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UMA TEORIA MORAL UNIFICADA - DEREK PARFIT (RESUMO)


O que se segue é um resumo da Parte 10 do livro On What Matters de Derek Parfit, intitulada Ethics (Uma Teoria Moral Unificada). Essa parte é composta por 6 capítulos, sendo eles: 1. Razões universais (53. What Matters and Universal Reasons)2. Conflito de razões (54. Conflicting Reasons)3. Razões para agir errado (55. The Right and the Good)4. Princípios deontológicos (56. Deontological Principles); 5. Consequencialismo de Atos e Moralidade do Senso Comum (57. Act Consequentialism and common sense morality); 6. Em direção a uma teoria unificada (58. Towards A Unified Theory). É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação das teses do texto original de forma compactada, não uma resenha crítica. A ideia é de que o texto permaneça do autor original no sentido de apresentar de modo resumido suas principais teses no livro. Entretanto, este resumo não substitui a leitura do livro original, nem é uma reprodução dele, trata-se apenas de um roteiro para estudo com propósito educacional sem fins lucrativos. A obra usada referência para este resumo foi: PARFIT, Derek. On What Matters: Volume Three. Oxford: Oxford University Press, 2017.

 

I. RAZÕES UNIVERSAIS 

 

     Em ética, há apenas duas possibilidades, ou algumas coisas importam no sentido de que temos razões para nos importarmos com tal coisa ou nada importa. Essa tese é criticada por autores como Lerry Temkin que considera essa distinção uma falsa dicotomia. Segundo ele, mesmo que nada importasse no sentido que implica razões, disso não se seguiria o niilismo. Essa leitura, entretanto, tornaria o niilismo uma tese trivial, quando um niilista dizem que nada importa, eles não podem estar querendo dizer que ninguém se importa com nada, o que seria obviamente falso, o que eles querem dizer é que ninguém tem nenhuma razão para se importar com algo. 

De acordo com uma perspectiva objetivista em Ética, as coisas que importam são aquelas que todos nós temos razão para nos importarmos com elas. Razões são imparciais quando elas são razões que todos devem ter e que todos teriam de um ponto de vista completamente imparcial, por exemplo, todos possuem razão para se importar com o sofrimento. Razões são, por outro lado, personalizadas quando elas são razões específicas para diferentes pessoas, como o autointeresse. Um acontecimento seria melhor no sentido imparcial se todos temos razões imparciais mais fortes para querer que certa coisa aconteça. Por outro lado, um acontecimento seria melhor no sentido personalizado se nós temos razões autointeressadas mais fortes de querer que isso aconteça. 

De acordo com os imparcialistas, todas as razões são imparciais, visto que elas são razões para alcançar objetivos comuns. Alguns imparcialistas são Consequencialistas de Atos, para os quais o fim último de toda ação deve ser que as coisas se saiam o melhor possível de um ponto de vista imparcial. Segundo os personalistas, por outro lado, todas as razões são relativas às pessoas. Por fim, de acordo com os dualistas, nós temos tanto razões imparciais quanto razões personalistas. Henry Sidgwick aceitava uma forma extrema de dualismo, enquanto Thomas Nagel (no começo) e Kataryna de Lazari-Radek & Peter Singer defendem uma visão imparcialista. Thomas Nagel, no entanto, posteriormente passou a defender uma forma de dualismo. A melhor posição parece ser uma forma de dualismo, como em Thomas Nagel e Sdgwick, que inclua defender que o sofrimento importa no sentido de que todos temos razões imparciais para nos importarmos com todo sofrimento. 

No dualismo extremo de Sidgwick, entretanto, o fato de termos razões imparciais e razões personalizadas que entram em conflito e que são incomparáveis traria como consequência o problema profundo de que não haveria verdades sobre o que temos maior razão em fazer. Thomas Nagel parece correto em rejeitar essa visão, já que algumas razões imparciais podem decisivamente se sobrepor a razões personalizadas conflitantes. Por exemplo, a razão imparcial para uma pessoa salvar a vida de um estranho é maior do que sua razão personalizada de evitar um pequeno dano. Em alguns casos, no entanto, uma pessoa pode não ter uma razão decisiva por apenas um só modo de agir, por exemplo, uma pessoa pode ter razões suficientes tanto para salvar a própria vida quanto a vida de cinco ou quinhentos estranhos.  

