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20 MITOS DA INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA

  

O objetivo do texto a seguir consiste em apresentar 20 equívocos de interpretação muito comuns na interpretação da Bíblia. Adota-se uma perspectiva interpretativa secular da Bíblia, embora muitos dos mitos sejam neutros no que diz respeito a perspectivas teológicas hermenêuticas. O motivo pelo qual cada uma das afirmações é equivocada é explicado abaixo, apresentando a interpretação correta.

 

1. O verbo hebraico "barah" significa criar a partir do nada.

O termo hebraico "bará" (בָּרָא), traduzido como "criar", não implica criação a partir do nada (ex nihilo). Em diversos contextos bíblicos, "bará" refere-se à formação de algo a partir de matéria pré-existente.  É relevante notar que o verbo "bará" é utilizado de maneira intercambiável com "asah" (עָשָׂה), em Gênesis 1, ambos significando formar a partir de matéria pré-existente. “Barah" traz a ideia de cortar madeira para fabricar algo. Por exemplo, em Josué 17:15,18, o termo é usado para descrever o ato de cortar árvores de um bosque.

Outros textos bíblicos utilizam o verbo "barah" para descrever a criação a partir de materiais pré-existentes ou para indicar uma renovação em um estado de coisas. Em Isaías 65:18, Deus declara que "cria" (barah) Jerusalém para regozijo e seu povo para alegria, referindo-se à restauração ou renovação de algo já existente.  No Salmo 51:10, o salmista pede: "Cria em mim, ó Deus, um coração puro", utilizando o verbo "barah" para expressar o desejo de uma transformação interior profunda, indicando que a criação de um coração puro. Também não é verdade que o verbo seja usado apenas com Deus como sujeito (cf. 1Samuel 2:29; 2Samuel 12:17; Jeremias  17:15-18).

 

2. Gênesis ensina criação ex nihilo.

Gênesis 1:1-3 diz, numa melhor tradução “Quando Deus começou a criar o céu e a terra, a terra já se encontrava em estado de desolação e um vento tempestuoso soprava sobre a face das águas, e disse Deus - Haja luz”. A criação em Gênesis 1, conforme a narrativa, é ex materia. Há, antes de Deus começar a criar, uma espécie de caos primordial ou condição pré-existente de desolação. Além disso, a narrativa descreve a criação muito mais como um ordenamento do que como trazer as coisas à existência do zero. Deus cria uma redoma de metal expandido em torno da terra (o firmamento) para proteger a terra das águas do caos primordial e faz com que a água se junte e apareça a terra seca. No entanto, não é completamente exato dizer que o texto apoia a criação ex materia como um modelo da criação do Universo. Isso ocorre porque o texto é possivelmente uma metáfora para a reconstrução da terra de Judá no período pós-exílico. Assim, o caos primordial representa a terra de Judá desolada e a criação dos céus e da terra significa a reconstrução da terra de Judá e do Templo.

 

3. A serpente do Jardim do Éden era Satanás.

Nada no relato de Gênesis identifica a serpente com Satanás. A ideia do diabo está completamente ausente da Bíblia Hebraica e foi desenvolvida muito depois. A serpente do Éden é, na verdade, uma Serpente mitológica, talvez uma Serpente alada ou algo próximo da simbologia dos dragões. A interpretação dela com Satanás, refletida no Novo Testamento, é uma ideia muito posterior.

 

4. Sodoma e Gomorra foram destruídas por causa da homossexualidade.

Este é um grande mito muito difundido: o de que os sodomitas eram homossexuais e, por isso, Deus destruiu sua cidade com fogo. A verdade é que em nenhum lugar da Bíblia se diz que Deus destruiu Sodoma (e Gomorra) por causa da "homossexualidade". O relato bíblico é que Javé ouviu que em Sodoma havia muita maldade. Ele então envia dois anjos para visitar a cidade e conferir sua condição. Chegando lá, em forma humana, os anjos logo se veem ameaçados, pois a cidade, sabendo da chegada de dois "forasteiros", decide abusar sexualmente deles por meio de um estupro coletivo. O motivo principal disso é que os moradores de Sodoma tinham ódio de estrangeiros ou forasteiros e usavam do estupro como forma de humilhação de qualquer pessoa de fora que tentasse entrar na cidade.

