LEIA TAMBÉM (CLIQUE NA IMAGEM)

ÉTICA QUASI-REALISTA - SIMON BLACKBURN (RESUMO)


O que se segue é um resumo da parte II do livro Essays in Quasi-realism, intitulada “Ethics” e que reúne os seguintes ensaios de Simon Blackburn: (1) Realismo Moral (6. Moral Realism); (2) Revisitando a noção de superveniência (7. Supervenience Revisited); (3) Teoria do Erro e Fenomenologia do Valor (8. Errors and the Phenomenology of Value), (4) Como ser um anti-realista ético (9. How To Be an Ethical Anti-Realist); (5) Respostas às críticas de Schueler ao projetivismo (10. Attitudes and Contents); (6) Respostas às objeções de Nicholas Sturgeon ao projetivismo (11. Just Causes). É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.

 

 

I. REALISMO MORAL 

 

Segundo o expressivismo quasi-realista, embota juízos morais sejam expressões de atitudes, podemos adequadamente responder a esses juízos dizendo “isso e verdade” ou “isso não é verdade”. Mas em que sentido podemos dizer que um juízo moral pode ser verdadeiro ou falso? Michael Dummett diz que uma declaração é falsa se um estado de coisas se obtém de tal forma que um homem que afirma a declaração e prevê esse estado de coisas como uma possibilidade seria considerado como tendo falado incorretamente. Há, entretanto, maneiras e maneiras de falar incorretamente, das quais falar falsamente é apenas uma.  

Chamamos de realismo moral, a tese segundo a qual a verdade das declarações morais consiste em sua correspondência com algum fato ou estado de coisas. A tese quasi-realista, por sua vez, é a de que há características da afirmação de que um juízo moral é verdadeiro que impedem que isso seja tomado como a afirmação de que ele corresponde de alguma forma a um estado de coisas. Podemos conisderar dois argumentos contra o realismo moral: (i) o argumento do envolvimento da atitude em crenças morais; (ii) argumento da incompatibilidade entre superveniência e não-implicação: 

O argumento do envolvimento da atitude em crenças morais:  

(1) A crença de que uma coisa é boa implica posse de uma certa atitude em relação a ela. 

(2) Nenhuma crença de que uma coisa entra em um estado de coisas implica a posse de qualquer atitude em relação a ela.  

(3) Portanto, a crença de que uma coisa é boa não é crença de que ela entra em um estado de coisas. 

O problema com o argumento está na segunda premissa. Pois não é de todo evidente que nenhuma crença de que algo seja obtido em um estado de coisas possa implicar a posse de uma atitude em relação ao seu objeto. Por exemplo, a crença de que algo é um ser vivo implica pelo menos uma atitude diante desse ser mesmo que seja a atitude de se sentir diante de algo vivo e não de algo inanimado. O que um antirrealista precisa fazer é descrever uma conexão entre a crença moral e a vontade de tal forma que fique claro que a crença moral necessariamente tem conexões que nenhuma crença realista precisa ter. 

É possível formular um argumento contra o realismo moral que parte da análise da noção de verdade em proposições morais, mostrando que duas propriedades centrais da verdade moral criam uma dificuldade insuperável para o realismo, esse é o argumento da incompatibilidade entre não-implicação e superveniência contra o realismo moral. A primeira propriedade é a superveniência, amplamente aceita na filosofia moral, segundo a qual as propriedades morais supervêm as propriedades naturalistas. Isso significa que, se dois estados de coisas compartilham exatamente as mesmas propriedades naturalistas, eles também devem compartilhar as mesmas propriedades morais. A segunda propriedade é a não-implicação, que afirma que nenhum conjunto de propriedades naturalistas, por si só, implica logicamente a posse de uma propriedade moral. Em outras palavras, o há proposição moral cuja verdade seja logicamente derivada de proposições que descrevem exclusivamente propriedades naturalistas. 

Essas duas propriedades, no entanto, são incompatíveis. O realista moral, ao aceitá-las, está comprometido com uma visão segundo a qual a verdade de uma proposição moral depende da existência de um estado de coisas que possui tanto propriedades naturalistas quanto propriedades morais. No entanto, dado que as propriedades naturalistas não implicam as propriedades morais, não há fundamento naturalista que garanta a continuidade da conexão entre essas propriedades. Por exemplo, se um estado de coisas possui um conjunto específico de propriedades naturalistas e é considerado moralmente bom, seria logicamente possível que esse estado mantivesse suas propriedades naturalistas, mas deixasse de ser moralmente bom. Essa possibilidade sugere que não há justificativa no naturalismo para garantir a estabilidade da relação entre propriedades naturalistas e morais, dado que a conexão entre elas não é implicada pelas propriedades naturalistas. Consequentemente, conclui-se que o realismo moral é falso. 