Nagel também parece estar correto em defender que possuímos algumas razões personalizadas e imparciais que não são fornecidas, pelo menos não completamente, por fatos sobre o nosso próprio bem-estar ou de outros. Isso envolve, por exemplo, as razões que temos para descobrir verdades ou preservar a beleza. Possuímos, também, ao mesmo tempo, razões imparciais para cuidar de nossos filhos e buscar uma distribuição mais equilibrada de bens entre as pessoas.  

De acordo com a Tese Tudo ou Nada, se alguém tem uma razão personalizada de querer que algo aconteça, todos possuem uma razão imparcial correspondente, mas talvez mais fraca, de desejar que isso aconteça. Thomas Nagel denominou como razões objetivas aquelas que são imparciais no sentido de que elas dão a todos os mesmos objetivos. Posteriormente, Nagel, no entanto, ao rejeitar o imparcialismo, também rejeitou a Tese Tudo ou Nada. Nagel defende que temos dois tipos de razões personalizadas. Quando nós temos razões personalizadas para tentar alcançar certos objetivos bons, outras pessoas possuem razões imparciais correspondentes de querer e nos ajudar para que alcancemos esses objetivos. Contudo, para Nagel, também haveria razões puramente personalizadas, que seriam aquelas que não dariam a outras pessoas razões imparciais correspondentes.  

A rejeição de Nagel da Tese Tudo ou Nada, entretanto, foi um equívoco. Mesmo se formos dualistas sobre razões, não devemos defender que haja razões puramente personalizadas. O que Nagel deveria ter defendido era apenas que, em muitos casos, razões imparciais correspondentes poderiam ser sobrepostas por outras razões conflituosas. Assim, podemos adotar uma visão chamada de Universalismo, segundo a qual, todos temos razões para nos importarmos com as mesmas coisas. Assim, poderíamos assumir ao mesmo tempo uma Tese Tudo ou Nada, segundo a qual se um evento seria bom para alguém por contribuir para o seu bem-estar, todas as pessoas possuem pelo menos alguma razão de querer que esse evento aconteça e que, dado isso, todos, então, temos razões de nos importarmos com as mesmas coisas (universalismo). 

 

II. CONFLITO DE RAZÕES  

 

Duas visões pareceram ser igualmente verdadeiras, a de que o nosso próprio bem é um objetivo racional supremo e que o bem universal é nosso objetivo racional problema. No entanto, a possibilidade desses dois objetivos entrarem em conflito foi considerado por Sidgwick o problema mais profundo da ética. De acordo com alguns defensores do Egoísmo racional, nós temos maior razão em fazer o que quer que seja melhor para nós mesmos. Segundo alguns defensores do Imparcialismo racional, por outro lado, nós temos maior razão em fazer o que quer que seria imparcialmente melhor para todos. Essas duas posições podem ser ambas verdadeiras e em um universo racional, segundo Sidgwick, nosso próprio bem jamais entraria em conflito como bem universal. Mas, como Sigdwick relutantemente concluiu, nosso universo não é racional. 

No entanto, que em situações de conflito, devemos tanto buscar o nosso próprio bem quanto o bem universal, seria uma contradição. De acordo com o Dualismo da Razão Prática de Sidgwick, nós temos maior razão para fazer o que quer que faria as coisas se saírem imparcialmente melhores, a menos que algum outro ato seja o melhor para nós mesmos, nesse caso, nós temos razões suficientes para agir de qualquer uma das duas formas. Contudo, formulado assim, isso não é uma contradição, já que poderia ser razoável que agir de qualquer um dos dois modos fosse racional.  No entanto, para Sidgwick isso seria um problema, já que a razão deveria nos fornecer um caminho definido do que fazer. 

