TRATADO SOBRE O LIVRE-ARBÍTRIO - RALPH CUDWORTH (RESUMO)
I. ARGUMENTOS DOS QUE NEGAM O LIVRE-ARBÍTRIO
Somos claramente inclinados pelo instinto da natureza a pensar que há algo como um livre-arbítrio em nosso poder, ou seja, uma capacidade própria (ainda que dependente do Deus Todo-Poderoso), e que não somos completamente passivos em nossas ações, nem determinados por uma necessidade inevitável em tudo o que fazemos. Primeiramente, não atribuímos o mal das ações perversas de todos os homens a Deus, o Criador e Autor deles, da mesma maneira como atribuímos os defeitos de um relógio ao relojoeiro que o fabricou. Em segundo lugar, o mesmo sentido dos instintos da natureza aparece, ainda mais claramente, nas atitudes dos homens, que se acusam e se condenam por suas próprias ações. Por fim, os seres humanos também possuem um senso de justiça retributiva, punitiva e vingativa, que não se baseia apenas na misericórdia, mas na crença de que merecem ser aplicadas punições sobre os infratores por suas ações injustas e ilegais.
Dado isso, é natural que os moralistas, ao observar as ações livres e voluntárias dos homens como sendo culpáveis em um sentido peculiar, chamem o mal dessas ações de “mal de culpa” (malum culpae), um mal de falha, em distinção de outros males que são sem culpa, ou seja, daqueles em que o próprio agente não foi propriamente a causa. Assim, de acordo com os instintos de nossa natureza, podemos concluir que há algo, portanto, em nosso poder, e a necessidade absoluta não governa todas as ações humanas, mas há algo de liberdade contingente nelas.
Apesar disso, há aqueles que, ao longo do tempo, argumentaram que não existe tal coisa como "livre-arbítrio", nada em nosso poder, nenhuma liberdade contingente nas ações humanas. Segundo esses, tudo o que é feito pelos homens foi absolutamente e inevitavelmente necessário. E isso por dois motivos diferentes: primeiro, porque, segundo alguns, essa liberdade contingente é uma ideia absolutamente incompreensível e impossível de existir na natureza; em segundo lugar, porque, embora tal coisa seja possível e realmente existente, sua essência seria peculiar apenas a Deus Todo-Poderoso, de modo que Ele seria o único Ser autodeterminante, enquanto as ações de todas as criaturas seriam tornadas necessárias por Seus decretos desde a eternidade. As razões alegadas para afirmar que não existe na natureza algo como uma liberdade contingente ou livre-arbítrio são principalmente as seguintes:
(1) Nada pode mover a si mesmo: Tudo o que é movido é movido por algo distinto de si mesmo, e aquilo que move o faz necessariamente.
(2) Nada pode mudar ou determinar a si mesmo: Mesmo que se admita que algo mova a partir de si, tal coisa não pode agir sobre si mesma ou determinar suas próprias ações, pois o mesmo objeto não pode ser, ao mesmo tempo, agente e paciente.
(3) Nada ocorre sem uma causa: Tudo o que acontece tem uma causa suficiente anterior, e, como argumenta Hobbes, "toda causa suficiente é uma causa necessária."
(4) A vontade é determinada pela razão do bem: Toda deliberação é guiada pela razão do bem ou pela aparência do maior bem. Como essas razões e aparências residem no entendimento, elas não são arbitrárias, mas necessárias, o que implica que todas as deliberações e escolhas também sejam necessárias.
(5) O que é indiferente em si mesmo não pode se determinar: Algo que seja indiferente por sua própria natureza permanecerá para sempre em um estado de indiferença, sem movimento, deliberação ou ação, a menos que algo externo o mova.
(6) Hobbes e a necessidade das proposições disjuntivas: Hobbes argumenta, de forma sofística, que todas as proposições disjuntivas carregam uma necessidade, o que reforça a ideia de que não há liberdade contingente.
Por sua vez, as razões apresentadas para sustentar que, embora possa existir algo como uma liberdade contingente na natureza, seu exercício deve ser exclusivo da Divindade, geralmente são as seguintes:
(7) Autodeterminação contradiz a dependência criatural: Supor que qualquer criatura possa determinar a si mesma é afirmar sua independência em relação ao Criador, o que contradiz a ideia de Deus como a causa suprema e soberana. Disso decorre que Deus deve ser o único determinador de todas as ações no universo, sendo, de fato, o único verdadeiro agente.
