AS ORIGENS DO TOTALITARISMO - HANNAH ARENDT (RESUMO)


O que se segue é um resumo da importante obra As Origens do Totalitarismo da filósofa política Hannah Arendt. Arendt investiga as raízes dos regimes totalitários do século XX, o nazismo e o stalinismo, mostrando os fatores por trás dos movimentos e Estados totalitários. O texto se divide em três partes: (i) Antissemitismo; (ii) Imperialismo e (iii) Totalitarismo.  É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.

I. ANTISSEMITISMO 

É importante diferenciar o antissemitismo como ideologia leiga do século XIX e o antissemitismo como ódio religioso aos judeus. Por isso, há diferença entre o antissemitismo pré-totalitário (ódio religioso aos judeus) e o antissemitismo totalitário (antissemitismo como fator ideológico e político). A história do antissemitismo como ódio religioso aos judeus existe desde o início da dispersão judaica. É importante, quando se estudo a relação entre o totalitarismo e o antissemitismo, entender que não se pode confundir o totalitarismo com seus elementos, como se cada explosão de antissemitismo pudesse ser a priori identificada com o totalitarismo. A política totalitária, longe de ser simplesmente antissemita, racista, imperialista ou comunista, usa e abusa de seus próprios elementos ideológicos.  
A relação entre a ideologia nazista e o antissemitismo não aconteceu por acaso. O antissemitismo alcançou o seu clímax quando os judeus haviam perdido as funções públicas e a influência, e quando nada lhes restava senão sua riqueza. O antissemitismo é um exemplo de perseguição a grupos impotentes, ou em processo de perder o poder, um ódio àqueles que dispõem da riqueza sem o poder. A riqueza sem o poder é considerada altiva e revoltante. Os judeus deixaram de ser úteis, passaram a ser perseguidos e a ter sua existência coletiva destruída. 
Os judeus, por serem um grupo inteiramente impotente, ao serem envolvidos nos conflitos gerais e insolúveis da época, podiam facilmente ser acusados de responsabilidade por esses conflitos e apresentados como autores ocultos do mal. A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes. 
O aparecimento e o crescimento do antissemitismo moderno foram concomitantes e interligados à assimilação judaica, e ao processo de secularização e fenecimento dos antigos valores religiosos e espirituais do judaísmo. Nessas condições, os judeus que se preocupavam com a sobrevivência do seu povo descobriram, erroneamente, a ideia consoladora de que o antissemitismo podia ser um excelente meio de manter o povo unido. Essa atitude estava relacionada com a fé em sua “eleição” por Deus e com a esperança messiânica. Os judeus acabaram confundindo o moderno antissemitismo com o antigo ódio religioso antijudaico. 
O antissemitismo moderno não é fruto do nacionalismo tradicional, antes o crescimento de movimentos antissemitas coincidiu com o declínio do Estado-nação europeu. O esquema da ascensão e queda do sistema de Estados-nações europeus com relação ao povo judeu segue, grosso modo, os seguintes estágios: (i) séculos XVII e XVIII: o lento desenvolvimento dos Estados-nações processava-se sob a tutela dos monarcas absolutos; (ii) após a Revolução Francesa: surgiram Estados-nações no sentido moderno, cujas transações comerciais exigiam muito mais capital e crédito de que jamais dispuseram os judeus da corte; (iii) antes do surgimento do imperialismo no fim do século XIX: uma íntima relação entre judeus e governos foi facilitada pela indiferença geral da burguesia no tocante à política em geral e às finanças do Estado em particular; (iv) décadas que precederam a deflagração da Primeira Guerra Mundial: como grupo, o povo judeu do Ocidente europeu desintegrou-se juntamente com o Estado-nação.  
O antissemitismo surgiu como sério fator político na Alemanha, na Áustria e na França nos últimos vinte anos do século XIX, precedido por uma série de escândalos financeiros e negócios fraudulentos, cuja origem principal era uma superprodução de capital disponível. No século XX, tanto a comunidade judia quanto o Estado-Nação se desintegram, e os judeus passam a ser alvo de ódio. Cada classe da sociedade que, em um momento ou outro, entrava em conflito com o Estado tornava-se antissemita porque os judeus eram o único grupo social que parecia representar o Estado. 
Para entender a questão do antissemitismo, podemos citar o caso de Alfred Dreyfus, oficial francês de origem judaico que foi acusado injustamente de traição e espionagem. Todavia, o mesmo era inocente, pois a acusação foi baseada em documentos falsos. O caso Dreyfus ilustra o ódio aos judeus e a desconfiança geral para com a máquina do Estado.  


