20 MITOS DA INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA
O objetivo do texto a seguir consiste em apresentar 20 equívocos de interpretação muito comuns na interpretação da Bíblia. Adota-se uma perspectiva interpretativa secular da Bíblia, embora muitos dos mitos sejam neutros no que diz respeito a perspectivas teológicas hermenêuticas. O motivo pelo qual cada uma das afirmações é equivocada é explicado abaixo, apresentando a interpretação correta.
1. O
verbo hebraico "barah" significa criar a partir do nada.
O termo hebraico "bará" (בָּרָא), traduzido como "criar", não implica criação a
partir do nada (ex nihilo). Em
diversos contextos bíblicos, "bará"
refere-se à formação de algo a partir de matéria pré-existente. É relevante notar que o verbo "bará" é utilizado de maneira
intercambiável com "asah" (עָשָׂה), em Gênesis 1, ambos significando formar
a partir de matéria pré-existente. “Barah"
traz a ideia de cortar madeira para fabricar algo. Por exemplo, em Josué
17:15,18, o termo é usado para descrever o ato de cortar árvores de um bosque.
Outros textos bíblicos utilizam o verbo "barah" para descrever a criação a
partir de materiais pré-existentes ou para indicar uma renovação em um estado
de coisas. Em Isaías 65:18, Deus declara que "cria" (barah) Jerusalém para regozijo e seu
povo para alegria, referindo-se à restauração ou renovação de algo já
existente. No Salmo 51:10, o salmista
pede: "Cria em mim, ó Deus, um
coração puro", utilizando o verbo "barah" para expressar o desejo de uma transformação interior
profunda, indicando que a criação de um coração puro. Também não é verdade que
o verbo seja usado apenas com Deus como sujeito (cf. 1Samuel 2:29; 2Samuel
12:17; Jeremias 17:15-18).
2.
Gênesis ensina criação ex nihilo.
Gênesis 1:1-3 diz, numa melhor tradução “Quando Deus
começou a criar o céu e a terra, a terra já se encontrava em estado de
desolação e um vento tempestuoso soprava sobre a face das águas, e disse Deus -
Haja luz”. A criação em Gênesis 1, conforme a narrativa, é ex materia. Há, antes de Deus começar a criar, uma espécie de caos
primordial ou condição pré-existente de desolação. Além disso, a narrativa
descreve a criação muito mais como um ordenamento do que como trazer as coisas
à existência do zero. Deus cria uma redoma de metal expandido em torno da terra
(o firmamento) para proteger a terra das águas do caos primordial e faz com que
a água se junte e apareça a terra seca. No entanto, não é completamente exato
dizer que o texto apoia a criação ex
materia como um modelo da criação do Universo. Isso ocorre porque o texto é
possivelmente uma metáfora para a reconstrução da terra de Judá no período
pós-exílico. Assim, o caos primordial representa a terra de Judá desolada e a
criação dos céus e da terra significa a reconstrução da terra de Judá e do
Templo.
3. A
serpente do Jardim do Éden era Satanás.
Nada no relato de Gênesis identifica a serpente com
Satanás. A ideia do diabo está completamente ausente da Bíblia Hebraica e foi
desenvolvida muito depois. A serpente do Éden é, na verdade, uma Serpente
mitológica, talvez uma Serpente alada ou algo próximo da simbologia dos
dragões. A interpretação dela com Satanás, refletida no Novo Testamento, é uma
ideia muito posterior.
4.
Sodoma e Gomorra foram destruídas por causa da homossexualidade.
Este é um grande mito muito difundido: o de que os
sodomitas eram homossexuais e, por isso, Deus destruiu sua cidade com fogo. A
verdade é que em nenhum lugar da Bíblia se diz que Deus destruiu Sodoma (e
Gomorra) por causa da "homossexualidade". O relato bíblico é que Javé
ouviu que em Sodoma havia muita maldade. Ele então envia dois anjos para
visitar a cidade e conferir sua condição. Chegando lá, em forma humana, os
anjos logo se veem ameaçados, pois a cidade, sabendo da chegada de dois "forasteiros",
decide abusar sexualmente deles por meio de um estupro coletivo. O motivo
principal disso é que os moradores de Sodoma tinham ódio de estrangeiros ou
forasteiros e usavam do estupro como forma de humilhação de qualquer pessoa de
fora que tentasse entrar na cidade.