Este é o primeiro motivo pelo qual Sodoma foi destruída e isso é repetido em Judas 1:7 que diz que os sodomitas sofreram punição por terem "se entregado à perversão sexual com anjos, procurando unir-se a seres de natureza diferente". O motivo que moveu isso foi o ódio aos estrangeiros e não um desejo homossexual. Penetrar um outro homem nesse contexto era uma forma de humilhá-lo. É por isso que Jesus descreve o pecado de Sodoma como relacionado com a falta de hospitalidade (Mateus 10:14-15; Lucas 10:10-12). No entanto, não foi este o único pecado de Sodoma.  Ezequiel 16:49 diz: "E foi esta a maldade de Sodoma: ela e suas filhas eram arrogantes; tiveram fartura de alimento e viviam sem a menor preocupação; não ajudavam os pobres e os necessitados." Logo, uma tentativa de estupro coletivo de anjos movida pelo ódio aos estrangeiros; arrogância e; desprezo em relação aos pobres e necessitados são as reais razões que a Bíblia apresenta para a destruição de Sodoma.

 

5. "Eu Sou o que Sou" em Êxodo 3:14 significa que Deus é o próprio Ser autoexistente e eterno.

Em Êxodo 3:14, quando Moisés pergunta a Deus qual é o Seu nome, Deus responde: "Eu sou o que sou" (em hebraico, "Ehyeh-Asher-Ehyeh"), ou mais possivelmente “Eu estou que estou Eu”. Alguns estudiosos sugerem que, ao declarar "Eu sou o que sou", Deus estaria evitando revelar um nome específico. Essa interpretação encontra paralelo em passagens como Juízes 13:18, onde o Anjo do Senhor responde: "Por que perguntas pelo meu nome? Meu nome é maravilhoso", e em Gênesis 32:29, onde, ao ser questionado por Jacó sobre Seu nome, Deus responde: "Por que perguntas o meu nome?". Nessa perspectiva, Deus estaria enfatizando que Sua essência transcende qualquer nome ou definição humana. Outra interpretação, no entanto, traduz o verbo hebraico "ehyeh" como "estarei" ou "estou", destacando a presença ativa de Deus. Assim, a expressão poderia ser entendida como "Eu sou aquele que está" ou “Estou eu que estou eu”, indicando que Deus é aquele que está presente para cumprir Suas promessas e libertar os hebreus do Egito. Assim, ou o texto é uma recusa de Deus em dizer seu nome ou o texto é uma afirmação da presença de Deus com seu povo ou de alguma forma ambos.

A compreensão de que "Ehyeh-Asher-Ehyeh" revele a natureza eterna e imutável de Deus é equivocada. Ao declarar "Eu sou o que sou", Deus estaria, segundo essa leitura, afirmando Sua autoexistência, independência e se identificando com o próprio Ser. No entanto, essa interpretação é uma projeção no texto de categorias da ontologia grega que não fazem sentido no contexto em que o texto foi escrito.

 

6. Os serafins tem 6 asas e usam duas para cobrir o próprio rosto e duas para cobrir os próprios pés.

Em Isaías 6:2, o profeta descreve uma visão celestial na qual serafins, seres mitológicos, estão posicionados acima do trono de Deus. Cada serafim possui seis asas: com duas cobrem o rosto, com duas cobrem os pés e com duas voam.  Muitos interpretam que os serafins utilizam suas asas para cobrir a si mesmos, simbolizando reverência e humildade diante da santidade divina, mas não é esse o sentido do texto. Os serafins usam suas asas para cobrir o rosto e os pés de Deus, com o propósito de proteger e preservar a santidade divina. O texto diz:

"Serafins estavam por cima dele (de Javé );

Cada um tinha seis asas:

Com duas cobriam o rosto dele,

 com duas cobriam os pés dele,

E com duas voavam."

- Isaías 6:2

Os serafins atuam como guardiões da santidade de Deus, assegurando que Sua glória permaneça velada e inacessível, para que ninguém veja seu rosto. Foi por causa de um descuido dos Serafins que o rosto de Deus acabou ficando descoberto e Isaías acabou vendo o rosto de Deus na visão, razão do seu desespero e necessidade de purificação. Aqui foi usado o termo serafim, mas é importante pontuar que a palavra serafim já é plural no hebraico. Outro detalhe é que a Bíblia Hebraica não diz que serafins são anjos, mas usa para eles o mesmo termo usado para serpentes (Números 21:6,8; Deuteronômio 8:15; Isaías 14:28; 30:6), o que levou alguns a especular que os serafins fossem serpentes aladas semelhantes a dragões mitológicos, o que é difícil de saber se é o caso.