Sidgwick também coloca o conflito em termos de uma relação entre dever (aquilo que temos razões imparciais suficientes de fazer) e autointeresse (aquilo que seria o melhor para nós mesmos). Assim, de acordo com o que podemos chamar de Dualismo de Dever e Autointeresse de Sidgwick, quando nós temos um dever de agir de uma determinada maneira, mas um outro ato seria melhor para nós mesmos, nós teríamos razões suficientes para agir de ambos os modos. Novamente, formulado assim, não há uma contradição aqui, mas para Sidgwick esse dualismo poderia comprometer a ideia de moralidade. 

Kataryna de Lazari-Radek & Peter Singer sugeriram uma solução ao problema de Sidgwick, usando um argumento evolucionário. Segundo eles, a intuição de que devemos buscar nosso próprio interesse pode ser explicado em termos evolutivos enquanto a intuição de que devemos buscar o bem universal de forma imparcial não parece ser algo que poderia ser favorecido pela evolução. Assim, visto que a intuição da imparcialidade não pode ser explicada como um mero produto evolutivo, ela parece ser uma intuição moral mais evidente do que a busca pelo autointeresse e, portanto, eticamente a imparcialidade deve ser preferida ao autointeresse. Esse argumento evolutivo, no entanto, não é conclusivo. 

Um outro argumento contra a ideia de que temos maior razão para fazer o que é do nosso próprio interesse é que, de acordo com o Egoísmo racional, devemos dar o mesmo peso a todas as partes de nossa vida, uma mera diferença de quando, por exemplo, passaremos por certa dor não é uma diferença em quanto essa dor é ruim. Mas se isso é verdade, então se deveria assumir que uma mera diferença de quem está passando por certa dor não é uma diferença em quanto essa dor é ruim. Esse argumento, no entanto, também não é conclusivo. A distinção entre diferentes momentos no tempo pode ser relevantemente diferente da distinção entre diferentes pessoas. A separabilidade entre as pessoas é considerada um fato fundamental da ética e muitos de nós teria dificuldades em aceitar que não tenhamos razões especiais em nos preocuparmos com nosso próprio bem-estar. 

Há, no entanto, uma outra maneira de responder ao problema colocado por Sidgwick, que consiste em poder comparar razões em termos de força. Algumas razões autointeressadas podem ser sobrepostas por razões imparciais, mas quando um ato for muito bom para nós mesmos, podemos ter às vezes razões suficientes para agir errado (contra o nosso dever imparcial). De acordo com o Egoísmo racional forte, nós sempre temos razões decisivas de fazer o que é melhor para nós mesmos. Por outro lado, de acordo com o Moralismo racional forte, nós sempre temos razões decisivas de fazer o nosso dever, não importa quão fraco seja um dever ele sempre irá se sobrepor ao autointeresse. Por sua vez, de acordo com Sidgwick, nós nunca temos razões decisivas de fazer nosso dever se esse ato seria ruim para nós mesmos. Uma visão defensável está entre esses extremos. Nem o autointeresse nem razões morais são sempre decisivas. 

 

III. RAZÕES PARA AGIR ERRADO 

 

De acordo com o argumento a favor da ambivalência moral:  

(1) Nós poderíamos frequentemente querer que as coisas se saiam do melhor modo possível; 

(2) Seria frequentemente melhor se algumas pessoas agissem errado. 

(3) Logo, nós poderíamos frequentemente querer racionalmente que as pessoas ajam errado. 

 

Se aceitarmos a conclusão desse argumento, não seríamos céticos morais, já que ainda acreditaríamos que seria errado para algumas pessoas fazer o que poderíamos racionalmente querer que elas fizessem. Entretanto, isso faria com que tivéssemos sentimentos confusos em torna da moralidade. Consequencialistas de Atos não poderiam usar esse argumento, já que para eles, quando algum ato fazem as coisas se saírem do melhor modo, isso tornaria impossível que esse ato seja errado. Podemos chamar, no entanto, de Consequencialismo Reverso, a posição segundo a qual quando algum ato seria errado, o caráter ruim desse ato tornaria impossível que esse ato fizesse as coisas se saírem do melhor modo. Essa visão inverte, pois, a relação entre o caráter ruim de um ato e seu caráter de ser errado. 