Este é o primeiro motivo pelo qual Sodoma foi destruída
e isso é repetido em Judas 1:7 que diz que os sodomitas sofreram punição por
terem "se entregado à perversão sexual com anjos, procurando unir-se a
seres de natureza diferente". O motivo que moveu isso foi o ódio aos
estrangeiros e não um desejo homossexual. Penetrar um outro homem nesse
contexto era uma forma de humilhá-lo. É por isso que Jesus descreve o pecado de
Sodoma como relacionado com a falta de hospitalidade (Mateus 10:14-15; Lucas
10:10-12). No entanto, não foi este o único pecado de Sodoma. Ezequiel 16:49 diz: "E foi esta a
maldade de Sodoma: ela e suas filhas eram arrogantes; tiveram fartura de
alimento e viviam sem a menor preocupação; não ajudavam os pobres e os
necessitados." Logo, uma tentativa de estupro coletivo de anjos movida
pelo ódio aos estrangeiros; arrogância e; desprezo em relação aos pobres e
necessitados são as reais razões que a Bíblia apresenta para a destruição de
Sodoma.
5.
"Eu Sou o que Sou" em Êxodo 3:14 significa que Deus é o próprio Ser
autoexistente e eterno.
Em Êxodo 3:14, quando Moisés pergunta a Deus qual é o
Seu nome, Deus responde: "Eu sou o que sou" (em hebraico, "Ehyeh-Asher-Ehyeh"), ou mais
possivelmente “Eu estou que estou Eu”. Alguns estudiosos sugerem que, ao
declarar "Eu sou o que sou", Deus estaria evitando revelar um nome
específico. Essa interpretação encontra paralelo em passagens como Juízes
13:18, onde o Anjo do Senhor responde: "Por que perguntas pelo meu nome?
Meu nome é maravilhoso", e em Gênesis 32:29, onde, ao ser questionado por
Jacó sobre Seu nome, Deus responde: "Por que perguntas o meu nome?".
Nessa perspectiva, Deus estaria enfatizando que Sua essência transcende
qualquer nome ou definição humana. Outra interpretação, no entanto, traduz o
verbo hebraico "ehyeh" como
"estarei" ou "estou", destacando a presença ativa de Deus.
Assim, a expressão poderia ser entendida como "Eu sou aquele que
está" ou “Estou eu que estou eu”, indicando que Deus é aquele que está
presente para cumprir Suas promessas e libertar os hebreus do Egito. Assim, ou
o texto é uma recusa de Deus em dizer seu nome ou o texto é uma afirmação da
presença de Deus com seu povo ou de alguma forma ambos.
A compreensão de que "Ehyeh-Asher-Ehyeh" revele a natureza eterna e imutável de Deus
é equivocada. Ao declarar "Eu sou o que sou", Deus estaria, segundo
essa leitura, afirmando Sua autoexistência, independência e se identificando
com o próprio Ser. No entanto, essa interpretação é uma projeção no texto de
categorias da ontologia grega que não fazem sentido no contexto em que o texto
foi escrito.
6. Os
serafins tem 6 asas e usam duas para cobrir o próprio rosto e duas para cobrir
os próprios pés.
Em Isaías 6:2, o profeta descreve uma visão celestial
na qual serafins, seres mitológicos, estão posicionados acima do trono de Deus.
Cada serafim possui seis asas: com duas cobrem o rosto, com duas cobrem os pés
e com duas voam. Muitos interpretam que
os serafins utilizam suas asas para cobrir a si mesmos, simbolizando reverência
e humildade diante da santidade divina, mas não é esse o sentido do texto. Os
serafins usam suas asas para cobrir o rosto e os pés de Deus, com o propósito
de proteger e preservar a santidade divina. O texto diz:
"Serafins estavam por cima dele (de Javé );
Cada um tinha seis asas:
Com duas cobriam o rosto dele,
com duas cobriam
os pés dele,
E com duas voavam."
- Isaías 6:2
Os serafins atuam como guardiões da santidade de Deus,
assegurando que Sua glória permaneça velada e inacessível, para que ninguém
veja seu rosto. Foi por causa de um descuido dos Serafins que o rosto de Deus
acabou ficando descoberto e Isaías acabou vendo o rosto de Deus na visão, razão
do seu desespero e necessidade de purificação. Aqui foi usado o termo serafim,
mas é importante pontuar que a palavra serafim já é plural no hebraico. Outro
detalhe é que a Bíblia Hebraica não diz que serafins são anjos, mas usa para
eles o mesmo termo usado para serpentes (Números 21:6,8; Deuteronômio 8:15;
Isaías 14:28; 30:6), o que levou alguns a especular que os serafins fossem
serpentes aladas semelhantes a dragões mitológicos, o que é difícil de saber se
é o caso.
7. A
Bíblia diz que o diabo foi um anjo puro no passado que foi expulso do céu.