(8) Incompatibilidade com a presciência divina: Se existisse liberdade contingente em agentes criados, não seria possível haver presciência divina de eventos futuros, pois a contingência tornaria esses eventos imprevisíveis.
(9) Presciência implica necessidade: Ainda que se admitisse a coexistência de presciência divina e liberdade contingente das vontades humanas, a própria presciência implicaria a necessidade dessas ações, pois, para serem conhecidas antecipadamente, deveriam ser determinadas.
(10) Risco de Pelagianismo: Afirmar uma liberdade de vontade contingente abriria espaço para o Pelagianismo, negando a necessidade da graça divina, já que essa liberdade seria baseada na ideia de um poder autônomo, independente da ação de Deus.
(11) Injustiça na condenação eterna: Parece absurdo e injusto que os seres humanos sejam condenados eternamente com base em um ato contingente de sua própria vontade, pois a contingência implicaria uma arbitrariedade incompatível com a justiça divina.
II. ARGUMENTOS A FAVOR DO LIVRE-ARBÍTRIO
No entanto, não é verdade, ou seja, que todas as coisas possuem uma necessidade interna ou que nada pode agir de forma diferente da maneira como sofre ou é influenciado, mas, pelo contrário, há alguma liberdade contingente na natureza e que os homens e outras criaturas racionais podem adicionar ou contribuir com algo próprio para inclinar a balança. Isso é claro, pois, não se pode negar que existem, e devem existir, muitos casos em que vários objetos apresentados à nossa escolha ao mesmo tempo são tão iguais ou exatamente semelhantes que não pode haver qualquer razão ou motivo na compreensão que determine necessariamente a escolha de um em detrimento do outro, como por exemplo, ter de escolher uma entre duas joias idênticas.
Parece que os seres racionais, ou almas humanas, podem ir além das naturezas necessárias, ou seja, podem ultrapassar o que meramente sofrem ou recebem passivamente. Elas têm a capacidade de mudar a si mesmas ativamente e de se determinar de maneira contingente ou fortuita, quando não estão necessariamente determinadas por uma causa antecedente. Aqui, portanto, reside uma grande diferença entre as coisas corpóreas e incorpóreas. Corpos, que não podem mover a si mesmos, jamais podem agir além do que sofrem ou recebem passivamente. Mas os seres racionais e as almas humanas, estando em equilíbrio em relação às razões ou motivos, não estão perpetuamente, por necessidade, sempre obrigados a agir de determinada maneira. Aqui, portanto, há uma causa suficiente que não é necessária. Aqui está algo que muda a si mesmo, ou age sobre si mesmo, uma coisa que, embora indiferente em relação à razão, ainda pode determinar-se e superar essa indiferença passiva.
Não pode ser negado por nenhum teísta que certa liberdade, ao menos, deve ser reconhecida como pertencente ao Deus Todo-Poderoso. No entanto, essa liberdade arbitrária e contingente da Divindade é levada muito além por aqueles que a estendem à necessidade de todas as ações e volições das criaturas, por meio de uma predeterminação divina de tudo. Alguns, no entanto, negam a liberdade divina ao afirmar que Deus só pode fazer o que é melhor. É, no entanto, uma opinião absurda dizer que Deus é obrigado a fazer o melhor. Pois Deus não está sujeito a nenhuma lei além da perfeição de sua própria natureza. Contudo, pode-se concluir com razão que Deus não pode agir contrariamente à lei divina de suas próprias perfeições, isto é, Ele não pode fazer nada de forma insensata ou injusta.
Mas essa liberdade contingente de autodeterminação, quando há perfeita igualdade nos objetos e, ainda assim, ocorre uma autodeterminação fortuita, não é propriamente o que chamamos de livre-arbítrio, o livre-arbítrio é a capacidade intrínseca que serve como fundamento para louvor ou censura, para elogio ou reprovação. Tal liberdade da vontade (quando há uma desigualdade nos objetos) de se determinar como melhor ou pior, e assim merecer louvor ou culpa, é indiscutivelmente evidente, tanto pelas noções comuns da humanidade quanto pelo senso de consciência em todos os homens, acusando-os ou justificando-os.