É útil distinguir aqui dois tipos de caráter ruim de um ato: (i) caráter ruim deôntico: é quando um ato é ruim por ser errado; (ii) caráter ruim não-deôntico: é quando um ato é ruim por outras razões que não por ser errado. De acordo com o Consequencialismo Reverso, nenhum ato errado poderia fazer as coisas se saírem do melhor modo porque o caráter ruim deôntico sempre é pior do que qualquer quantidade de mal não-deôntico. No entanto, essa posição pode gerar uma implausibilidade. Suponha que um policial saiba que ao matar uma pessoa inocente esse ato iria impedir dois policiais de matarem duas pessoas inocentes cada um. Nesse caso, um ato ruim em sentido deôntico iriam fazer as coisas se saírem melhores (em sentido deôntico e não-deôntico) por impedir dois atos ruins (em sentido deôntico). Assim, o Consequencialista Reverso teria que admitir que um ato errado poderia fazer as coisas se saírem melhores. 

Diante disso, um Consequencialista Reverso teria que revisar sua posição, adotando a tese de que algumas vezes pode ser melhor agir errado, mas somente quando esse ato errado serve para impedir outros atos errados. No entanto, essa visão é difícil de aceitar, pois parece haver outros casos em que é melhor agir errado. Retornemos, agora, ao argumento da ambivalência moral: 

(1) Nós poderíamos frequentemente querer que as coisas se saiam do melhor modo possível; 

(2) Seria frequentemente melhor se algumas pessoas agissem errado. 

(3) Logo, nós poderíamos frequentemente querer racionalmente que as pessoas ajam errado. 

 

Consequencialistas de Atos rejeitam a premissa 2 ao defender que nenhum ato que faria as coisas se saírem melhores poderia ser errado. Alguém poderia defender, entretanto, que há apenas poucos casos em que agir errado seria melhor. Assim, seria apenas em casos excepcionais que iríamos querer que as pessoas agissem errado. No entanto, seria possível defender que, embora em casos excepcionais seja racional agir errado, isso não significa que, mesmos nesses casos, devemos desejar que nós mesmos ajamos errado, mas ainda seria verdade que poderíamos frequentemente desejar que outras pessoas agissem errados. Essa conclusão, no entanto, também parece comprometer em alguma medida moralidade. 

Algumas pessoas usam o termo “errado” no sentido daquilo que nunca temos razões suficientes para fazer, se esse for o sentido de errado, então por definição nunca temos razões suficientes para fazer o que é errado, mas isso não evitaria o problema, já que apenas seria uma afirmação trivial. A menos que sejamos Consequencialistas de Atos, temos de admitir que às vezes temos razões suficientes para agir errado. Assim, a questão que se coloca é se casos em que razões não-morais podem se sobrepor razões morais. 

 

IV. PRINCÍPIOS DEONTOLÓGICOS 

 

É comum que se defenda que nossos deveres de não prejudicar o outro sejam mais fortes do que nossos deveres de beneficiar os outros. Dizemos que um de dois deveres é mais forte no sentido de custo requerido quando seria moralmente requerido sofrer grandes custos, se necessário, para cumprir esse dever. Por outro, dizemos que um de dois deveres é mais forte no sentido de conflito de dever quando esse dever se sobreporia ao outro em caso de conflito. De acordo com o que pode ser chamado de Princípio do Dano de Custo Requerido, nossos deveres de não prejudicar são mais fortes no sentido de custo requerido do que nossos deveres de salvar pessoas de serem prejudicadas. Segundo esse princípio, seria frequentemente errado prejudicar alguém mesmo que esse fosse nosso único meio de evitar que nós mesmos sofrêssemos grande dano, no entanto, não seria moralmente requerido salvar a vida de um estranho se isso custasse de nós mesmos mesmo que um pequeno dano. 