 

7. A Bíblia diz que o diabo foi um anjo puro no passado que foi expulso do céu.

A ideia de que o diabo foi no passado um anjo de luz não existe em nenhum lugar da Bíblia, mas foi criada por Orígenes. A Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) não menciona nem sequer a existência do diabo, já o Novo Testamento fala do diabo mas não discute sua origem. Visto que não existe diabo na Bíblia Hebraica, qualquer interpretação de textos da Bíblia Hebraica como se referindo a um anjo que caiu e se tornou o diabo é equivocada por princípio. Duas passagens principais usadas para isso são Isaías 14:12 que faz uma metáfora entre o rei da Babilônia e a Estrela da Manhã. A estrela da manhã (o planeta Vênus) surge no céu ao amanhecer para logo desaparecer sendo sobrepujado pela luz do Sol. Assim, o profeta diz que o rei da Babilônia cairia do seu trono assim como a estrela da manhã perde sua luz ao amanhecer. A Vulgata Latina usou nessa passagem a expressão “Lúcifer” que significa “portador de luz” para traduzir “estrela da manhã”, termo que foi depois erroneamente lido como um nome.

Outro texto erroneamente interpretado como referência à queda de Satanás é Ezequiel 28:11-19, que traz uma profecia contra o rei de Tiro, utilizando metáforas para descrever sua grandeza, riquezas e poder. O texto faz uma comparação com o Éden e com o paraíso, sugerindo que Tiro e seu rei estavam em uma posição de extraordinária prosperidade, como se vivessem num estado de perfeição e esplendor. A metáfora do querubim guardião também é usada para ilustrar a posição elevada do rei, mas isso não está relacionado ao diabo. Ao contrário, a figura do querubim aqui simboliza o rei de Tiro em sua grandeza, exaltado em poder e beleza, mas que, por causa do orgulho, cai em decadência. Além disso, em Ezequiel 31:8-9, a metáfora do Jardim do Éden é novamente utilizada, mas agora para descrever a grandeza da Assíria. Nesse contexto, a comparação visa destacar o esplendor e a majestade de uma nação poderosa, mais uma vez utilizando a simbologia do Éden para enfatizar sua perfeição material e política. A metáfora não significa que de fato existiu um querubim no Éden que caiu em pecado e mesmo se indicasse não teríamos elementos para identificar esse querubim com Satanás, figura que nem existe na Bíblia Hebraica.

Já no Novo Testamento duas passagens principais são lidas por alguns como referente à queda de Satanás. Uma é a fala de Jesus de que ele “viu Satanás cair do céu como um relâmpago” (Lucas 10:18), mas no contexto Jesus diz isso em resposta aos exorcismos praticados pelos seus seguidores. O que ele quis dizer é que diante de seu ministério e de seus discípulos, Satanás estava sofrendo uma grande queda ou uma grande derrota. Por fim, outro texto é Apocalipse 12:7-12 que descreve uma batalha entre Miguel e seus anjos e Satanás e seus anjos, mas esse texto retrata uma batalha escatológica, não uma batalha no início dos tempos.

 

8. As pernas de ferro da estátua de Daniel é Roma.

Nenhuma profecia do livro de Daniel se aplica a qualquer acontecimento depois de 164 a.C. Toda cronologia do livro de Daniel termina com as expedições militares de Antíoco Epifânio e a promessa de que o Reino de Deus seria estabelecido na Terra no máximo 1335 dias depois de Epifânio profanar o Templo de Jerusalém em 167 a.C. O próprio livro de Daniel descreve a verdadeira sequência de Impérios da Estátua do sonho de Nabucodonosor. Para Daniel, a Babilônia foi conquistada por Dário, rei dos Medos (Daniel 5:30-31) e depois foi seguido  por Ciro, rei da Pérsia (Daniel 10:1). Assim, entre os Babilônios e a Pérsia, haveria um  Império Medo intermediário. Sabemos que historicamente essa sequência está imprecisa, mas é assim que Daniel a descreve. Depois Daniel 8:3-7 diz que a Pérsia seria dominada pela Macedônia (Daniel 8:3-7) e após isso a Macedônia se dividiria dando origem aos reinos helenísticos (dez chifres) e entre eles surgiria Antíoco Epifânio - o “chifre pequeno” (Daniel 8:8). Epifânio daria início ao último período profético das 70 semanas de anos da promessa de Jeremias 25:12, matando o sacerdote Ungido Onias III (Daniel 9:27; 11:23). Na metade da última semana de anos, ele profanaria o Templo, o que aconteceu em 167d.C. (Daniel 9:27), interrompendo 2300 sacrifícios da tarde e da manhã, ou seja, durante 1115 dias (Daniel 8:14). Após isso, o Reino de Deus seria estabelecido até 1335 dias após a profanação do Templo, ou seja, no máximo até 164a.C. (Daniel 12:11-12). É importante destacar que não existe na Bíblia nada sobre um dia em profecia significar um ano, e que as 70 semanas de anos de Daniel 9 é só uma releitura da profecia dos 70 anos de Jeremias. Assim, o próprio livro de Daniel fornece a cronologia completa da estátua - a cabeça de ouro (Babilônia), o peito e braços de prata (Média), o ventre e coxa de bronze (Pérsia), as pernas de ferro (Macedônia), e os pés (os reinos helenísticos entre eles o de Antíoco Epifânio), seguido pelo Reino de Deus a ser estabelecido no dia desses reis helenísticos (Daniel 12:44). 