A psicologia comum entende que na alma racional existem duas faculdades, entendimento e vontade, nas quais o entendimento não tem nada de vontade, e a vontade nada de entendimento. E a essas duas faculdades são atribuídas as ações de intelecção e volição: o entendimento entende, e a vontade deseja. No entanto, segue-se duas divisões: (i) intelectualismo: é a tese de que a vontade só pode ser movida pelo intelecto que, ao julgar algo como bom, necessariamente move a vontade; (ii) voluntarismo: tese de que a vontade é capaz de mover a si mesma e que, o fato de o intelecto apresentar algo à vontade como bom, é apenas a condição pela qual a vontade move a si mesma. Os intelectualistas apresentam os seguintes argumentos:
(1) Argumento do Início das Ações: o entendimento precisa ser o princípio e o primeiro motor de todas as ações, já que não pode haver desejo do desconhecido, só se pode desejar aquilo que o intelecto entende.
(2) Argumento da Independência do Entendimento: o entendimento reage necessariamente aos seus próprios objetos, sem qualquer envolvimento da vontade para determinar ou especificar sua ação ou exercício, como a vontade é cega, ela precisa se anexar ao entendimento, seja para exercer ou especificar o objeto.
(3) Argumento do Juízo Moral e Prático: O entendimento julga necessariamente todas as coisas, não apenas em relação à verdade ou falsidade das coisas especulativas, mas também à elegibilidade das práticas, ou seja, o que deve ser feito ou não feito.
(4) Argumento da Subordinação da Vontade: A cega faculdade da vontade sempre segue a última decisão prática do entendimento necessário.
Mas há outros que, a fim de explicar o fenômeno da liberdade da vontade, pensam ser necessário supor que, antes de tudo, a vontade, embora cega, ainda determina o entendimento, tanto para o exercício quanto para a especificação dos objetos. E embora o entendimento, sendo necessário em seus juízos, apenas proponha à cega vontade o que ele pensa que deve ser feito, ou seu último juízo prático no caso, e nada mais, apenas para atrair e incitar a vontade a agir. Mas, de fato, essa ação ou impulso da vontade, a vontade cega, permanece ainda livre e indiferente para fazer ou não fazer tal ou tal coisa, como se o entendimento não tivesse dado juízo algum no caso, e no final determina-se fortuitamente, sem levar em consideração o mesmo de nenhuma forma.
Mas, se essa psicologia for verdadeira, então ou não há liberdade alguma, pois, primeiro, se a vontade cega deve sempre seguir um ditado necessário do entendimento antecedente, então todas as volições e ações devem ser necessárias. No entanto, enquanto alguns outros desses filósofos, que defendem que a vontade deve, portanto, necessariamente seguir o último julgamento prático ou decisivo do entendimento necessário, porque é em si mesma uma faculdade cega, no entanto, para manter a liberdade, afirmam que essa faculdade cega da vontade deve, antes de tudo, mover e determinar o entendimento, tanto quanto ao seu exercício quanto aos objetos, isso é uma contradição manifesta em si mesma.
Contudo, se a vontade cega não seguir necessariamente o último ditado do juízo prático do entendimento necessário, mas ainda permanece indiferente e determina fortuitamente a si mesma, seja em conformidade com este ou de outra forma, então a liberdade da vontade será mera irracionalidade. Além disso, acontecerá em todo homem é que a vontade perpetuamente não só não sabe por que, mas também não sabe o quê.
Mas essa filosofia escolástica é manifestamente absurda e mero jargão escolástico. Pois atribuir o ato de intelecção e percepção à faculdade de entendimento, e os atos de vontade à faculdade de vontade, ou dizer que é o entendimento que entende, e a vontade que quer, isso é como se alguém dissesse que a faculdade de andar anda, e a faculdade de falar fala. De onde vem essa confusão inexprimível e absurdo incompreensível, da vontade tanto movendo primeiro o entendimento, quanto o entendimento movendo primeiro a vontade, e isso em um círculo infinito e sem fim. De modo que seria mais correto dizer que a faculdade de vontade deve necessariamente ser suposta para mover o entendimento de maneira consciente (ou sabendo o que faz), e a faculdade de entendimento mover a vontade de maneira voluntária, ou não sem vontade. Pois não há duas pessoas em nós, todos esses atos são atos de uma mesma alma.