A ideia de que o diabo foi no passado um anjo de luz
não existe em nenhum lugar da Bíblia, mas foi criada por Orígenes. A Bíblia
Hebraica (Antigo Testamento) não menciona nem sequer a existência do diabo, já
o Novo Testamento fala do diabo mas não discute sua origem. Visto que não
existe diabo na Bíblia Hebraica, qualquer interpretação de textos da Bíblia
Hebraica como se referindo a um anjo que caiu e se tornou o diabo é equivocada
por princípio. Duas passagens principais usadas para isso são Isaías 14:12 que
faz uma metáfora entre o rei da Babilônia e a Estrela da Manhã. A estrela da
manhã (o planeta Vênus) surge no céu ao amanhecer para logo desaparecer sendo
sobrepujado pela luz do Sol. Assim, o profeta diz que o rei da Babilônia cairia
do seu trono assim como a estrela da manhã perde sua luz ao amanhecer. A
Vulgata Latina usou nessa passagem a expressão “Lúcifer” que significa
“portador de luz” para traduzir “estrela da manhã”, termo que foi depois
erroneamente lido como um nome.
Outro texto erroneamente interpretado como referência à
queda de Satanás é Ezequiel 28:11-19, que traz uma profecia contra o rei de
Tiro, utilizando metáforas para descrever sua grandeza, riquezas e poder. O
texto faz uma comparação com o Éden e com o paraíso, sugerindo que Tiro e seu
rei estavam em uma posição de extraordinária prosperidade, como se vivessem num
estado de perfeição e esplendor. A metáfora do querubim guardião também é usada
para ilustrar a posição elevada do rei, mas isso não está relacionado ao diabo.
Ao contrário, a figura do querubim aqui simboliza o rei de Tiro em sua
grandeza, exaltado em poder e beleza, mas que, por causa do orgulho, cai em
decadência. Além disso, em Ezequiel 31:8-9, a metáfora do Jardim do Éden é
novamente utilizada, mas agora para descrever a grandeza da Assíria. Nesse
contexto, a comparação visa destacar o esplendor e a majestade de uma nação
poderosa, mais uma vez utilizando a simbologia do Éden para enfatizar sua
perfeição material e política. A metáfora não significa que de fato existiu um
querubim no Éden que caiu em pecado e mesmo se indicasse não teríamos elementos
para identificar esse querubim com Satanás, figura que nem existe na Bíblia
Hebraica.
Já no Novo Testamento duas passagens principais são
lidas por alguns como referente à queda de Satanás. Uma é a fala de Jesus de
que ele “viu Satanás cair do céu como um relâmpago” (Lucas 10:18), mas no
contexto Jesus diz isso em resposta aos exorcismos praticados pelos seus
seguidores. O que ele quis dizer é que diante de seu ministério e de seus
discípulos, Satanás estava sofrendo uma grande queda ou uma grande derrota. Por
fim, outro texto é Apocalipse 12:7-12 que descreve uma batalha entre Miguel e seus
anjos e Satanás e seus anjos, mas esse texto retrata uma batalha escatológica,
não uma batalha no início dos tempos.
8. As
pernas de ferro da estátua de Daniel é Roma.
Nenhuma profecia do livro de Daniel se aplica a qualquer acontecimento depois de 164 a.C. Toda cronologia do livro de Daniel termina com as expedições militares de Antíoco Epifânio e a promessa de que o Reino de Deus seria estabelecido na Terra no máximo 1335 dias depois de Epifânio profanar o Templo de Jerusalém em 167 a.C. O próprio livro de Daniel descreve a verdadeira sequência de Impérios da Estátua do sonho de Nabucodonosor. Para Daniel, a Babilônia foi conquistada por Dário, rei dos Medos (Daniel 5:30-31) e depois foi seguido por Ciro, rei da Pérsia (Daniel 10:1). Assim, entre os Babilônios e a Pérsia, haveria um Império Medo intermediário. Sabemos que historicamente essa sequência está imprecisa, mas é assim que Daniel a descreve. Depois Daniel 8:3-7 diz que a Pérsia seria dominada pela Macedônia (Daniel 8:3-7) e após isso a Macedônia se dividiria dando origem aos reinos helenísticos (dez chifres) e entre eles surgiria Antíoco Epifânio - o “chifre pequeno” (Daniel 8:8). Epifânio daria início ao último período profético das 70 semanas de anos da promessa de Jeremias 25:12, matando o sacerdote Ungido Onias III (Daniel 9:27; 11:23). Na metade da última semana de anos, ele profanaria o Templo, o que aconteceu em 167d.C. (Daniel 9:27), interrompendo 2300 sacrifícios da tarde e da manhã, ou seja, durante 1115 dias (Daniel 8:14). Após isso, o Reino de Deus seria estabelecido até 1335 dias após a profanação do Templo, ou seja, no máximo até 164a.C. (Daniel 12:11-12). É importante destacar que não existe na Bíblia nada sobre um dia em profecia significar um ano, e que as 70 semanas de anos de Daniel 9 é só uma releitura da profecia dos 70 anos de Jeremias. Assim, o próprio livro de Daniel fornece a cronologia completa da estátua - a cabeça de ouro (Babilônia), o peito e braços de prata (Média), o ventre e coxa de bronze (Pérsia), as pernas de ferro (Macedônia), e os pés (os reinos helenísticos entre eles o de Antíoco Epifânio), seguido pelo Reino de Deus a ser estabelecido no dia desses reis helenísticos (Daniel 12:44).