Entretanto, como a história continuou depois disso, e os reinos helenísticos foram seguidos pelo Império Romano, Roma passou a ser lida já antes do tempo de Jesus como parte da profecia. Mas essa inclusão de Roma na profecia quebra toda a cronologia do livro de Daniel e prejudica o entendimento correto de suas profecias.

 

9. A Bíblia diz que Jó foi tentado pelo diabo.

Na verdade, o termo hebraico ha.satã significa "o adversário" e tem uma gama de significados no Bíblia Hebraica, incluindo a referência a Deus em determinadas circunstâncias. Deus é descrito como ha.satã quando Ele age como adversário ou oponente, cumprindo um papel de disciplina ou julgamento (compare 2 Samuel 24.1 com 1 Crônicas 21:1). Essa função de adversário não é negativa, mas sim relacionada à ação divina de provação ou correção.

Além disso, o termo ha.satã é usado para designar um ser celestial que atua como Promotor Celestial no Conselho Divino, conforme aparece no livro de Jó (capítulos 1 e 2). Nesse contexto, ha.satã não é identificado com o diabo, mas com uma figura que tem a função de apresentar acusações contra os humanos, questionando sua lealdade a Deus. Ele exerce esse papel sob a permissão divina, sendo um ser a serviço de Deus, e não uma entidade autônoma que se opõe diretamente ao Criador. Essa função é mais próxima de um fiscal ou acusador do que de um inimigo, na verdade ele é um fiel e obediente servo de Deus. Deus comissionou ha.satã para provar Jó porque o próprio Deus queria verificar a verdade das acusações do fiscal que ele mesmo enviou na terra para observar a vida de Jó.

Portanto, o ha.satã no livro de Jó não deve ser confundido com o diabo como vemos em interpretações cristãs posteriores. Ele é uma figura que cumpre um papel específico no Conselho Celestial, atuando dentro da soberania de Deus, e não fora dela. É importante repetir que não existe diabo na Bíblia Hebraica.

 

10. A Bíblia ensina que a vida eterna será no céu.

A visão escatológica presente em textos apocalípticos na Bíblia é de que o paraíso final será na terra restaurada. A Bíblia apresenta a esperança de uma vida eterna na Terra renovada, onde as condições materiais de existência serão transformadas. Em Isaías 65:21-25, a promessa é de um mundo restaurado, onde as pessoas construirão casas, plantarão vinhas e viverão em paz, sem medo de destruição ou injustiça. A harmonia entre os seres humanos e a natureza será restaurada, com animais selvagens vivendo pacificamente juntos (Isaías 11:6-9). Isso reflete a visão de um paraíso na Terra, onde as dificuldades e sofrimentos serão eliminados, e a criação será completamente restaurada.

Essa visão é confirmada também no livro de Apocalipse, onde se descreve a "nova Jerusalém" descendo do céu para habitar com os seres humanos na Terra renovada (Apocalipse 21:1-3). A salvação não é entendida como uma vida etérea no céu, mas como a restauração da Terra, onde Deus habitará com seu povo, e todas as coisas serão feitas novas. Em vez de uma existência incorpórea, a Bíblia fala de uma nova criação, onde as pessoas viverão em corpos transformados, experimentando a glória e a plenitude da vida ao lado de Deus.

Além disso, a ideia de uma renovação da criação aparece em Romanos 8:19-21, onde Paulo fala da criação aguardando a redenção, esperando pela transformação que a libertará da corrupção. 2 Pedro 3:13 também fala de uma renovação do mundo no final de tudo e Atos 3:19-21 promete um tempo de restauração de toda a criação.