Uma teoria antirrealista tem uma vantagem distinta em ser a única consistente com a superveniência e a ausência de implicação, pois uma teoria baseada em atitudes poderia explicar ambos os fenômenos. Para um antirrealista, uma maneira natural de explicar a superveniência de propriedades morais seria algo assim. Não pode haver nenhuma dúvida de que frequentemente escolhemos, admiramos, elogiamos ou desejamos objetos por suas propriedades naturalistas. Agora, não é possível ter uma atitude em relação a uma coisa por possuir certas propriedades e, ao mesmo tempo, não ter essa atitude em relação a outra coisa que se acredita ter as mesmas propriedades. A inexistência da atitude no segundo caso mostra que não é por causa das propriedades compartilhadas que a tenho no primeiro caso. Agora, atitudes morais devem ser mantidas em relação às coisas por causa de suas propriedades naturalistas. Portanto, não é possível ter uma atitude moral em relação a uma coisa, acreditar que uma segunda é exatamente igual, mas ao mesmo tempo não ter a mesma atitude em relação à segunda coisa. 

O projetivista no entanto, precisa explicar como juízos morais que expressam atitudes desempenham um papel em contextos discursivos que não estão relacionados a uma expressão de atitudes. Por exemplo, quando alguém afirma “a coragem é intrinsicamente boa”, esse juízo pode estar expressando uma atitude, entretanto, na sentença “se a coragem é intrinsicamente boa então times organizados deveriam ser partes da escola”, a expressão “a coragem é intrinsicamente boa” não expressa uma atitude. A duas formas naturais de lidar com isso que, no entanto, não funcionam. A primeira abordagem seria supor que, em um contexto indireto, alguma proposição relacionada a uma atitude esteja sendo hipotetizada. Contudo, essa ideia é claramente artificial, pois o antirrealista não argumenta que, em um contexto direto, quando enunciadas de maneira simples, as sentenças morais expressem proposições sobre atitudes. 

A outra coisa que um antirrealista pode tentar fazer é supor que, num contexto indireto, uma proposição naturalista está sendo hipotetizada. Assim, quando alguém diz “se a coragem é intrinsicamente boa então times organizados deveriam ser partes da escola”, a expressão “se a coragem é boa” talvez signifique “se a coragem tem as propriedades naturais que eu apresentaria como razões para aprova-la..., no entanto, colocada assim, essa declaração se tornaria tautológica, já que está essencialmente dizendo que aprovaríamos a coragem se ela tiver as propriedades que nos fazem aprová-la, o que não adiciona nada substancial à compreensão moral. 

Ao invés de uma análise da proposição moral, seria melhor, para lidar com o problema, considerar-se a sentença hipotética total e fornecer uma teoria do que ela diz e por que temos locuções desse tipo. Considere, por exemplo, a sentença: (I) Nenhuma sentença sobre as propriedades naturalistas da coragem implica que ela seja algo intrinsecamente bom.” Aqui está uma frase na qual a proposição de que a coragem é algo intrinsecamente bom é expressa, mas não afirmada. Diante disso, o que uma teoria antirrealista, baseada na maneira como uma atitude é expressa quando uma proposição moral é afirmada, pode dizer a respeito? 

A resposta pode ser encontrada ao estender a teoria de Frege sobre contextos indiretos para incluir sentenças que expressam atitudes. Frege acreditava que, em certos contextos, sentenças se referem às proposições que elas normalmente expressam. No caso de (I), a referência é feita a uma atitude: a atitude é o sujeito da proposição expressa por (I). Segundo o antirrealismo, (I) não está afirmando a independência lógica entre a existência de dois estados de coisas, o moral e o naturalista. Em vez disso, es expressando um fato sobre a atitude moral de aprovação em relação à coragem, afirmando que ninguém que não aprove a coragem, mesmo conhecendo tudo o que é possível saber sobre ela, pode ser considerado culpado de cometer um erro lógico.  

A sentença (I) trata-se de uma afirmação sobre a natureza da atitude moral, e a sentença (I) é o que pode ser chamada de uma "reflexão proposicional" dessa afirmação. Por "reflexão proposicional," entende-se, de forma geral, qualquer declaração que, embora pareça fazer uma afirmação factual sobre estados de coisas, suas inter-relações ou sua lógica, na verdade está articulando afirmações sobre atitudes, sem que nenhuma das proposições na declaração precise ser analisada como tendo uma atitude como sujeito. Esse tipo de construção pode ser colocado dentro da estrutura de uma regra de inferência chamada modus pones: “Se P, então Q; P, logo Q”. No entanto, poderíamos nos perguntar como uma declaração projetivista pode ser uma inferência válida. 