Entretanto, como a história continuou depois disso, e
os reinos helenísticos foram seguidos pelo Império Romano, Roma passou a ser
lida já antes do tempo de Jesus como parte da profecia. Mas essa inclusão de
Roma na profecia quebra toda a cronologia do livro de Daniel e prejudica o
entendimento correto de suas profecias.
9. A
Bíblia diz que Jó foi tentado pelo diabo.
Na verdade, o termo hebraico ha.satã significa "o adversário" e tem uma gama de
significados no Bíblia Hebraica, incluindo a referência a Deus em determinadas
circunstâncias. Deus é descrito como ha.satã
quando Ele age como adversário ou oponente, cumprindo um papel de disciplina ou
julgamento (compare 2 Samuel 24.1 com 1 Crônicas 21:1). Essa função de
adversário não é negativa, mas sim relacionada à ação divina de provação ou
correção.
Além disso, o termo ha.satã
é usado para designar um ser celestial que atua como Promotor Celestial no
Conselho Divino, conforme aparece no livro de Jó (capítulos 1 e 2). Nesse
contexto, ha.satã não é identificado
com o diabo, mas com uma figura que tem a função de apresentar acusações contra
os humanos, questionando sua lealdade a Deus. Ele exerce esse papel sob a
permissão divina, sendo um ser a serviço de Deus, e não uma entidade autônoma
que se opõe diretamente ao Criador. Essa função é mais próxima de um fiscal ou
acusador do que de um inimigo, na verdade ele é um fiel e obediente servo de
Deus. Deus comissionou ha.satã para
provar Jó porque o próprio Deus queria verificar a verdade das acusações do
fiscal que ele mesmo enviou na terra para observar a vida de Jó.
Portanto, o ha.satã
no livro de Jó não deve ser confundido com o diabo como vemos em interpretações
cristãs posteriores. Ele é uma figura que cumpre um papel específico no
Conselho Celestial, atuando dentro da soberania de Deus, e não fora dela. É
importante repetir que não existe diabo na Bíblia Hebraica.
10. A
Bíblia ensina que a vida eterna será no céu.
A visão escatológica presente em textos apocalípticos
na Bíblia é de que o paraíso final será na terra restaurada. A Bíblia apresenta
a esperança de uma vida eterna na Terra renovada, onde as condições materiais
de existência serão transformadas. Em Isaías 65:21-25, a promessa é de um mundo
restaurado, onde as pessoas construirão casas, plantarão vinhas e viverão em
paz, sem medo de destruição ou injustiça. A harmonia entre os seres humanos e a
natureza será restaurada, com animais selvagens vivendo pacificamente juntos
(Isaías 11:6-9). Isso reflete a visão de um paraíso na Terra, onde as
dificuldades e sofrimentos serão eliminados, e a criação será completamente
restaurada.
Essa visão é confirmada também no livro de Apocalipse,
onde se descreve a "nova Jerusalém" descendo do céu para habitar com
os seres humanos na Terra renovada (Apocalipse 21:1-3). A salvação não é
entendida como uma vida etérea no céu, mas como a restauração da Terra, onde
Deus habitará com seu povo, e todas as coisas serão feitas novas. Em vez de uma
existência incorpórea, a Bíblia fala de uma nova criação, onde as pessoas
viverão em corpos transformados, experimentando a glória e a plenitude da vida
ao lado de Deus.
Além disso, a ideia de uma renovação da criação aparece
em Romanos 8:19-21, onde Paulo fala da criação aguardando a redenção, esperando
pela transformação que a libertará da corrupção. 2 Pedro 3:13 também fala de
uma renovação do mundo no final de tudo e Atos 3:19-21 promete um tempo de
restauração de toda a criação.
11.