 

11. Jesus, de acordo com os Evangelhos, afirmou ser Deus.

Não há nenhum texto nos Evangelhos em que Jesus afirmou ser Deus. Algumas falas suas poderiam ser implicitamente interpretadas com esses sentido, como quando ele diz “Eu e o Pai somos um” (João 10:30), mas essa fala também poderia querer dizer “eu e o pai temos um mesmo propósito”. Em outros textos, são os adversários de Jesus que interpretam ações suas como significando que ele se igualava a Deus (Marcos 2:10-12; João 5:17), mas o próprio Jesus parece ter recusado ser tratado como Deus. Ao jovem rico, ele disse: “Por que você me chama bom? Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus” (Marcos 10:18). Ou seja, Jesus não só não afirmou ser Deus, como repreendeu o jovem rico por chamá-lo de bom já que só Deus merecia esse título. Como Marcos é o evangelho mais antigo, ele parece ser uma boa base para dizer que o Jesus histórico se recusou a ser tratado como Deus.

 

12. A Bíblia diz que o diabo vem para matar, roubar e destruir.

João 10:10 é um versículo muitas vezes interpretado como uma referência ao diabo, mas, no contexto imediato do evangelho de João, a passagem está mais relacionada aos falsos pastores ou líderes religiosos, e não ao diabo em si. No capítulo 10, Jesus fala sobre ser o "Bom Pastor" e dá um contraste claro entre Ele e os outros líderes que se apresentam como pastores, mas que na verdade têm intenções destrutivas.

Quando Jesus diz: "O ladrão vem apenas para roubar, matar e destruir", Ele está se referindo a esses falsos pastores que estavam enganando o povo, explorando as ovelhas e levando-as para longe da verdadeira fé. Os líderes religiosos da época, especialmente os fariseus e outros líderes judaicos, estavam focados mais em sua própria autoridade e poder do que em cuidar e guiar o povo de Deus com verdade e justiça. Eles se comportavam como "ladrões", roubando a dignidade e a liberdade espiritual do povo. Esses líderes, ao invés de dar vida e paz, traziam destruição.

Em contraste, Jesus se apresenta como o "Bom Pastor" que vem para dar vida em abundância, ao contrário dos falsos pastores. A verdadeira missão de Jesus é restaurar, cuidar e guiar suas ovelhas para um relacionamento correto com Deus, oferecendo não apenas a salvação espiritual, mas uma vida plena e abundante. O versículo, portanto, destaca a diferença entre a liderança verdadeira e a falsa liderança religiosa, mais do que uma luta direta contra o diabo. Assim, no contexto imediato de João 10, a referência ao "ladrão" está relacionada aos falsos líderes religiosos e não ao diabo.

 

13. Paulo e Tiago se contradizem quando falam de justificação pela fé ou obras.

Paulo e Tiago, à primeira vista, podem parecer estar em contradição sobre a questão da justificação, especialmente quando se considera que Paulo afirma que a justificação vem pela fé e não pelas obras (Romanos 3:28), enquanto Tiago parece sugerir que a justificação é pelas obras, e não somente pela fé (Tiago 2:24). No entanto, uma análise mais atenta revela que, na verdade, suas doutrinas não estão em contradição, mas se complementam, pois ambos compreendem a relação entre fé e obras de maneira contextualizada e focada em aspectos diferentes da experiência cristã.

Paulo, em seus escritos, especialmente em Romanos e Gálatas, enfatiza que a justificação é pela fé, e não pelas obras da Lei judaica, como guarda do sábado, prática da circuncisão, observância das festas religiosas judaicas etc. Para ele, as obras cerimoniais e rituais da Lei não têm poder para justificar o ser humano diante de Deus. A fé que Paulo defende é uma fé obediente, que confia plenamente em Cristo e se traduz em uma transformação interna. Não é uma fé abstrata, mas uma fé ativa que leva à mudança de vida. Porém, Paulo deixa claro que não são as obras da Lei judaica que justificam, mas a fé obediente a Cristo como Salvador. Assim, a justificação é pela fé, mas uma fé verdadeira e obediente que resulta em uma vida transformada.

