TENTATIVA DE UMA INTERPRETAÇÃO PSICOLÓGICA DO DOGMA DA TRINDADE - JUNG (RESUMO)



            O que se segue é um resumo da obra “Tentativa de uma Interpretação do Dogma da Trindade” que faz parte do livro “Psicologia da Religião Ocidental e Oriental” de Carl Gustav Jung. Jung inicia traçando o desenvolvimento histórico da ideia da Trindade, indo dos símbolos primitivos até os credos cristãos. Em seguida, ele considera a Trindade em seu símbolo psicológico dos estágios de desenvolvimento da infância à vida adulta. Por fim, ele trata do arquétipo da quaternidade enquanto símbolo de totalidade. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.


I. PARALELOS PRÉ-CRISTÃOS DA IDEIA DA TRINDADE

            A Trindade é o símbolo central da fé cristã, mas aqui trataremos dela numa perspectiva psicológica. No estágio primitivo do pensamento humano já aparecem inúmeras tríades divinas. A organização em tríades é um arquétipo que surge na história das religiões e que provavelmente inspirou, originariamente, a ideia da Trindade Cristã. Podemos citar como exemplos dessas tríades:
(i) tríades babilônicas: A tríade babilônica mais importante é a de Anu, Bel e Ea. Ea, a personificação do saber é pai de Bel, o Senhor, que personifica a atividade prática. Outra tríade é a de Sin (a Lua), Shamash (o sol) e Adad (a tempestadade). Adad é filho de Anu, o Altíssimo.
(ii) tríade egípcia: A tríade egípcia é formada por um deus pai, um deus filho (que se manifesta em Hórus) e um terceiro elemento, o Ka-mutef, a força procriadora.
(iii) tríades gregas: Há tríades nas especulações matemáticas dos pitagóricos, que consideravam o três o primeiro número ímpar e também perfeito porque seria no número três que apareceria pela primeira vez um começo, um meio e um fim. Há também tríades no Timeu de Platão, em que o três é essencial para a proporção geométrica perfeita do mundo por ser o terceiro elemento que proporciona a unidade dos dois primeiros elementos. No Timeu, o mudo formado por Deus é visto como Filho do Pai, esse mundo tem uma alma que é constituída por três substâncias que formam uma só substância.

II. PAI, FILHO E ESPÍRITO

            A realidade psicológica da Trindade consta de três termos: Pai, Filho e Espírito Santo. Posto o Pai, segue-se o Filho, mas o Espírito Santo não resulta logicamente nem do Pai, nem do Filho, de modo que ele constitui uma realidade particular. Entre o Pai e o Filho, surge um terceiro elemento que não é uma figura humana, mas espírito. Na Trindade Cristã, a relação masculina (pai-filho) na ordem da natureza, foi suprimida para um plano que exclui o feminino, a Mãe de Deus fica fora da Trindade.
            A substituição da figura feminina na Trindade por um Espírito sem sexo resultou no celibato sacerdotal. A operação mental que subjaz à relação sublimada pai-filho consiste em exaltar uma figura invisível, um espírito, que representa uma espécie de encarnação ideal da vida masculina. A substituição da figura feminina na trindade por um espírito sem sexo resultou no celibato sacerdotal como ideal da vida masculina.
            A operação mental que subjaz à relação sublimada pai-filho consiste em exaltar um figura invisível, um espírito, que representa uma espécie de encarnação ideal da vida masculina. No entanto, a exclusão do feminino não começou com a trindade cristã, como se vê, por exemplo, na noção de “Ka” no Egito. A relação pai-filho-espírito, com exclusão da mãe ou progenitora divina, constitui a fórmula patriarcal que estava no ar muito antes da era cristã.
            De acordo com sua definição, o Pai é a causa primeira, o Criador, o autor das coisas, o qual, num determinado estágio cultural incapaz de reflexão, pode ser simplesmente o uno. Do uno deriva o outro por via de divisão. Mas o mundo criado pelo Pai se revela mau e imperfeito, de modo que surge o problema do mal, a bondade do Pai não pode mais constituir o princípio único da cosmogonia.  O uno precisa ser substituído por um outro. O mundo do Pai é, assim, sucedido pelo mundo do Filho. Isso se verifica no momento em que começou a crítica do mundo pelos gregos, na época da gnose em seu sentido mais amplo e da qual surgiu justamente o Cristianismo. No Filho se realiza o antigo arquétipo do Deus redentor e do homem primordial. Por fim, quando Cristo abandona a sua atividade terrenal, aparece o Espírito Santo, que elimina a dualidade pai-filho reconstituindo a unidade.