Jesus, de acordo com os Evangelhos, afirmou ser Deus.
Não há nenhum texto nos Evangelhos em que Jesus afirmou
ser Deus. Algumas falas suas poderiam ser implicitamente interpretadas com
esses sentido, como quando ele diz “Eu e o Pai somos um” (João 10:30), mas essa
fala também poderia querer dizer “eu e o pai temos um mesmo propósito”. Em
outros textos, são os adversários de Jesus que interpretam ações suas como
significando que ele se igualava a Deus (Marcos 2:10-12; João 5:17), mas o
próprio Jesus parece ter recusado ser tratado como Deus. Ao jovem rico, ele disse:
“Por que você me chama bom? Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus” (Marcos
10:18). Ou seja, Jesus não só não afirmou ser Deus, como repreendeu o jovem
rico por chamá-lo de bom já que só Deus merecia esse título. Como Marcos é o
evangelho mais antigo, ele parece ser uma boa base para dizer que o Jesus
histórico se recusou a ser tratado como Deus.
12. A
Bíblia diz que o diabo vem para matar, roubar e destruir.
João 10:10 é um versículo muitas vezes interpretado
como uma referência ao diabo, mas, no contexto imediato do evangelho de João, a
passagem está mais relacionada aos falsos pastores ou líderes religiosos, e não
ao diabo em si. No capítulo 10, Jesus fala sobre ser o "Bom Pastor" e
dá um contraste claro entre Ele e os outros líderes que se apresentam como
pastores, mas que na verdade têm intenções destrutivas.
Quando Jesus diz: "O ladrão vem apenas para
roubar, matar e destruir", Ele está se referindo a esses falsos pastores
que estavam enganando o povo, explorando as ovelhas e levando-as para longe da
verdadeira fé. Os líderes religiosos da época, especialmente os fariseus e
outros líderes judaicos, estavam focados mais em sua própria autoridade e poder
do que em cuidar e guiar o povo de Deus com verdade e justiça. Eles se
comportavam como "ladrões", roubando a dignidade e a liberdade espiritual
do povo. Esses líderes, ao invés de dar vida e paz, traziam destruição.
Em contraste, Jesus se apresenta como o "Bom
Pastor" que vem para dar vida em abundância, ao contrário dos falsos
pastores. A verdadeira missão de Jesus é restaurar, cuidar e guiar suas ovelhas
para um relacionamento correto com Deus, oferecendo não apenas a salvação
espiritual, mas uma vida plena e abundante. O versículo, portanto, destaca a
diferença entre a liderança verdadeira e a falsa liderança religiosa, mais do
que uma luta direta contra o diabo. Assim, no contexto imediato de João 10, a
referência ao "ladrão" está relacionada aos falsos líderes religiosos
e não ao diabo.
13.
Paulo e Tiago se contradizem quando falam de justificação pela fé ou obras.
Paulo e Tiago, à primeira vista, podem parecer estar em
contradição sobre a questão da justificação, especialmente quando se considera
que Paulo afirma que a justificação vem pela fé e não pelas obras (Romanos
3:28), enquanto Tiago parece sugerir que a justificação é pelas obras, e não
somente pela fé (Tiago 2:24). No entanto, uma análise mais atenta revela que,
na verdade, suas doutrinas não estão em contradição, mas se complementam, pois
ambos compreendem a relação entre fé e obras de maneira contextualizada e
focada em aspectos diferentes da experiência cristã.
Paulo, em seus escritos, especialmente em Romanos e
Gálatas, enfatiza que a justificação é pela fé, e não pelas obras da Lei
judaica, como guarda do sábado, prática da circuncisão, observância das festas
religiosas judaicas etc. Para ele, as obras cerimoniais e rituais da Lei não
têm poder para justificar o ser humano diante de Deus. A fé que Paulo defende é
uma fé obediente, que confia plenamente em Cristo e se traduz em uma
transformação interna. Não é uma fé abstrata, mas uma fé ativa que leva à mudança
de vida. Porém, Paulo deixa claro que não são as obras da Lei judaica que
justificam, mas a fé obediente a Cristo como Salvador. Assim, a justificação é
pela fé, mas uma fé verdadeira e obediente que resulta em uma vida
transformada.
Já Tiago, ao abordar o tema da fé e das obras, escreve
em um contexto diferente, reagindo contra interpretações errôneas de que a fé
sem obras por si só seria suficiente para a salvação sem a necessidade de boas
obras. Tiago afirma que "a fé sem obras é morta" (Tiago 2:26), ou
seja, uma fé genuína deve se manifestar em ações concretas de amor e caridade.