Já Tiago, ao abordar o tema da fé e das obras, escreve em um contexto diferente, reagindo contra interpretações errôneas de que a fé sem obras por si só seria suficiente para a salvação sem a necessidade de boas obras. Tiago afirma que "a fé sem obras é morta" (Tiago 2:26), ou seja, uma fé genuína deve se manifestar em ações concretas de amor e caridade. Tiago usa o termo “fé” para falar de um assentimento intelectual, e é essa fé ou mera crença intelectual que não é suficiente para justificar. Nesse sentido, Tiago não está negando a justificação pela fé no sentido paulino, mas está corrigindo a ideia de que a fé pode existir sem produzir frutos visíveis. Paulo também não negaria que a justificação pelas obras no sentido de Tiago, porque as obras de Tiago são obras da fé e não obras da lei judaica.

 

14. Jesus disse que onde estiverem dois ou três reunidos para cultuar, ele estaria no meio.

O versículo de Mateus 18:20, "Porque onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles", é frequentemente interpretado como uma promessa de que Jesus está presente quando os cristãos se reúnem para o culto mesmo em número muito pequeno. Embora isso possa ser verdade, esse não é o sentido do texto. Ao considerar o contexto imediato em que essa fala de Jesus está inserida, fica claro que o versículo não se refere especificamente à presença de Jesus em cultos ou reuniões de adoração, mas sim à questão da disciplina eclesiástica.

O capítulo 18 de Mateus trata, entre outras coisas, de como lidar com o pecado dentro da comunidade cristã. A partir do versículo 15, Jesus ensina sobre a necessidade de confrontar um irmão que peca contra outro, primeiro de maneira pessoal, depois com a ajuda de uma ou duas testemunhas, e, se necessário, diante da igreja (versículos 15-17). O versículo 19 complementa, dizendo: "Se dois de vocês concordarem na terra sobre qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus", o que indica que as decisões tomadas em comum acordo, em um contexto de disciplina eclesiástica, têm a autoridade de Deus.

É neste contexto que o versículo 20 se encaixa: "Porque onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles". Aqui, Jesus está afirmando que, quando a igreja se reúne para tomar decisões difíceis, como em um processo de disciplina, Ele estará presente para orientar e validar essas decisões. O foco não está em um culto de adoração, mas na ação disciplinar da comunidade cristã. O "dois ou três" se refere ao número mínimo de testemunhas necessárias para que uma decisão seja validada, conforme a Lei Judaica (Deuteronômio 19:15).

 

15. Paulo disse que quem toma Santa Ceia estando em pecado come para a própria condenação.

No contexto da advertência de Paulo sobre a participação indigna na Ceia do Senhor, é importante entender que o problema que ele aborda na Igreja de Corinto não se refere a estar "em pecado" de uma maneira individual, mas a um problema coletivo. Em 1 Coríntios 11:27, Paulo escreve que "qualquer que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor". No entanto, a "indignidade" a que Paulo se refere é especificamente a forma como alguns membros da igreja estavam se comportando durante a celebração da Ceia.

Em 1 Coríntios 11:18-22, Paulo denuncia que, enquanto uns estavam comendo e bebendo excessivamente durante as reuniões, a ponto até de ficarem bêbados, outros ficavam sem nada, ficando com fome. Lembremos que a Santa Ceia nessa época era uma grande festa regada a pão e vinho, não é como hoje nas igrejas em que se distribuem pequenos pedacinhos de pão e copinhos de vinho. Esse comportamento egoísta e desrespeitoso nas festas de Santa Ceia estava gerando divisões dentro da comunidade, o que contradizia o propósito de unidade e comunhão que a Ceia do Senhor deveria promover. Em 1 Coríntios 10:16-17, Paulo enfatiza que a Ceia é uma expressão de comunhão entre os membros do corpo de Cristo, e essa unidade não pode ser quebrada por atitudes egoístas ou desatenciosas para com os outros membros.

Assim, a participação indigna na Ceia não se trata de uma avaliação moral pessoal sobre o pecado de alguém, mas sim de um comportamento que desconsidera a união e o cuidado com os irmãos. Paulo também não diz que aquele que estava participando indignamente deixasse de participar da ceia, mas sim que ele examinasse a si mesmo, se arrependesse do comportamento egoísta e participasse: “Examine-se cada um a si mesmo e então coma do pão e beba do cálice” (1 Coríntios 11:28).

 

16. A Bíblia condena a ingestão de bebidas alcoólicas.

A Bíblia não proíbe o consumo moderado de bebidas alcoólicas, mas oferece várias advertências sobre os perigos da embriaguez. O vinho, por exemplo, é considerado um presente de Deus, com um propósito benéfico: "Faz crescer a relva para os animais, e as plantas para o serviço do homem, para que tire da terra o pão e o vinho que alegra o coração do homem" (Salmos 104:14-15). Essa passagem sugere que o vinho pode ser desfrutado de forma moderada e traz alegria ao coração. Além disso, o apóstolo Paulo, em 1 Timóteo 5:23, instrui Timóteo a "usar de um pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades", o que indica que a ingestão moderada de vinho também pode ser benéfica à saúde.