A validade de uma proposição moral pode ser vista como um reflexo de uma possível inconsistência lógica em atitudes e crenças. Isso ocorre porque uma proposição moral pode ser o antecedente de um condicional cujo consequente não é uma proposição moral.  Nesse contexto, a alegação subjacente, da qual a estrutura do condicional é uma "reflexão proposicional", é que a atitude expressa também envolve uma crença, e não apenas outra atitude. Por exemplo, ao dizer: "Se a coragem é algo intrinsecamente bom, então é uma qualidade pela qual um homem deve agir para alcançar a felicidade", está-se refletindo à ideia de que a aprovação moral da coragem como um bem intrínseco implica a crença de que a coragem é essencial para que uma pessoa alcance a felicidade. 

Assim, crenças podem estar envolvidas em atitudes, o que é importante para entender como reflexões proposicionais funcionam. As expressões de atitudes e as proposições que tratam das relações entre atitudes e crenças são formuladas de modo a aparentarem uma conexão com fatos pertencentes a um suposto domínio moral peculiar e não observável diretamente. Porém, não é surpreendente que esse tipo de artifício exista. O desacordo sobre atitudes morais está entre os mais significativos que podemos encontrar, e compreender as consequências dessas atitudes é um dos temas mais relevantes para reflexão. 

O artifício da "reflexão proposicional" permite que conceitos da lógica proposicional sejam aplicados ao campo moral. Ele nos possibilita empregar ideias como verdade, conhecimento, crença, inconsistência, implicação e inferência, conferindo aos argumentos morais a mesma estrutura lógica e sofisticação que caracterizam os debates sobre fatos objetivos. Assim, o antirrealista pode aceitar as noções de verdade e proposições moral, o que o antirrealista teria de discordar é da interpretação da verdade de uma proposição moral como correspondência a um estado de coisas. Para o quasi-realista, dizer que uma proposição moral é verdadeira significa expressar concordância com a atitude expressa por essa proposição moral, é expressar que essa proposição moral deve ser endossada. Assim, o quasi-realista não nega que haja verdades morais.  

 

II. REVISITANDO A NOÇÃO DE SUPERVINIÊNCIA  

 

O argumento contra o realismo moral a partir da noção de incompatibilidade entre superveniência e não-implicação recebeu de realistas morais diversas tentativas de respostas, de modo que é preciso revisitar melhor a noção de superveniência. Superveniência moral é a ideia de que não pode haver diferenças morais entre duas situações sem que haja diferenças não-morais (naturais) correspondentes. Em outras palavras, para que uma diferença moral ocorra, deve existir uma diferença nos fatos naturais subjacentes.   

Mesmo que a superveniência moral pareça robusta, há exceções aparentes. Isso pode ser visto considerando o conceito de "propriedades liberadoras", que são fatores intervenientes que podem alterar a relação entre os fatos não-morais e os fatos morais. Por exemplo, embora cortar alguém geralmente seja errado, a intenção de ajudar através de uma cirurgia funciona como uma propriedade liberadora, permitindo que o mesmo ato seja considerado moralmente aceitável. Assim, a intenção e os efeitos da ação são os fatores determinantes na avaliação moral. Intenções, sendo fenômenos mentais, e efeitos, como o sofrimento ou dano físico, compõem os fatos naturais que embasam os juízos morais. 

Um dos principais desafios ao realismo moral é explicar a proibição dos "mundos mistos". Esses mundos seriam aqueles em que correlações diferentes de superveniência se aplicam: por exemplo, em um mundo, ferir alguém é errado; em outro, é bom; e em um terceiro, é inconsistente (às vezes errado, às vezes não). Os realistas morais falham em justificar por que rejeitamos esses mundos. Anti-realistas conseguem explicar melhor essa rejeição. Em nosso próprio mundo, consideramos que alguém que sente prazer no sofrimento dos outros é intrinsecamente mau. Isso é verdade em todos os mundos possíveis porque acreditamos que os fatos naturais subjacentes (como intenções maliciosas) são consistentes em determinar o fato moral correspondente. 

Ao tentar lidar com esse problema, realistas morais teriam que dizer que a relação de superveniência moral é necessária, válida em todos os mundos possíveis, mas é difícil explicar isso sem ferir a propriedade da não-implicação. Podemos considerar três tipos de necessidade que poderiam sustentar a superveniência moral: 

(1) Necessidade analítica: A superveniência é necessária por definição ou por lógica. Aqui, o entendimento das práticas morais e da competência no uso da linguagem moral permitiria explicar a superveniência. A superveniciência seria garantida pela lógica de como usamos os conceitos na linguagem moral, mas isso poderia estabelecer dificuldade dada a forma que os significados de conceitos morais variam entre culturas. Se aceitarmos a superveniência como uma necessidade analítica, como explicamos que pessoas com diferentes padrões morais podem discordar, mas ainda assim serem "competentes" em moralidade? 