Tiago usa o termo “fé” para falar de um assentimento intelectual, e é essa fé
ou mera crença intelectual que não é suficiente para justificar. Nesse sentido,
Tiago não está negando a justificação pela fé no sentido paulino, mas está
corrigindo a ideia de que a fé pode existir sem produzir frutos visíveis. Paulo
também não negaria que a justificação pelas obras no sentido de Tiago, porque
as obras de Tiago são obras da fé e não obras da lei judaica.
14.
Jesus disse que onde estiverem dois ou três reunidos para cultuar, ele estaria
no meio.
O versículo de Mateus 18:20, "Porque onde dois ou
três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles", é
frequentemente interpretado como uma promessa de que Jesus está presente quando
os cristãos se reúnem para o culto mesmo em número muito pequeno. Embora isso
possa ser verdade, esse não é o sentido do texto. Ao considerar o contexto
imediato em que essa fala de Jesus está inserida, fica claro que o versículo
não se refere especificamente à presença de Jesus em cultos ou reuniões de
adoração, mas sim à questão da disciplina eclesiástica.
O capítulo 18 de Mateus trata, entre outras coisas, de
como lidar com o pecado dentro da comunidade cristã. A partir do versículo 15,
Jesus ensina sobre a necessidade de confrontar um irmão que peca contra outro,
primeiro de maneira pessoal, depois com a ajuda de uma ou duas testemunhas, e,
se necessário, diante da igreja (versículos 15-17). O versículo 19 complementa,
dizendo: "Se dois de vocês concordarem na terra sobre qualquer coisa que
pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus", o que
indica que as decisões tomadas em comum acordo, em um contexto de disciplina
eclesiástica, têm a autoridade de Deus.
É neste contexto que o versículo 20 se encaixa:
"Porque onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no
meio deles". Aqui, Jesus está afirmando que, quando a igreja se reúne para
tomar decisões difíceis, como em um processo de disciplina, Ele estará presente
para orientar e validar essas decisões. O foco não está em um culto de
adoração, mas na ação disciplinar da comunidade cristã. O "dois ou
três" se refere ao número mínimo de testemunhas necessárias para que uma decisão
seja validada, conforme a Lei Judaica (Deuteronômio 19:15).
15.
Paulo disse que quem toma Santa Ceia estando em pecado come para a própria
condenação.
No contexto da advertência de Paulo sobre a
participação indigna na Ceia do Senhor, é importante entender que o problema
que ele aborda na Igreja de Corinto não se refere a estar "em pecado"
de uma maneira individual, mas a um problema coletivo. Em 1 Coríntios 11:27,
Paulo escreve que "qualquer que comer o pão ou beber o cálice do Senhor
indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor". No entanto, a
"indignidade" a que Paulo se refere é especificamente a forma como
alguns membros da igreja estavam se comportando durante a celebração da Ceia.
Em 1 Coríntios 11:18-22, Paulo denuncia que, enquanto
uns estavam comendo e bebendo excessivamente durante as reuniões, a ponto até
de ficarem bêbados, outros ficavam sem nada, ficando com fome. Lembremos que a
Santa Ceia nessa época era uma grande festa regada a pão e vinho, não é como
hoje nas igrejas em que se distribuem pequenos pedacinhos de pão e copinhos de
vinho. Esse comportamento egoísta e desrespeitoso nas festas de Santa Ceia
estava gerando divisões dentro da comunidade, o que contradizia o propósito de
unidade e comunhão que a Ceia do Senhor deveria promover. Em 1 Coríntios
10:16-17, Paulo enfatiza que a Ceia é uma expressão de comunhão entre os
membros do corpo de Cristo, e essa unidade não pode ser quebrada por atitudes
egoístas ou desatenciosas para com os outros membros.
Assim, a participação indigna na Ceia não se trata de
uma avaliação moral pessoal sobre o pecado de alguém, mas sim de um
comportamento que desconsidera a união e o cuidado com os irmãos. Paulo também
não diz que aquele que estava participando indignamente deixasse de participar
da ceia, mas sim que ele examinasse a si mesmo, se arrependesse do
comportamento egoísta e participasse: “Examine-se cada um a si mesmo e então coma do pão e beba do cálice” (1
Coríntios 11:28).
16. A
Bíblia condena a ingestão de bebidas alcoólicas.