Porém, a Bíblia adverte claramente contra os excessos. Em Provérbios 20:1, é escrito: "O vinho é escarnecedor, a bebida forte é alvoroçadora; e todo aquele que neles errar não será sábio."  Da mesma forma, em Efésios 5:18, a Bíblia diz: "E não vos embriagueis com vinho, em que há dissolução, mas enchei-vos do Espírito", alertando contra a embriaguez, que leva a comportamentos desregrados e prejudiciais à vida cristã. No entanto, nenhuma condenação existe se o consumo for moderado.

O próprio Jesus foi criticado por seus inimigos como um “beberrão” por associar-se com pessoas consideradas pecadoras, conforme registrado em Lucas 7:34: "Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo; e vós dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores." Também não faz sentido a interpretação de que a Bíblia só permite o uso do vinho no sentido de suco de uva não-alcoólico. Sabemos que na época, o vinho era frequentemente misturado com água para reduzir sua potência alcoólica, mas ainda assim, mantinha seu caráter alcoólico. Isso torna ainda mais notável o comentário em João 2:10, onde o mestre de cerimônias se surpreende com a qualidade do vinho oferecido por Jesus no final de um banquete de casamento, dizendo: "Todos põem primeiro o vinho bom, e quando já têm bebido o bastante, o inferior; mas tu guardaste o bom vinho até agora." Se o vinho fosse simplesmente suco de uva não alcoólico, essa surpresa não faria sentido, pois servia-se o vinho bom primeiro, esperava-se que as pessoas ficassem embriagadas para só depois servir o vinho ruim, quando o discernimento das pessoas estivesse prejudicado. Também seria estranho a animação do presente se, após uma festa com vinho alcoólico, Jesus impressionasse a todos com um mero suco de uva sem álcool.

Além disso, em 1 Coríntios 11:21, Paulo critica os coríntios por se embriagarem durante a Ceia do Senhor, dizendo: "Alguns, ao comer, tomam a sua ceia primeiro, e enquanto um fica com fome, o outro fica bêbado." Esse versículo indica que o vinho utilizado na Ceia de Jesus e nas celebrações da época era de fato alcoólico.

 

17. Isaías 40:22 ensina que a terra é um globo.

A expressão “círculo da terra” em Isaías 40:22 não se refere ao formato da terra, mas sim ao formato do firmamento ou abóbada celeste de metal em torno da terra. De acordo com a Bíblia, o Céu é uma abóbada sólida circular, uma espécie de domo de metal na qual estão fixadas as estrelas. É essa abóbada circular que Gênesis 1:6-8 chama de “firmamento” ou que Isaías 40:22 denomina como “círculo da Terra”, sobre o qual se encontraria o trono de Deus. De acordo com Jó 37:18, a abóbada celeste ou domo é “dura como um espelho de bronze”.

Além disso, a Terra seria uma superfície plana limitada circularmente: “Marcou um limite circular sobre a superfície das águas, onde a luz e as trevas se confinam” (Jó 26:10). A Bíblia também ensina que o Sol gira em torno da Terra, como se vê em Josué 10:12, que diz assim: “O sol parou, e a lua ficou imóvel até que o povo se vingou totalmente dos seus inimigos, derrotando-os. Ora, não está isto escrito no Livro de Jasar, dos Justos? O sol se aquietou no meio do céu e não se apressou a pôr-se no horizonte, quase um dia inteiro.” Essa terra plana estaria, de acordo com a Bíblia, sustentada sobre colunas: “Deus é quem sacode a terra do seu lugar, de modo que as suas colunas estremecem!” (Jó 9:6). Isso não significa necessariamente que a Bíblia ensine que a terra é plana, mas sim que a Bíblia descreve a terra como plana, o que pode ser uma descrição fenomenológica ou cosmogônica do que necessariamente literal. De qualquer modo, no entanto, Isaías 40:22 está falando da “abóbada circular da terra”, não da terra como um globo.