(2) Necessidade física: A superveniência é necessária devido às leis físicas. Ou seja, as leis da física determinam os fatos morais. Nesse caso, um mundo possível seria restrito pelas mesmas leis físicas que regem nosso mundo. No entanto, não parece que impossibilidade física implique em impossibilidade metafísica. 

(3) Necessidade metafísica: A existência de fatos morais depende ontologicamente da existência de certos fatos naturais. Mesmo com leis físicas diferentes, os fatos naturais garantiriam os fatos morais, tornando a superveniência metafísica universal. É importante considerar que quando uma relação de superveniência (S) é vista como necessária em um sentido forte (metafísico), ela automaticamente implica versões mais fracas (como necessidade física). Mas o inverso não é verdade. Mas assumindo a necessidade metafísica, o realista fica sem explicar a proibição da existência de mundos mistos. 

 

III. TEORIA DO ERRO E O FENÔMENO DO VALOR  

 

John Mackie adota o que ficou conhecido como Teoria do Erro, segundo o qual juízos morais pretendem ser verdadeiros, mas isso é algo que eles não podem ser sem erro de modo que todos os juízos morais são falsos, já que não existem fatos ou propriedades morias a que esses juízos possam corresponder. A consequência natural disso, é que se um vocabulário envolve um erro, deveríamos evitar usá-lo e substituí-lo por um que não envolve erro. Mas Mackie tenta evitar essa consequência como se ainda fosse possível manter a linguagem moral. Mas por que deveríamos escolher cair em erro. O quasi-realismo, por outro lado, consegue fornecer uma abordagem bem mais consistente com a importância do uso da linguagem moral, pois para o quasi-realista a linguagem moral não envolve um erro objetivo.  

De acordo com o projetivismo, nós experimentamos sentimentos e outras reações provocadas por características naturais das coisas, e "adornamos ou tingimos" o mundo ao descrevê-lo como se ele contivesse propriedades que correspondem a esses sentimentos, como, por exemplo, a "agradabilidade" de um sorvete parece responder ao prazer que ele nos proporciona. A partir disso, poderíamos dizer que Mackie está correto sobre a questão metafísica de que não existem “estados de coisas” morais no mundo, mas ele deveria ter sido mais radical ao substituir termos e conceitos morais por outros diferentes. Podemos chamar isso de "projetivismo revisionista". 

A gramática do discurso moral, que parece realista, pode ser explicada com base em uma metafísica projetivista. Isso exige, por exemplo, abordar o problema Geach-Frege, que trata de como explicar o uso de sentenças morais em contextos não assertivos; justificar a forma proposicional que atribuímos às afirmações morais; esclarecer por que podemos legitimamente nos preocupar com a correção de nossas visões morais; e, por consequência, explicar o papel de um conceito de verdade na ética. Se esse trabalho for bem-sucedido, não haverá como argumentar que a gramática do discurso moral refuta o projetivismo ou obriga o projetivista a adotar um caminho revisionista. Isso implica, naturalmente, que Mackie não pode usar adequadamente esses aspectos da prática quasi-realista para apoiar sua teoria do erro, como ele por vezes faz. 

O projetivismo pode acomodar a gramática proposicional da ética; não é necessário que ele busque revisá-la. Pelo contrário, devidamente protegido pelo quasi-realismo, o projetivismo não apenas sustenta, mas também explica esse aspecto do nosso pensamento moral comum. O quasi-realismo, ao sustentar que juízos morais que são projeções de atitudes podem ser proposições verdadeiras, mostra que não erro em nossos modos de pensamento comuns, nem em nossos compromissos e paixões ordinários. Esse empreendimento é de grande interesse para um projetivista, pois o defende contra o ataque mais contundente que enfrenta, ou seja, a alegação de que ele não consegue acomodar os ricos fenômenos da vida moral. No entanto, os opositores realistas do projetivismo também precisam prestar atenção ao quasi-realismo, que, sem ele, não sabem como estruturar um ataque efetivo ao projetivismo. 

Os críticos entendem que o projetivismo é uma teoria explicativa que sustenta que os valores morais são projeções de sentimentos porque isso fornece uma explicação mais eficaz das práticas morais, assumindo que respondemos apenas a um mundo desprovido de valores. Contudo, segundo os críticos, existem várias considerações que tornam essa base insuficiente para justificar o projetivismo. Essa inquietação pode ser organizada em três pontos principais considerando uma analogia com as cores enquanto propriedades secundárias: 

(1) A existência de propriedades secundárias: Cores e outras propriedades secundárias são propriedades reais dos objetos. Isso permanece verdadeiro mesmo que a melhor explicação causal de como as percebemos inclua propriedades primárias. As cores realmente existem, ainda que a realidade que as contém não seja independente do fato de existirem modos humanos de percepção. 