III. OS SÍMBOLOS

            O drama trinitário da redenção veio à luz do dia na plena inconsciência do seu renascimento dentro de um novo Éon, embora a Trindade só tenha sido formulado em linguagem racional em um tempo posterior.  Embora no Novo Testamento a Trindade não esteja expressamente formulada, aparecem nele, por exemplo, a bênção apostólica, que possui um caráter mágico-trinitário e nele aparecem três figuras que se acham numa relação manifesta de interação, o Pai, o Filho gerado pelo Espírito Santo e o próprio Espírito Santo. Os pais da Igreja, desenvolveram as noções do Novo Testamento até desembocar na homoousia.
            O desenvolvimento da Trindade resultou em proposições doutrinárias que foram resumidas em confissões de fé. Essas confissões podem ser chamadas de “símbolos”. Do ponto de vista psicológico, símbolo significa uma imagem antropomórfica, colocada em lugar de um fato transcendente, do qual não se pode dar uma explicação ou interpretação racional. Podemos considerar os seguintes símbolos trinitários:
(i) o símbolo apostólico: “Creio em Deus Pai, Todo-poderoso.
Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido por obra do Espírito Santo; nasceu da virgem Maria; padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, foi sepultado; ressurgiu dos mortos ao terceiro dia; subiu ao Céu; está sentado à direita de Deus Pai, donde há de vir para julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito Santo; na Santa Igreja; na remissão dos pecados; na ressurreição da carne.”
(ii) símbolo de Gregório, o Taumaturgo: “Um só Deus, Pai da Palavra viva, sua sabedoria subsistente e seu poder, sua efígie eterna, gerador perfeito do perfeito, Pai do Filho unigênito, único do único; efígie e imagem da divindade; Palavra eficaz e Sabedoria que abrange todas as coisas; poder formador de toda criatura; Filho verdadeiro do Pai verdadeiro, Filho invisível do Pai invisível; incorruptível do incorruptível; imortal do imortal; eterno do eterno. E um só Espírito Santo que recebe de Deus sua existência e apareceu por intermédio do Filho; imagem perfeita do Pai perfeito, causa de todos os viventes; fonte de santidade, corifeu de santificação, no qual Deus-Pai se manifestou e que está acima de tudo e em tudo, e Deus Filho, que existe através de tudo. Trindade perfeita, não dividida nem alienada pela glória e pela eternidade e pela realeza.”
(iii) símbolo niceno: “Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, e em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Unigênito do Pai, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da Luz, Deus verdadeiro de Verdadeiro Deus, gerado, não criado, consubstancial com o Pai. Por quem todas as coisas foram feitas, as que estão no céu e na terra. Que por nós homens e para nossa salvação desceu do céu e se encarnou e se fez homem. Ele sofreu e ao terceiro dia ressuscitou e subiu aos céus. E virá novamente para julgar os vivos e os mortos. E cremos no Espírito Santo. E quem disser que houve um momento em que o Filho de Deus não era, ou que ele foi gerado e antes ele não era, ou que ele foi feito de coisas que não eram, ou que ele é de uma substância ou essência diferente do Pai ou que ele é uma criatura, ou sujeito à mudança ou conversão. Todos que assim disserem a Igreja Católica e Apostólica, anatomiza-os!.”
(iv) símbolo niceno-constantinopolitano: “Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. E, por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos Céus. E encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; E subiu aos Céus, onde está sentado à direita de Deus Pai. De novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o Seu reino não terá fim. Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, procede do Pai e do Filho; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele que falou pelos profetas. Creio na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Professo um só batismo para remissão dos pecados. Espero a ressurreição dos mortos; E a vida do mundo que há de vir. Amém.”
(v) símbolo atanasiano: “A verdadeira fé cristã é esta: que honremos um único Deus na Trindade e a Trindade na Unidade, não confundido as pessoas nem dividindo a sustância divina. Pois uma é a pessoa do pessoa do Pai, outra a do Filho e outra a do Espírito Santo; mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um único Deus, iguais em glória e majestade eterna. Qual o Pai, tal o Filho, tal o Espírito Santo. O Pai é incriado, o Filho é incriado, o Espírito Santo é incriado. O Pai é incomensurável, o Filho é incomensurável, o Espírito Santo é incomensurável. O Pai é eterno, O Filho é eterno, o Espírito Santo é eterno. Contudo, não são três Eternos, mas um único Eterno. Do mesmo modo, não três Incriados, nem três Incomensuráveis, mas um único Incriado e um único incomensurável. Da mesma maneira, o Pai é todo-poderoso, o Filho é todo-poderoso, o Espírito Santo é todo-poderoso; contudo, não são três Todo-poderosos, mas um único Todo-poderoso. Assim, o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus; todavia, não são três Deuses, mas um único Deus. Deste modo, o Pai é Senhor, o Filho é Senhor, o Espírito Santo é Senhor; entretanto, não são três Senhores, mas um único Senhor. Visto que, segundo a verdade cristã, nos importa confessar cada pessoa por sua vez como sendo Deus e Senhor, é-nos proibido pela fé cristã dizer que há três Deus e três Senhores. O Pai por ninguém foi feito, nem criado, nem gerado. O Filho provém apenas do Pai, não foi feito, nem criado, mas gerado. O Espírito Santo não foi feito, nem criado, nem gerado pelo Pai pelo Filho, mas deles procede. Logo, é um único Pai, não são três Pais; um único Filho, não três Filhos; um único Espírito Santo, não três Espíritos Santos. E nesta Trindade nenhuma pessoa é anterior ou posterior, nenhuma maior ou menor, mas todas as três pessoas são coeterna e iguais entre si; de modo que, como foi dito, em tudo seja honrada a Trindade na Unidade e a Unidade na Trindade. Portanto, quem quiser ser salvo, deverá pensar assim da Trindade...”
(vi) símbolo lateranense: “Cremos firmemente e confessamos com simplicidade que só um é o Deus verdadeiro, eterno e imenso, todo-poderoso e imutável, incompreensível e inefável, Pai, Filho e Espírito Santo; três Pessoas, mas uma essência, substância ou natureza absolutamente simples. O Pai não procede de ninguém, o Filho procede somente do Pai, e o Espírito procede ao mesmo tempo de ambos, sempre sem começo e sem fim: o Pai gera, o Filho é gerado e o Espírito procede; todos os três consubstanciais, iguais entre si, igualmente onipotentes e coeternos.”