Podemos distinguir, ainda, dois tipos de discordância moral. Duas visões morais discordam no sentido de diferença quando uma dessas visões requer certos atos que a outra visão não requer, mas permite. Por outro lado, duas visões discordam no sentido de conflito quando uma dessas visões requer certos atos que a outra condena. Em suas visões sobre a forca do custo requerido em salvar pessoas de sofrerem dano, o Consequencialismo de Atos e a Moralidade do Senso Comum, diferem, mas não estão em conflito. Essa discordância, portanto, não dá base suficiente para o ceticismo moral em relação a uma ética objetiva e à convergência moral.  

Consideremos, por exemplo, alguns princípios sobre o custo requerido em salvar pessoas de sofrerem dano. De acordo com uma visão amplamente aceita chamada Princípio do Conflito de Dever em relação ao Dano, seria frequentemente errado impor dano sobre alguém mesmo se esse ato fosse a única maneira pela qual poderíamos salvar várias outras pessoas de danos similares, ou de salvar alguém de um dano ainda maior. No entanto, comparado com nosso dever de salvar pessoas de sofrerem dano, nossos deveres de não causar danos aos outros pode ser muito mais forte no sentido de custo requerido, mas isso não significa que esses deveres sejam muito mais fortes no sentido de conflito de dever. Há diversos casos, por exemplo, em que a única maneira em que poderíamos salvar as vidas de muitas pessoas seria matando uma pessoa e em alguns desses casos isso poderia ser o nosso dever.  Nosso dever de nunca matar alguém não tem prioridade absoluta sobre o dever de salvar a vida de outras pessoas.  

Contudo, de acordo com o Princípio dos Efeitos Colaterais e dos Meios, embora algumas vezes seja justificado salvar a vida de várias pessoas de uma maneira que sabemos que irá gerar, como efeito colateral, a morte de uma outra pessoa, seria errado matar uma pessoa como um meio de salvar várias outras pessoas. No entanto, parece que em alguns casos, em que a vida de milhares de pessoas está em risco, seria absurdo concluir que não podemos matar uma pessoa para salvar a vida de milhares de outras.  Alguns, como Francis Kamm, defendem, no entanto, que fazer isso, iria ferir o princípio kantiano de não tratar as pessoas como meramente meios. Francis Kamm defende que dado nosso alto status como fins em si mesmos, seria errado para nós sermos mortos como um meio de salvar a vida de várias outras pessoas. Contudo, poderíamos defender que dado nosso alto satutus como fins em si mesmos seria errado para nós sermos mortos como um efeito colateral de salvar a vida de outras pessoas.  

No entanto, a Fórmula da Humanidade de Kant pode ser lida considerando que não tratamos alguém meramente como um meio de ou (i) nosso tratamento dessa pessoa é governado ou guiado de modo suficientemente importante por alguma crença ou preocupação moral relevante ou; (ii) nós escolhemos ou escolheríamos de modo relevante sofrer algum grande dano por causa dessa pessoa. Quando as pessoas discutem sobre não tratar pessoas como meramente um meio elas muitas vezes deixam de fazer distinções importantes. Uma é a distinção entre causar dano a alguém como um meio, de um lado e, de outro lado, tratar essa pessoa meramente como um meio. Por exemplo, se alguém causa danos a uma pessoa como legítima defesa, esse alguém não está tratando essa pessoa meramente como um meio.  

Por fim, algumas pessoas não causariam danos a outras pessoas para salvar vidas, porque acreditam que não devemos interferir no caminho natural das coisas, o que poderia ser chamado de Princípio da Inércia Moral. Esse princípio, no entanto, não pode ser suficientemente justificado em ética, não há nada que justifique que não podemos interferir no curso das coisas. Por outro lado, poderíamos adotar o chamado Princípio das Ameaças Não-intencionadas, segundo o qual, quando há uma ameaça não-intencionada contra a vida das pessoas, como um incêndio, inundação ou a vinda de um asteroide ou bonde, nós podemos justificadamente fazer o que for preciso para que menos pessoas morram. No entanto, há muitos casos fora da esfera desse princípio, que são aqueles em que uma ameaça não-intencionada não está em questão. 