(2) A ideia de que a negação da realidade de propriedades secundárias seja um preconceito: A tese apresentada no ponto anterior pode parecer surpreendente por dois motivos: (i) um preconceito de que apenas propriedades primárias, ou aquelas identificadas por uma teoria científica "última", são reais; ou (ii) a negligência da verdade de que o mundo não pode ser separado de nosso modo de concebê-lo, nem de nossos interesses e preocupações ao fazê-lo. Como nenhum desses motivos é legítimo, não há obstáculo ao ponto (1), nem ao uso do paralelo com as cores para permitir uma realidade aos valores, entre outros. 

(3) A ideia de que a necessidade de treinamento para percepção das propriedades secundárias não invalida sua existência: É verdade que é necessário um tipo específico de treinamento para que as pessoas sejam capazes de perceber adequadamente valores e afins. Contudo, isso não é problemático, pois as pessoas também precisam de treinamento para detectar características em músicas ou nuances de tonalidades, por exemplo. 

Esses argumentos indicam que os valores e propriedades morais poderiam ser considerados reais de maneira análoga às cores, desafiando a explicação projetivista. Pode-se considerar seis diferenças importantes entre propriedades secundárias (como cores) e propriedades morais (como valores e obrigações), mostrando por que a analogia entre elas falha: 

(1) Superveniência: As propriedades secundárias supervenientes sobre propriedades primárias são um fato científico, mas não é essencial para reconhecer essas propriedades saber que elas supervenham. Já no caso das propriedades morais, sua superveniência sobre propriedades naturais é central, e falhar em reconhecê-la é considerado incompetência moral. 

(2) Mecanismos receptivos: As propriedades secundárias têm mecanismos de percepção bem conhecidos, como a retina para a visão. Já a percepção moral não depende de mecanismos causais ou receptivos semelhantes, mas de colocar os fatos em uma perspectiva moral, algo ausente nas propriedades secundárias. 

(3) Dependência da mente: Se nossa percepção de azul mudasse para vermelho, isso transformaria o mundo de azul para vermelho. Porém, no caso das propriedades morais, mudanças nas opiniões coletivas não alteram o que é moralmente correto ou incorreto; só mostram uma deterioração moral. 

(4) Variação cultural: As percepções de propriedades secundárias podem variar em acuidade cultural, mas as propriedades em si mantêm sua extensão estável. Já as propriedades morais variam amplamente entre culturas e tempos históricos, sendo frequentemente contestadas. 

(5) Caráter prático: É possível perceber propriedades secundárias sem se importar com elas, mas a moralidade é intrinsecamente prática. Não existe espaço teórico para uma sociedade que reconheça propriedades morais sem agir de acordo com elas. 

(6) Predicados atribuídos: As propriedades secundárias são consistentes: um tomate vermelho é vermelho em qualquer contexto. Já as propriedades morais podem mudar conforme o contexto: uma ação pode ser boa como líder militar, mas ruim como pai. 

 

IV. COMO SER UM ANTI-REALISTA ÉTICO? 

 

Alguns filósofos gostam de se identificar como realistas, enquanto outros preferem o rótulo de anti-realistas. Um número crescente, no entanto, parece estar abandonando essa discussão completamente. Essa postura reflete as forças do naturalismo, que nos orienta a reconhecer que não existe outra ciência além da ciência natural para estudar os seres humanos. Com isso, conclui-se que não há uma "filosofia primeira" que sirva de base para disciplinas como física ou antropologia, permitindo ao filósofo determinar até que ponto o mundo é "nossa construção" (anti-realismo) ou, pelo contrário, "independente de nós" (realismo). 

Esse naturalismo oferece pequenos elogios e críticas modestas a ambos os lados do debate. Os anti-realistas estavam certos ao negar que exista uma explicação filosófica propriamente dita (a priori) para o sucesso de áreas como a física. Por outro lado, os anti-realistas, ao perceberem a futilidade desse caminho, enfatizam a dependência do mundo ordinário em relação a nós, nossas mentes e categorias. No entanto, as contribuições que eles apresentam nesse sentido também são inaceitáveis. Ao considerar questões globais, como o sucesso da nossa ciência ou a natureza do nosso mundo, parece que o naturalismo deveria prevalecer. No entanto, em contextos locais, o debate parece ganhar relevância. O anti-realista local enfrenta o desafio de traçar uma linha divisória, o que pode se mostrar complicado, ou de abandonar o naturalismo e admitir que o anti-realismo global, afinal, faz sentido. 