IV. ANÁLISE PSICOLÓGICA DA TRINDADE

            A história do dogma trinitário representa a manifestação gradativa de um arquétipo. A Trindade e a vida intratrinitária aparecem como o círculo fechado de um drama divino do qual o homem participa, no máximo, na qualidade de sofredor. Quando consideramos o arquétipo de Cristo vemos que os símbolos atribuem a ele atributos que caracterizam a vida do herói, tais como origem improvável, pai divino, nascimento ameaçado de perigo, pronta salvação, amadurecimento precoce, superação da própria mãe e da morte, milagres, fim trágico e prematuro, tipo de morte simbolicamente significativo, efeitos póstumos e sinais miraculosos.
A vida de Cristo constitui apenas um breve intervalo dentro da história, um simples anúncio e proclamação da mensagem, mas é também uma demonstração exemplar daquelas vivências psíquicas ligadas à realização de Deus, do Si-mesmo. O essencial para o homem não é o que foi mostrado e feito, mas o que vem depois da vida de Cristo, o fato do Espírito Santo ter-se apoderado do indivíduo.
Considerando uma análise psicológica da simbologia trinitária, podemos entender que o Pai simboliza o estágio primitivo, o estágio ainda infantil, quando se tem uma forma de vida que tem o caráter de lei. O Filho representa uma etapa caracterizada pelo hábito de uma forma de vida conscientemente escolhida e conscientemente adquirida, a libertação da lei, o que gera conflito e tensão com o Pai. O Espírito Santo funciona como um terceiro elemento que dissolve a tensão entre Pai e Filho, restaurando a unidade, esse é o estágio adulto, em que se renuncia a dependência infantil da primeira fase e autonomia exclusiva da segunda.

V. O PROBLEMA DO QUARTO COMPONENTE

            Três das quatro funções psicológicas se acham ao alcance da consciência, o pensamento, a sensação e a intuição. O sentimento, por outro lado, se acha contaminado pelo inconsciente. Aquilo que se acha no estágio de inconsciência, configura-se como sombra.
            O arquétipo que aparece como simbolizando a totalidade é a quaternidade. A trindade exclui o quarto elemento, o mal. O mal não é mera privação de bem, ele possui existência absoluta, pois somente um mal existente pode se opor a um mal existente. O mal foi retratado, na simbologia cristã, pela figura do Diabo. A adição do quarto elemento simboliza a individuação, a quaternidade é um símbolo do Si-mesmo, da totalidade.
             


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