De qualquer modo, o ponto de discutir esses princípios é considerar que não necessariamente a Moralidade do senso comum e o Consequencialismo de Atos estão em conflito, já que princípios morais amplamente aceitos podem ser justificados ou refinados de modo que sejam consistentes também com teses do Consequencialismo de Atos. Se cada um dos lados for convencido a reformular seus princípios, os desacordos podem ser resolvidos. Muitas vezes, partindo de princípios diferentes que as pessoas discordam, é possível reformulá-los de modo que todos ou quase todos no final venham a convergir, pelo menos na maioria dos pontos. 

 

V. CONSEQUENCIALISMO DE ATOS E MORALIDADE DO SENSO COMUM 

 

David Ross é um dos defensores de uma visão moral pluralista que é uma versão da Moralidade do Senso Comum, que ele acredita estar em oposição ao Consequencialismo de Atos. Ross defende que é frequentemente errado tratar pessoas de certas maneiras, como enganá-las, coagi-las ou quebrar promessas feitas a elas, mesmo quando esses atos fizessem as coisas se saírem melhor. No entanto, Ross acreditava haver exceções em que esses atos seriam permissíveis caso os efeitos fossem suficientemente bons. Ross, acredita, no entanto, que essa sua visão está em desacordo com o Consequencialismo de Atos. 

No entanto, há um tipo de Consequencialismo de Atos chamado Consequencialismo de Atos de Ações Inclusas, alguns dos proponentes dessa visão argumentam que seria intrinsicamente ruim tratar pessoas de certas formas, como enganá-las, coagi-las ou quebrar promessas feiras as elas. Essas ações seriam intrinsicamente ruins no sentido de que elas são ruins mesmo quando elas não produzem efeitos ruins. Um Consequencialista de Atos de Ações Inclusas argumentaria que, visto que quebrar uma promessa seria uma ação intrinsicamente ruim, tal ação faria com que as coisas se saíssem piores a não ser que o caráter ruim dessa ação fosse balanceado ou superado pela bondade de seus efeitos. 

É importante lembrar aqui dos dois sentidos em que uma ação pode ser ruim: (i) sentido deôntico: uma ação é ruim porque ela é errada; (ii) sentido não-deôntico: uma ação é ruim por outras razões que não ser errada. Quando um Consequencialista de Atos de Ações Inclusas argumenta que certas ações são intrinsicamente ruins, ele está usando ruim no sentido não-deôntico. Quando esse caráter ruim não-deôntico torna essas ações erradas, isso também as tornas ruins em sentido deôntico. Isso significa que não há nenhuma circularidade aqui em dizer que o fato dessas ações serem intrinsicamente ruins as torna erradas, porque o termo ruim está sendo usado em sentidos diferentes. 

O Consequencialismo de Atos de Ações Inclusas não contradiz uma Moralidade do Senso Comum. Mesmo que Consequencialistas de Atos e defensores da Moralidade do Senso Comum possam, por vezes, divergir sobre as razões pelas quais um ato é errado, eles podem convergir em quais atos são errados. Há muito menos discordâncias entre Consequencialistas de Atos e defensores da Moralidade do Senso Comum do que geralmente se supõe. 

 

VI. EM DIREÇÃO A UMA TEORIA UNIFICADA  

 

Muitos de nós acreditam que quando nossas ações afetariam estranhos, devemos fazer o que tornariam as coisas melhores. No entanto, muitos de nós também acredita que devemos salvar nossos filhos ou que seria permitido salvar a nós mesmos ao invés de muitos estranhos, acredita-se, ainda, que nós deveríamos dar muitos outros benefícios aos nossos parentes próximos ao invés de estranhos. Muitos de nós também acredita que temos outros deveres personalizados, como pagar nossas dívidas, mesmo quando esses atos fariam as coisas se saírem melhores. Essas crenças parecem estar em direto conflito com o Consequencialismo de Atos.  

No entanto, dentro do próprio Consequencialismo de Atos poderia ser possível argumentar que seria melhor que as pessoas não fossem Consequencialistas de Atos. Talvez as coisas se saíssem melhores se as pessoas não acreditassem no Consequencialismo de Atos. Isso não mostra que o Consequencialismo de Atos seja falso, mas é uma consequência curiosa que uma visão conclua que seria melhor se as pessoas acreditassem que ela é falsa. No entanto, há outras formas de Consequencialismo que não o Consequencialismo de Atos. 