Consideremos o exemplo da ética. Aqui, uma teoria projetivista pode ser desenvolvida para oferecer uma maneira satisfatória de situar nossas inclinações em relação aos valores. Segundo o quasi-realista, os fenômenos de superfície do pensamento moral não apresentam nenhum obstáculo a essa teoria. Eles podem ser explicados como sendo exatamente o que esperaríamos, se a metafísica projetivista estiver correta. Esse conjunto teórico formado pelo projetivismo e o quasi-realismo oferece diversas vantagens explicativas sobre outras teorias rivais e supostas rivais. O projetivismo é uma versão moderna da teoria de David Hume sobre a natureza da ética, mas sem se comprometer com operações específicas das paixões, como a simpatia. O emotivismo e o prescritivismo de Richard Hare são, também, ancestrais imediatos. 

O que há de novo é o quasi-realismo, que tem como objetivo demonstrar que, como o projetivismo é consistente com os fenômenos de superfície importantes da ética, e de fato os explica, muitos dos argumentos comumente usados contra ele falham. Esses argumentos alegam que o projetivismo é inadequado para capturar certas características do modo como pensamos eticamente; o quasi-realismo responde que isso não é verdade e, além disso, explica a existência dessas características. Essas características incluem a forma proposicional, em oposição à emotiva ou prescritiva, e a interação dos compromissos éticos com verbos de atitude proposicional ordinários, bem como com conceitos como verdade, prova, conhecimento, e assim por diante. Aqui, o que deve ser determinado é a relação desse programa com o naturalismo. 

Na verdade, o naturalismo exige uma visão da ética projetivista quasi-realista, até a motiva, visto que, nesse conjunto teórico, o estado mental fundamental de alguém que possui um compromisso ético faz sentido dentro de uma perspectiva naturalista. Esse estado mental não é situado inicialmente como uma crença (como a crença em um dever, direito ou valor). Podemos acabar chamando esse estado de crença, mas isso ocorre depois que o trabalho explicativo já foi realizado. De fato, podemos acabar dizendo que realmente existem valores e fatos normativos. Assim, podemos destacar dois elementos dessa abordagem: (i) a identificação fundamental do compromisso moral como algo diferente de uma crença e; (ii) a existência de uma explicação clara e natural sobre por que esse estado mental, tal como é, deveria existir. 

Do ponto de vista naturalista, o surgimento de atitudes morais no desenvolvimento da espécie humana pode ser sustentado como se desenvolvendo a partir da cooperação entre os indivíduos e em instâncias de altruísmo. Numa abordagem projetivista, a insistência estará no aspecto conativo envolvido nesse processo. Perceba, no entanto, que uma abordagem projetivista pode explicar como em nós se formaram atitudes morais emotivas. Por outro lado, um realista moral teria de explicar como desenvolvemos uma faculdade de percepção ou um tipo de intuição pela qual somos capazes de conhecer fatos não-naturais, o que parece ser muito mais improvável de encontrar uma explicação naturalista.  

O realista moral, no entanto, criticaria o projetivismo dizendo que algo não pode ser errado simplesmente porque desenvolvemos evolutivamente sentimentos negativos sobre essa coisa. É aqui que é importante entender o papel do quasi-realismo na explicação. O projetivista quasi-realista pode afirmar que não é por causa de nossas respostas, sejam elas examinadas coletivamente ou de outra forma, que a crueldade é errada. Embora o projetivista não se baseie em algo externo como um estado de coisas, ele entende que no âmbito da ética podemos usar fatos naturais para ajustar, melhorar, avaliar e rejeitar diferentes sentimentos ou atitudes.  O quasi-realista não precisa de comprometimentos ontológicos fortes para explicar a razão de algo ser errado. O projetivismo é mais consistente com o naturalismo a não precisar postular nenhum reino de fatos morais além do mundo natural. 

Alguns realistas morais acusam o projetivismo de ter como consequência o relativismo. Segundo os críticos, a verdade no projetivismo seria relativa às atitudes de diferentes pessoas e culturas. No entanto, isso nem faz sentido porque o projetivista não vê a verdade moral como funcionando do mesmo modo que uma verdade natural das quais diversas pessoas discordariam sobre o que corresponde ou não à realidade. A existência do juízo moral é, claro, depende da existência daqueles capazes de emiti-lo; já a existência da verdade não depende de nada (externamente), mas apenas daquelas características que tornam algo errado (internamente).  