Dentro do debate da liberdade da vontade, uma questão muito relevante levantada por Aristóteles a seguinte: “O que é aquilo que primeiro move na alma e coloca todas as outras engrenagens em movimento?” Se houvesse alguma faculdade da alma como uma vontade cega (o que é impossível), o conhecimento necessariamente teria que precedê-la para representar as coisas a ela. Caso contrário, não poderia fazer nada, a não ser após um estudo e deliberação cuidadosos, que Aristóteles chama de boulesis, desejo que envolve capacidades racionais complexas. O próprio Aristóteles conclui que esse desejo racional não pode ser o primeiro princípio motor na alma, pois isso exigiria considerar, reconsiderar e continuar considerando infinitamente. Além disso, o princípio de todas as ações, e, portanto, da própria intelecção, são os fins e os bens, já que tudo age em busca de algum fim ou bem. E, sobre os fins, Aristóteles corretamente observou que eles não são escolhidos, inventados ou criados por nós, mas existem na natureza e se impõem a nós.
Portanto, concluímos que aquilo que primeiro nos move e é a fonte e o princípio de toda ação deliberativa, não pode ser outra coisa senão um desejo constante, inquieto e ininterrupto de amor pelo bem enquanto tal e pela felicidade. Agora, este amor e desejo pelo bem, como bem em geral, e pela felicidade, que atravessa continuamente a alma, estimulando-a e provocando-a sem cessar, não é uma mera paixão ou emoção transitória, mas sim um princípio estabelecido e enraizado. É a própria fonte, origem e centro da vida. Trata-se de uma necessidade natural em nós, algo imutável e que permanece sempre o mesmo, em intensidade constante.
A próxima grande questão é: qual é o princípio governante ou determinante em nós? Não se pode supor que o princípio hegemônico ou governante em um ser humano seja totalmente desprovido de luz, percepção ou entendimento. Em seres pecadores, por exemplo, razão, entendimento e conhecimento, como tais, ou como uma natureza necessária, não podem ser o único princípio hegemônico ou governante, isso porque a razão, como tal, nunca pode agir de forma irracional; o entendimento, como tal, e percepções claras, nunca podem errar. Não existe algo como conhecimento falso, nem entendimento errôneo, nem o pecado pode ser o resultado da razão, do entendimento, de percepções claras e do conhecimento.
Podemos dizer, portanto, que o princípio governante em cada ser humano, e de fato aquilo que propriamente é nosso autodomínio ou livre arbítrio, é a alma, que compreende a si mesma em todos os seus interesses, habilidades e capacidades. A alma age como se estivesse em suas próprias mãos, dobrada sobre si mesma, possuindo o poder de se mover ou direcionar mais ou menos conforme a consideração e a deliberação. Ela resiste aos apetites inferiores que a desafiam, tanto em nome da utilidade, da razão e da moralidade, quanto em nome da autorreflexão, da atenção e da vigilância cuidadosa, como se estivesse constantemente em alerta.
Essa faculdade de autodomínio ou livre arbítrio, ou poder sobre si mesmo, que pertence ao princípio governante da alma, ou à alma como redobrada sobre si mesma e autocompreensiva, pela qual ela pode agir sobre si mesma, direcionar e aplicar esforços em maior ou menor grau, e, por meio da razão, julgar, querer e agir de maneiras diferentes, foi destinada por Deus e pela natureza para o bem. Este liberum arbitrium ou livre-arbítrio consiste em uma capacidade de se autogovernar, seja direcionando ou restringindo, e, consequentemente, determinando a si mesmo para melhor ou pior. Ele é a base para a atribuição de elogios ou censuras, louvor ou desaprovação, sendo também o objeto da justiça retributiva, seja remunerativa ou punitiva, recompensadora ou corretiva.
No entanto, esse livre-arbítrio não é uma perfeição pura, mas contém uma mistura de imperfeição. Por essa razão, não pode pertencer a Deus ou a um ser perfeito possuir um poder de se autoprojetar ou autolimitar, de se autodesenvolver e de se autodepreciar, de merecer louvor, elogio e recompensa por um lado. Como Aristóteles observou, tal característica não pertence propriamente a Deus, pois Ele é o Motor imóvel, e, muito menos, de merecer censura e punição. Como diz São Jerônimo: “Somente Deus é incapaz de pecar. Já que todas as outras coisas dotadas de livre-arbítrio possuem a capacidade de escolher, elas podem se inclinar em qualquer direção.” Deus possui liberdade perfeita, não livre-arbítrio.
III. RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES CONTRA O LIVRE ARBÍTRIO
Consideremos, agora, respostas às objeções levantadas contra a doutrina do livre-arbítrio:
Objeção (1): Nada pode mover a si mesmo: Tudo o que é movido é movido por algo distinto de si mesmo, e aquilo que move o faz necessariamente.
Resposta: Esta objeção reflete uma visão de causalidade externa, que sugere que nada pode iniciar seu próprio movimento ou mudança. No entanto, em relação à liberdade de vontade humana, essa visão pode ser desafiada pela ideia de uma causa interna ou autocausa. O conceito de "primeiro motor imóvel", defendido por Aristóteles, postula que deve existir uma causa que não seja movida por algo externo, mas que tenha a capacidade de mover a si mesma, o que abre espaço para o movimento da vontade humana. A vontade humana pode ser entendida como uma forma de autocausação, ou seja, a capacidade de determinar a si mesma para agir, sem ser movida externamente.
Objeção (2): Nada pode mudar ou determinar a si mesmo: Mesmo que se admita que algo mova a partir de si, tal coisa não pode agir sobre si mesma ou determinar suas próprias ações, pois o mesmo objeto não pode ser, ao mesmo tempo, agente e paciente.
Resposta: Essa objeção se baseia na dificuldade de pensar que o agente e o paciente possam ser a mesma coisa. No entanto, um ponto importante é que, no caso da liberdade humana, o ser racional pode ser tanto o agente (aquele que age) quanto o paciente (aquele que sofre a ação), sem contradição. Aristóteles já discutia a autonomia do agente racional, que é capaz de agir livremente com base em seu próprio julgamento. O ser humano, como um ser racional, pode ser ao mesmo tempo o agente e o paciente de suas próprias ações, pois sua liberdade de escolha não implica contradição. Assim como um ser humano pode mover seu corpo de maneira diferente em diferentes momentos (sem que isso seja necessariamente causado por uma cadeia de causas eternas), uma substância ou ser pode agir de maneira autônoma sem violar essa regra.
Objeção (3): Nada ocorre sem uma causa: Tudo o que acontece tem uma causa suficiente anterior, e, como argumenta Hobbes, "toda causa suficiente é uma causa necessária."
Resposta: A ideia de causa suficiente pode ser reconciliada com a liberdade humana, desde que se entenda que uma causa suficiente não implica necessidade absoluta. A ação humana pode ser causada por motivos ou razões que tornam a ação possível, mas não determinam de forma necessária e absoluta qual ação será tomada. A causa suficiente é a razão ou motivação para agir, mas isso não elimina a liberdade de escolha, pois o agente pode, com base em sua razão ou em sua vontade, decidir agir ou não agir. Esse tipo de causa é suficiente, mas não determinante no sentido estrito de necessidade absoluta.
Objeção (4): A vontade é determinada pela razão do bem: Toda deliberação é guiada pela razão do bem ou pela aparência do maior bem. Como essas razões e aparências residem no entendimento, elas não são arbitrárias, mas necessárias, o que implica que todas as deliberações e escolhas também sejam necessárias.
Resposta: Embora a razão do bem seja um fator importante nas deliberações humanas, isso não implica que todas as escolhas sejam determinadas de maneira necessária. Aristóteles já argumentava que, apesar da razão guiar as escolhas humanas, estas podem ser influenciadas por outras considerações, como desejos, paixões ou até contradições internas. O próprio Aristóteles já questionava se todas as aparências do "bem" são, de fato, necessárias ou inevitáveis. Ele argumenta que as escolhas humanas não são sempre determinadas de forma absoluta pelas razões ou aparências do bem, pois diferentes pessoas (ou até a mesma pessoa em diferentes momentos) pode agir de maneiras diferentes diante das mesmas circunstâncias. A ideia de necessidade absoluta nas escolhas humanas ignora a contingência que caracteriza a liberdade humana. Mesmo que a razão apresente a aparência do maior bem, o ser humano pode escolher de maneira livre agir ou não, dependendo de sua vontade, o que permite a liberdade de escolha em um contexto moral.