 

18. Paulo defendeu que todas as coisas são lícitas, mas nem tudo convém.

A primeira carta aos Coríntios é uma carta que responde a bilhetes de dúvidas enviadas pelos coríntios e é importante distinguir na carta o que é a opinião de Paulo do que é parte do bilhete que ele está respondendo. Por exemplo, os coríntios escreveram um bilhete que diz “bom seria que o homem não tocasse em mulher” (1 Coríntios 7:1), ou seja, havia em Corinto quem defendesse  a abstinência sexual completa, contra isso, Paulo responde “Mas por causa da imoralidade sexual, cada um tenha sua própria mulher” (1Corintios 7:2)

Os coríntios diziam no bilhete “sabemos que temos todo conhecimento” (1 Coríntios 8:1), Paulo responde: “se alguém julga saber alguma coisa, ainda não sabe como convém saber” (1 Coríntios 8:2). O mesmo acontece com a passagem em que lemos que todas as coisas são lícitas. O bilhete dizia “Todas as coisas são lícitas”, contra essa opinião Paulo responde que “há coisas que não convém e que não devemos nos deixar dominar por elas” (1 Coríntios 6:12-13). Ou seja, Paulo é contra a opinião de que todas as coisas convém.

 

19. Hebreus é uma epístola ou carta.

Hebreus não é uma carta, nem faz parte do corpo paulino. Hebreus é um sermão. Hoje pode ser mais raro vermos pessoas escrevendo e lendo sermões em igreja. Mas se pegamos por exemplo os sermões do Padre Antônio Vieira ou de Jonathan Edwards, vemos que escrever sermões é algo que sempre fez parte da prática cristã. Hebreus talvez seja o mais antigo sermão cristão escrito para ser lido como uma pregação nas reuniões cristãs. Epístolas também eram lidas em reuniões cristãs, mas Hebreus não é uma carta para ser lida, mas é, de forma mais direta, um sermão para uma pregação.

 

20. O Apocalipse profetizou a vinda de um futuro governo mundial de um anticristo.

A interpretação do Apocalipse como uma profecia sobre um futuro governo mundial de um anticristo não se encontra no texto, no qual nem sequer aparece a palavra “anticristo”. O livro do Apocalipse é, na verdade, uma crítica direta ao Império Romano e às suas opressões. A figura da Besta, mencionada em Apocalipse, é uma metáfora para o imperador César Nero, que havia morrido pouco antes do Apocalipse ser escrito, mas cuja morte aparentemente violenta foi vista como uma "ferida" que, segundo a crença popular da época, poderia ser curada com seu retorno. Alguns acreditavam ou que Nero ressuscitaria ou estava refugiado no Império Parta (“reis do oriente”) após fingir a sua morte e de onde viria.

O texto fala de duas Bestas, uma que sobe do mar Egeu (o imperador romano) e outra sobre a terra (a elite político-religiosa de Roma espalhada pelo território romano). Apocalipse então profetiza o retorno de Nero para governar por 3,5 anos, em tempo de grande perseguição, tribulação e pragas divinas. A profecia de "3,5 anos" (ou 42 meses, 1260 dias) é uma referência direta ao livro de Daniel, que  usa essa mesma simbologia de "tempo, tempos e metade de um tempo" que o texto aplica a um futuro próximo em que Nero redivivo governaria. Isso significa que o autor do Apocalipse interpretou o “chifre pequeno” de Daniel como se referindo ao Nero redivivo. A ideia era a de que Nero retornaria para tomar o poder dos flavianos e que isso culminaria em uma guerra que levaria à destruição da cidade de Roma.

Nero estabeleceria novamente a moeda com seu rosto e com seu nome (666 - um código para o nome NERO CÉSAR). A moeda romana com o rosto e nome de Nero é a marca da Besta, sem a qual nenhuma transição comercial poderia ser feita. O fato da marca ser colocada na mão direita e sobre a testa representa um gesto simbólico que acreditava-se que seria exigido de ser feito com a moeda. A moeda com o rosto de Nero Cesar seria carregada na mão direita e nas transações comerciais, a pessoa iria colocar a moeda sobre a testa com o rosto de Nero, para demonstrar adesão ao governo.

Após 3,5 anos de governo de Nero redivivo, Cristo voltaria e estabeleceria na terra um governo muito mais longo, de 1000 anos (Apocalipse 20:1-6). Tudo isso deveria começar a acontecer muito em breve para o Apocalipse, ou seja, no final do primeiro século ou início do segundo. Portanto, se existe algum sentido que se possa falar de um “anticristo” em Apocalipse, para se referir à Besta, esse anticristo é Nero César, não um futuro governante mundial.




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