 

V. RESPOSTAS ÀS CRÍTICAS DE SCHUELER AO PROJETIVISMO 

 

G. F. Schueler fez críticas a como o projetivismo quasi-realista lida com contextos indiretos. Consideremos essas críticas: 

(1) Forma Lógica e Modus Ponens: Schueler argumenta que a abordagem do quasi-realismo não pode sustentar inferências válidas como o modus ponens sem adotar um "quadro realista". No entanto, isso pode ser rebatido se considerarmos que a forma lógica de um argumento (como modus ponens) não depende necessariamente de uma única semântica profunda. Diferentes interpretações semânticas podem coexistir e a validade formal pode ser mantida mesmo com explicações diversas dos conectivos lógicos. 

(2) Validade e Verdade: Schueler sugere que a validade, definida em termos de impossibilidade de premissas verdadeiras e conclusão falsa, requer comprometimento com verdades objetivas. Pode-se, no entanto, questionar essa visão restritiva de validade, citando abordagens alternativas, como a lógica imperativa, funções de probabilidade subjetiva e interpretações intuicionistas. A compreensão dos conectivos lógicos pode ser baseada no uso prático em provas, em vez de uma compreensão prévia de "verdade representacional".  

(3) Compromissos e Anti-Realismo: Schueler considera problemático o uso do conceito de "compromisso" pelos anti-realistas, argumentando que compromissos parecem implicar objetividade e uma visão realista. No entanto, compromissos podem ser distintos de crenças realistas e abranger estados mentais relacionados a regras, atitudes e disposições. O conceito de compromisso na teoria quasi-realista não depende de uma objetividade forçada, mas de uma distinção útil entre estados mentais que não precisam ser vistos como crenças com condições de verdade realistas. 

Ao desenvolver essas respostas, pode-se utilizar uma metodologia que distingue entre dois caminhos no quasi-realismo: 

(i) Quase-realismo de via lenta: Este caminho busca analisar cuidadosamente como os argumentos expressivistas podem ser interpretados dentro de formas lógicas tradicionais, oferecendo segurança metodológica para os passos interpretativos. 

(ii) Quasi-realismo de via rápida: Este, por outro lado, reconhece a existência de analogias suficientes entre a linguagem expressivista e a lógica proposicional clássica, permitindo que se use a lógica tradicional sem a necessidade de argumentar que não há diferenças significativas entre elas. Em vez disso, ele aceita as semelhanças práticas e argumenta que isso é suficiente para justificar a transição de um sistema para o outro. 

O  quasi-realismo não precisa afirmar que termos como negação ou outros conectivos lógicos são absolutamente unívocos em todos os contextos. Em vez disso, há uma semelhança de papel lógico suficiente para justificar o uso de ferramentas da lógica proposicional clássica mesmo em um contexto expressivista. Assim, o quasi-realismo pode integrar elementos do expressivismo e da lógica tradicional de maneira pragmática e sem comprometer sua visão metafísica inicial. A abordagem é uma espécie de bootstrap epistemológico, onde se demonstra como a adoção de expressões proposicionais e conceitos como negação, contexto indireto e predicado de verdade atende às necessidades práticas, mantendo-se fiel ao minimalismo metafísico que caracteriza o expressivismo. 

 

VI RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES DE NICHOLAS STURGEON AO PROJETIVISMO 

 

Nicholas Sturgeon apresentou dois argumentos contra a explicação projetivista do discurso ético: (i) o argumento a partir da sensibilidade; (ii) o argumento a partir da explicação. A estrutura essencial do argumento a partir da sensibilidade é a seguinte: uma teoria projetiva trabalha com dois elementos principais ao abordar a psicologia moral. Primeiro, há o lado do input, que se refere às características naturais do mundo às quais o sujeito responde ao formar um compromisso ético. Em seguida, temos o lado do output, que diz respeito ao tipo de compromisso formado, ou seja, a atitude ou a pressão que leva a uma ação ou escolha. Para o projetivismo, é crucial que esses elementos possam ser identificados inicialmente sem o uso de uma linguagem moral. No lado do input, por exemplo, não se deve dizer que é uma percepção de justiça, obrigação ou valor. Do lado do output, não se deve simplesmente afirmar que é uma resposta ética ou "o tipo de reação que temos ao aprovar algo."  

Ao observar os membros de uma comunidade, encontramos uma grande variedade em relação às características que moldam suas atitudes éticas. Tomemos a justiça social como exemplo. Se considerarmos uma mesma reação, como aprovação ativa e encorajamento (o mesmo output), veremos que diferentes pessoas têm diferentes arranjos (diferentes inputs) que evocam a mesma respostaPor outro lado, se todas acreditam, por exemplo, que uma sociedade é governada pelo princípio da diferença de Rawls (mesmo input), ainda assim, suas reações  podem variar amplamente (diferentes output), indo de adoração a reprovação extrema. 

