dimensões bem demarcadas: (i) ciências dedutivas: matemática e física; (ii) ciências empíricas: biologia, filologia e economia; (iii) filosofia. A questão é em qual dessas dimensões desse “triedro dos saberes” devem situar-se as ciências humanas.
Em certo sentido, pode-se dizer que as ciências humanas foram excluídas desse triedro, no sentido em que ela não se encaixaria em nenhuma dessas três dimensões. Mas, pode-se também dizer que elas são incluídas nesse triedro, pois é no interstício desses saberes, mais exatamente no volume definido por suas três dimensões, que elas encontram seu lugar. Essa situação coloca-as em relação com todas as outras formas de saber: têm o projeto, mais ou menos protelado, porém constante, de se conferirem ou, em todo o caso, de utilizarem, num nível ou noutro, uma formalização matemática; procedem segundo modelos ou conceitos tomados à biologia, à economia e às ciências da linguagem; endereçam-se, enfim, a esse modo de ser do homem que a filosofia busca pensar ao nível da finitude radical, enquanto elas pretendem percorrê-lo em suas manifestações empíricas.
Pode-se fixar o lugar das ciências humanas nas vizinhanças, nas fronteiras imediatas e em toda a extensão dessas ciências em que se trata da vida (biologia), do trabalho (economia) e da linguagem (filologia). Contudo, nem a biologia, nem a economia, nem a filologia devem ser tomadas como as primeiras ciências humanas nem como as mais fundamentais.
Assim, o domínio das ciências humanas define-se a partir da relação delas com a biologia, economia e filologia. Só haverá ciência do homem se nos dirigirmos à maneira como os indivíduos ou os grupos se representam seus parceiros na produção e na troca, o modo como esclarecem, ou ignoram, ou mascaram esse funcionamento e a posição que aí ocupam.
Uma vez que o homem histórico é o homem que vive, trabalha e fala, todo conteúdo da História, qualquer que seja, concerne à psicologia, à sociologia ou às ciências da linguagem. Mas, inversamente, uma vez que o ser humano se tornou, de ponta a ponta, histórico, nenhum dos conteúdos analisados pelas ciências humanas pode ficar estável em si mesmo nem escapar ao movimento da História.
A psicanálise e a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado. Não certamente porque teriam, melhor que qualquer outra ciência humana, embasado sua positividade e realizado enfim o velho projeto de serem verdadeiramente científicas; antes porque, nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, elas formam seguramente um tesouro inesgotável de experiências e de conceitos, mas, sobretudo, um perpétuo princípio de inquietude, de questionamento, de crítica e de contestação daquilo que, por outro lado, pôde parecer adquirido.
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