De acordo, por exemplo, como o Consequencialismo de Regras, ao invés de agir de modos otimizantes (que façam as coisas se saírem do melhor modo), devemos seguir regras otimizantes. Regras morais são comandos ou imperativos e, como tais, não podem ser verdadeiras ou falsas, contudo, pode ser verdadeiro que devemos fazer o que essas regras nos comandam. Alguma regra é otimizante quando não há nenhuma regra conflitante que, se aceita e seguida, fariam as coisas se saírem melhores. 

Quando um Consequencialista de Regras se pergunta quais regras são otimizantes, alguns deles consideram apenas o que aconteceria se seguíssemos com sucesso essas regras, podemos chamar essa versão de Consequencialismo de Regras de Observância. Outros Consequencialistas de Regras se perguntam o que aconteceria se aceitássemos certas regras e tentássemos segui-las. Podemos chamar essa visão de Consequencialismo de Regras de Aceitação. Essa última posição captura melhor as consequências reais das regras e, portanto, é a visão mais relevante aqui. 

Há, ainda, o que podemos chamar de Consequencialismo de Motivações, segundo o qual, devemos ter as motivações que são otimizantes, isto é, motivos que se tivermos fará as coisas se saírem melhores. Essa visão é semelhante a concepções em Ética das virtudes que focam nos traços de caráter ou disposições que devemos ter para alcançar o florescimento.  O Consequencialsimo de Regras pode ser combinado com o Consequencialismo de Motivações, de modo que podemos ter o Consequencialismo de Motivações e Regras, segundo o qual, nós devemos ter motivações otimizantes para aceitar e tentar seguir regras otimizantes,  

O Consequencialismo de Atos de um lado e o Consequencialismo de Regras e Motivações de outro, são incompatíveis. O Consequencialismo de Regras e Motivações, entretanto parece ser uma posição melhor por duas razões. Primeiro, quando consideramos atos que fariam as coisas se saírem um pouco piores para cada uma de muitas pessoas (de maneira quase imperceptível), o motivo pelo qual esses atos são errados é melhor explicado pelo Consequencialismo de Regras e Motivações. Segundo, o que mais importa é se realmente as coisas se sairão melhores. Quanto a isso, pode-se argumentar: 

(1) As coisas se saíram melhores no todo se nós tivéssemos as motivações otimizantes e aceitássemos e tentássemos seguir regras otimizantes; 

(2) O que mais importa do ponto de vista ético consequencialista é se as coisas realmente se sairão melhores no todo. 

(3) Portanto, devemos ter tais motivações e devemos tentar seguir essas regras. 

Para tentar identificar essas regras, poderíamos começar com os princípios da moralidade do senso comum e nos perguntarmos se podemos dar a esses princípios melhor justificação e refiná-los. Poremos levantar a hipótese de que esses princípios refinados da moralidade do senso comum seriam os mesmos princípios cuja aceitação fariam as coisas se saírem melhores. Desse modo, uma abordagem da Moralidade do Senso Comum Refinada iria coincidir com o Consequencialismo de Regras e Motivações (que também pode se aproximar de abordagens da Ética das Virtudes), levando a uma teoria moral unificada.  

Além disso, uma teoria moral unificada faz convergir a Ética Kantiana, o Contratualismo de Scalon e o Consequencialismo de Regras no Princípio Tríplice, segundo o qual: “Uma ação é errada somente quando não é permitida por algum princípio que promove o que é melhor e desejável universalmente e que não pode ser razoavelmente rejeitado”. Uma teoria moral unificada também mostraria que podemos fazer convergir visões como o naturalismo fraco, não-naturalismo e expressivismo quasi-realista, como em uma abordagem cognitivista expressivista naturalista não-realista, segundo a qual juízos morais podem ser verdadeiros em sentido significativo ao mesmo tempo que expressam atitudes morais que podem ser ou não acertadas, e que verdades morais são irredutíveis a fatos naturais sem com isso terem implicações ontológicas fortes.  

 

 

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Bruno dos Santos Queiroz

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