Além disso, algumas pessoas têm atitudes específicas que outras nunca adotam, como indignação fervorosa. E certos aspectos, como o machismo ou estereótipos raciais, podem ser percebidos por algumas pessoas, mas passam despercebidos por outras. Nesse contexto heterogêneo, surge algo curioso: aceitamos que quase qualquer pessoa, independentemente do input ou output, ao expressar suas opiniões, esteja falando sobre justiça. O desafio para o projetivista é explicar como esses debates podem ser considerados como sendo sobre um único tema. Em outras palavras, como ele pode sustentar a intuição de que ambos os debatedores estão falando sobre justiça, ainda que discordem profundamente sobre sua natureza sem recorrer a uma abordagem realista que pressupõe uma essência objetiva ou fixa para o conceito? 

A solução para esse problema baseia-se na ideia de que uma comunidade que compartilha uma língua se mantém coesa através de algo como a "divisão do trabalho linguístico" (como Hilary Putnam descreveu) ou "convenções diferenciais". Em casos claros, essa coesão ocorre ao institucionalizarmos uma autoridade que determina o significado de um termo. Assim, qualquer pessoa que use o termo pode ser considerada como empregando o significado estabelecido por essa autoridade, seja ela científica, dicionarista ou baseada no uso coletivo. Nesse modelo, o significado ou conteúdo de um termo é algo imposto a quem reconhece e respeita a autoridade da convenção  

Na ética, não temos uma única autoridade central, e lidamos com conceitos essencialmente contestáveis, que por natureza geram divergências nos inputs e outputs, como descrito. No entanto, o mecanismo básico permanece o mesmo. Para reconhecer e entender os desacordos éticos, presumimos que estamos discutindo um tópico comum, mesmo que nossas opiniões sobre ele sejam diferentes. A posição em qualquer conversa é a de que estamos tratando do mesmo assunto, a menos que alguma idiossincrasia extrema torne essa suposição insustentável. Assim, o projetivismo pode sustentar que, apesar das diferenças, o discurso ético ainda pode ser entendido como tratando de questões compartilhadas. 

A segunda objeção de Sturgeon, o argumento a partir da explicação é o seguinte: Em exemplos onde a característica moral de uma situação é atribuída a um papel explicativo, somos lembrados, por exemplo, de que a injustiça pode ser mencionada como explicação para eventos humanos, como revoluções, e da plausível verdade de que crianças prosperam quando tratadas com decência e humanidade. Porém, o projetivista, acredita-se, não pode aceitar isso, já que, segundo ele, não há nenhuma característica moral real ali que possa desempenhar qualquer papel causal. Existem existam três linhas compatíveis que um projetivista poderia usar para abordar essas explicações: 

(1) Explicação elíptica: O projetivista poderia questionar se as explicações são elípticas, ou seja, incompletas. Por exemplo, alguém que cita a injustiça como causa de uma revolução pode estar, na verdade, referindo-se à percepção de injustiça pela população ou à crença de que eles estão sendo injustiçados. Nesse caso, a referência seria às reações ou crenças das pessoas, não a uma propriedade objetiva de injustiça. 

(2) Explicação apontando para propriedades subjacentes: Uma segunda abordagem seria argumentar que a explicação aponta para as propriedades factuais sobre as quais o juízo moral depende. Por exemplo, dizer que uma criação é "decente e humana" pode simplesmente significar que ela possui características como atender às necessidades da criança, engajar-se com suas tentativas de ação e comunicação, entre outros aspectos. Assim, o uso de um predicado moral como "decente" seria uma forma de indicar essas propriedades causais mais fundamentais. 

(3) Reconhecimento de características morais como relevantes: A terceira, mais especulativa, estratégia admite a existência de uma característica moral, como a injustiça, e aceita que ela pode ser causalmente relevante, mesmo tendo uma origem projetada. Embora isso pareça incompatível à primeira vista, o projetivista, ao adotar um quasi-realismo, pode justificar o uso de predicados e verdades morais. Ele pode afirmar, como qualquer outra pessoa, que certos arranjos sociais são injustos e que isso é verdade. Uma vez afirmado isso, não há risco teórico adicional em dizer que a injustiça é uma característica desses arranjos ou uma qualidade que eles possuem e que outros não possuem. 

 

Comentários

VEJA TAMBÉM

20 MITOS DA FILOSOFIA

METAFÍSICA DE UMA PERSPECTIVA QUASI-REALISTA - SIMON BLACKBURN (RESUMO)

SOCIOLOGIA DO CORPO - ANTHONY GIDDENS (RESUMO)

DISPOSIÇÕES MENTAIS - SIMON BLACKBURN

O MITO DA LIBERDADE - SKINNER (RESUMO)

ELEMENTOS DE TEOLOGIA (PROCLO)

RAÇA, ETNICIDADE E MIGRAÇÃO - ANTHONY GIDDENS (RESUMO)

TEXTOS BÍBLICOS ABSURDOS