Objeção (5): O que é indiferente em si mesmo não pode se determinar: Algo que seja indiferente por sua própria natureza permanecerá para sempre em um estado de indiferença, sem movimento, deliberação ou ação, a menos que algo externo o mova.
Resposta: Esta objeção assume que tudo que é indiferente não pode mudar ou agir por si mesmo. No entanto, ao aplicar esse princípio à liberdade humana, podemos argumentar que a vontade humana não é indiferente em si mesma, mas tem uma tendência ou propensão para agir de acordo com seus próprios critérios, como razão, desejos ou juízos morais. A liberdade de vontade não depende de um movimento externo, mas da capacidade do sujeito racional de se autodeterminar. O ser humano, mesmo sem uma causa externa imediata, pode escolher livremente, desde que se mova de acordo com a ordem moral e a justiça divina.
Objeção (6): Hobbes e a necessidade das proposições disjuntivas: Hobbes argumenta, de forma sofística, que todas as proposições disjuntivas carregam uma necessidade, o que reforça a ideia de que não há liberdade contingente.
Resposta: A proposta de Hobbes de que todas as proposições disjuntivas têm uma necessidade embutida pode ser questionada com base na liberdade humana. Mesmo que as escolhas sejam apresentadas em termos de proposições disjuntivas, isso não implica que a escolha seja determinada de forma necessária. A liberdade humana permite que a escolha seja feita entre alternativas sem que uma delas seja forçosamente necessária. A ideia de liberdade contingente sugere que as escolhas humanas não são predeterminadas, mas podem ser feitas livremente, sem que a necessidade de uma proposição disjuntiva a torne inevitável.
Objeção 7: Autodeterminação contradiz a dependência criatural.
Resposta: A liberdade contingente não contradiz a dependência criatural porque o poder de autodeterminação dos seres criados é concedido pelo próprio Criador. Deus, como causa suprema, confere às criaturas racionais a capacidade de autodeterminação como parte de Sua ordem criacional. Negar essa liberdade contingente implicaria limitar a plenitude do poder divino, pois restringiria Sua capacidade de criar agentes com liberdade genuína. A autodeterminação não elimina a dependência da criatura em relação a Deus; ao contrário, expressa a perfeição da criação divina.
Objeção 8: Incompatibilidade com a presciência divina.
A presciência divina não torna os eventos contingentes imprevisíveis, pois o conhecimento divino transcende o tempo e abrange todas as possibilidades. Deus conhece os eventos contingentes em virtude de Sua natureza atemporal e onisciente, mas esse conhecimento não impõe necessidade aos eventos. Assim, a liberdade das criaturas é perfeitamente compatível com a presciência divina, já que Deus conhece as escolhas livres como livres e não como necessárias. Uma ação livre não acontece porque a presciência divina a previu, ao invés disso, a presciência divina prevê uma ação livre porque ela ocorrerá.
Objeção 9: Presciência implica necessidade.
A presciência divina não implica necessidade nas ações humanas, porque conhecer algo de antemão não equivale a causá-lo. O conhecimento de Deus é intuitivo e eterno, e Ele sabe quais ações ocorrerão, mas sabe que elas ocorrerão de forma contingente, de acordo com a liberdade da vontade humana. Esse argumento confunde a ordem lógica do conhecimento de Deus com a causalidade.
Objeção 10: Risco de Pelagianismo.
A liberdade contingente não implica Pelagianismo porque a liberdade humana continua dependente da graça divina. Sem a graça, os seres humanos não podem exercer sua liberdade de maneira ordenada ao bem supremo. A liberdade contingente é uma faculdade natural, mas sua orientação final para a beatitude requer a ação da graça. Reconhecer a liberdade contingente não nega a dependência contínua das criaturas em relação à providência e à assistência de Deus, mesmo os anjos dependem da graça divina.
Objeção 11: Injustiça na condenação eterna.
A justiça divina é perfeitamente compatível com a liberdade contingente, pois a liberdade não implica arbitrariedade. A condenação eterna resulta do uso livre e deliberado da vontade contra o bem supremo, não de decisões aleatórias. A liberdade contingente confere responsabilidade moral, e a justiça divina leva em conta as intenções e circunstâncias de cada escolha. Portanto, a punição não é arbitrária, mas justa, baseada no exercício consciente da liberdade.
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