A Bíblia não proíbe o consumo moderado de bebidas
alcoólicas, mas oferece várias advertências sobre os perigos da embriaguez. O
vinho, por exemplo, é considerado um presente de Deus, com um propósito
benéfico: "Faz crescer a relva para os animais, e as plantas para o
serviço do homem, para que tire da terra o pão e o vinho que alegra o coração
do homem" (Salmos 104:14-15). Essa passagem sugere que o vinho pode ser
desfrutado de forma moderada e traz alegria ao coração. Além disso, o apóstolo
Paulo, em 1 Timóteo 5:23, instrui Timóteo a "usar de um pouco de vinho,
por causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades", o que
indica que a ingestão moderada de vinho também pode ser benéfica à saúde.
Porém, a Bíblia adverte claramente contra os excessos.
Em Provérbios 20:1, é escrito: "O vinho é escarnecedor, a bebida forte é
alvoroçadora; e todo aquele que neles errar não será sábio." Da mesma forma, em Efésios 5:18, a Bíblia
diz: "E não vos embriagueis com vinho, em que há dissolução, mas
enchei-vos do Espírito", alertando contra a embriaguez, que leva a
comportamentos desregrados e prejudiciais à vida cristã. No entanto, nenhuma
condenação existe se o consumo for moderado.
O próprio Jesus foi criticado por seus inimigos como um
“beberrão” por associar-se com pessoas consideradas pecadoras, conforme
registrado em Lucas 7:34: "Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo; e vós
dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e
pecadores." Também não faz sentido a interpretação de que a Bíblia só
permite o uso do vinho no sentido de suco de uva não-alcoólico. Sabemos que na
época, o vinho era frequentemente misturado com água para reduzir sua potência
alcoólica, mas ainda assim, mantinha seu caráter alcoólico. Isso torna ainda
mais notável o comentário em João 2:10, onde o mestre de cerimônias se
surpreende com a qualidade do vinho oferecido por Jesus no final de um banquete
de casamento, dizendo: "Todos põem primeiro o vinho bom, e quando já têm
bebido o bastante, o inferior; mas tu guardaste o bom vinho até agora." Se
o vinho fosse simplesmente suco de uva não alcoólico, essa surpresa não faria
sentido, pois servia-se o vinho bom primeiro, esperava-se que as pessoas
ficassem embriagadas para só depois servir o vinho ruim, quando o discernimento
das pessoas estivesse prejudicado. Também seria estranho a animação do presente
se, após uma festa com vinho alcoólico, Jesus impressionasse a todos com um
mero suco de uva sem álcool.
Além disso, em 1 Coríntios 11:21, Paulo critica os
coríntios por se embriagarem durante a Ceia do Senhor, dizendo: "Alguns,
ao comer, tomam a sua ceia primeiro, e enquanto um fica com fome, o outro fica
bêbado." Esse versículo indica que o vinho utilizado na Ceia de Jesus e
nas celebrações da época era de fato alcoólico.
17.
Isaías 40:22 ensina que a terra é um globo.
A expressão “círculo da terra” em Isaías 40:22 não se
refere ao formato da terra, mas sim ao formato do firmamento ou abóbada celeste
de metal em torno da terra. De acordo com a Bíblia, o Céu é uma abóbada sólida
circular, uma espécie de domo de metal na qual estão fixadas as estrelas. É
essa abóbada circular que Gênesis 1:6-8 chama de “firmamento” ou que Isaías
40:22 denomina como “círculo da Terra”, sobre o qual se encontraria o trono de
Deus. De acordo com Jó 37:18, a abóbada celeste ou domo é “dura como um espelho
de bronze”.
Além disso, a Terra seria uma superfície plana limitada
circularmente: “Marcou um limite circular sobre a superfície das águas, onde a
luz e as trevas se confinam” (Jó 26:10). A Bíblia também ensina que o Sol gira
em torno da Terra, como se vê em Josué 10:12, que diz assim: “O sol parou, e a
lua ficou imóvel até que o povo se vingou totalmente dos seus inimigos,
derrotando-os. Ora, não está isto escrito no Livro de Jasar, dos Justos? O sol
se aquietou no meio do céu e não se apressou a pôr-se no horizonte, quase um
dia inteiro.” Essa terra plana estaria, de acordo com a Bíblia, sustentada
sobre colunas: “Deus é quem sacode a terra do seu lugar, de modo que as suas
colunas estremecem!” (Jó 9:6). Isso não significa necessariamente que a Bíblia
ensine que a terra é plana, mas sim que a Bíblia descreve a terra como plana, o
que pode ser uma descrição fenomenológica ou cosmogônica do que necessariamente
literal. De qualquer modo, no entanto, Isaías 40:22 está falando da “abóbada
circular da terra”, não da terra como um globo.
18.
Paulo defendeu que todas as coisas são lícitas, mas nem tudo convém.
A primeira carta aos Coríntios é uma carta que responde
a bilhetes de dúvidas enviadas pelos coríntios e é importante distinguir na
carta o que é a opinião de Paulo do que é parte do bilhete que ele está
respondendo. Por exemplo, os coríntios escreveram um bilhete que diz “bom seria
que o homem não tocasse em mulher” (1 Coríntios 7:1), ou seja, havia em Corinto
quem defendesse a abstinência sexual
completa, contra isso, Paulo responde “Mas por causa da imoralidade sexual,
cada um tenha sua própria mulher” (1Corintios 7:2)
Os coríntios diziam no bilhete “sabemos que temos todo
conhecimento” (1 Coríntios 8:1), Paulo responde: “se alguém julga saber alguma
coisa, ainda não sabe como convém saber” (1 Coríntios 8:2). O mesmo acontece
com a passagem em que lemos que todas as coisas são lícitas. O bilhete dizia
“Todas as coisas são lícitas”, contra essa opinião Paulo responde que “há
coisas que não convém e que não devemos nos deixar dominar por elas” (1
Coríntios 6:12-13). Ou seja, Paulo é contra a opinião de que todas as coisas convém.
19.
Hebreus é uma epístola ou carta.
Hebreus não é uma carta, nem faz parte do corpo
paulino. Hebreus é um sermão. Hoje pode ser mais raro vermos pessoas escrevendo
e lendo sermões em igreja. Mas se pegamos por exemplo os sermões do Padre
Antônio Vieira ou de Jonathan Edwards, vemos que escrever sermões é algo que
sempre fez parte da prática cristã. Hebreus talvez seja o mais antigo sermão
cristão escrito para ser lido como uma pregação nas reuniões cristãs. Epístolas
também eram lidas em reuniões cristãs, mas Hebreus não é uma carta para ser lida,
mas é, de forma mais direta, um sermão para uma pregação.
20. O
Apocalipse profetizou a vinda de um futuro governo mundial de um anticristo.
A interpretação do Apocalipse como uma profecia sobre
um futuro governo mundial de um anticristo não se encontra no texto, no qual
nem sequer aparece a palavra “anticristo”. O livro do Apocalipse é, na verdade,
uma crítica direta ao Império Romano e às suas opressões. A figura da Besta,
mencionada em Apocalipse, é uma metáfora para o imperador César Nero, que havia
morrido pouco antes do Apocalipse ser escrito, mas cuja morte aparentemente
violenta foi vista como uma "ferida" que, segundo a crença popular da
época, poderia ser curada com seu retorno. Alguns acreditavam ou que Nero
ressuscitaria ou estava refugiado no Império Parta (“reis do oriente”) após
fingir a sua morte e de onde viria.
O texto fala de duas Bestas, uma que sobe do mar Egeu
(o imperador romano) e outra sobre a terra (a elite político-religiosa de Roma
espalhada pelo território romano). Apocalipse então profetiza o retorno de Nero
para governar por 3,5 anos, em tempo de grande perseguição, tribulação e pragas
divinas. A profecia de "3,5 anos" (ou 42 meses, 1260 dias) é uma
referência direta ao livro de Daniel, que
usa essa mesma simbologia de "tempo, tempos e metade de um
tempo" que o texto aplica a um futuro próximo em que Nero redivivo
governaria. Isso significa que o autor do Apocalipse interpretou o “chifre
pequeno” de Daniel como se referindo ao Nero redivivo. A ideia era a de que
Nero retornaria para tomar o poder dos flavianos e que isso culminaria em uma
guerra que levaria à destruição da cidade de Roma.
Nero estabeleceria novamente a moeda com seu rosto e
com seu nome (666 - um código para o nome NERO CÉSAR). A moeda romana com o
rosto e nome de Nero é a marca da Besta, sem a qual nenhuma transição comercial
poderia ser feita. O fato da marca ser colocada na mão direita e sobre a testa
representa um gesto simbólico que acreditava-se que seria exigido de ser feito
com a moeda. A moeda com o rosto de Nero Cesar seria carregada na mão direita e
nas transações comerciais, a pessoa iria colocar a moeda sobre a testa com o
rosto de Nero, para demonstrar adesão ao governo.
Após 3,5 anos de governo de Nero redivivo, Cristo
voltaria e estabeleceria na terra um governo muito mais longo, de 1000 anos
(Apocalipse 20:1-6). Tudo isso deveria começar a acontecer muito em breve para
o Apocalipse, ou seja, no final do primeiro século ou início do segundo.
Portanto, se existe algum sentido que se possa falar de um “anticristo” em
Apocalipse, para se referir à Besta, esse anticristo é Nero César, não um
futuro governante mundial.
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