II. IMPERIALISMO  

 Só a partir de 1884 que o imperialismo, surgido do colonialismo e gerado pela incompatibilidade do sistema de Estados nacionais com o desenvolvimento econômico e industrial do último terço do século XIX, iniciou a sua política de expansão por amor à expansão, e esse novo tipo de política expansionista diferia tanto das conquistas de característica nacional, antes levadas adiante por meio de guerras fronteiriças, quanto da política imperialista que consistiu na formação de impérios, ao estilo de Roma. 
O século XIX terminou com a corrida dos países europeus para a África e com o surgimento dos movimentos de unificação nacional na Europa e o século XX começou com a Primeira Guerra Mundial. O período que vai de 1884 a 1914, marcando a transição do século XIX para XX, pode ser entendido como o período do imperialismo. Certos aspectos fundamentais dessa época assemelham-se tanto aos fenômenos totalitários do século XX quanto à calmaria integrante do século XIX.  
O principal evento intraeuropeu do período imperialista foi a emancipação política da burguesia, a primeira classe na história a ganhar a proeminência econômica sem aspirar ao domínio político. O imperialismo deve ser considerado o primeiro estágio do domínio político da burguesia. O imperialismo surgiu quando a burguesia, a classe detentora da produção capitalista, rejeitou as fronteiras nacionais como barreira à expansão econômicaA ideia central do imperialismo é a expansão como objetivo permanente e supremo da política. A expansão visa ao permanente crescimento da produção industrial e das transações comerciais, alvos supremos do século XIX. 
No entanto, a expansão não é um princípio político. Contrariamente à estrutura econômica, a estrutura política não pode expandir-se infinitamente, porque não se baseia na produtividade do homem, que é de certo modo ilimitada. A inerente contradição entre o corpo político da nação e a conquista como mecanismo político tornou-se óbvia desde o fracasso do sonho napoleônico. O surgimento de um movimento de expansão em Estados-nações que, mais que qualquer outro corpo político, eram definidos por fronteiras e pelas limitações de possíveis conquistas é um exemplo de contradição absurda.  
O que os imperialistas realmente desejavam era a expansão do poder político sem a criação de um corpo político. A expansão imperialista havia sido deflagrada por um tipo curioso de crise econômica: a superprodução de capital e o surgimento do dinheiro “supérfluo”, causado por um excesso de poupança, que já não podia ser produtivamente investido dentro das fronteiras nacionais. Isso conduziu à exportação do dinheiro que por sua vez levou à exportação do poder. Só a expansão dos instrumentos nacionais de violência poderia racionalizar o movimento de investimentos no estrangeiro e reintegrar na economia da nação as desenfreadas especulações com o capital supérfluo, desviado para um jogo que tornava arriscadas as poupanças. A primeira consequência da exportação do poder foi que os instrumentos de violência do Estado, a polícia e o Exército, foram delas separados e promovidos à posição de representantes nacionais em países considerados fracos ou não civilizados. 
Desde o início do século XX, o racismo reforçou a ideologia da política imperialista. a ideologia racista, com raízes profundas no século XVIII, emergiu simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século XIX. O racismo absorveu e reviveu todos os antigos pensamentos racistas, que, no entanto, por si mesmos, dificilmente teriam sido capazes de transformar o racismo em ideologia. No entanto, no fim do século XIX, o pensamento racista recebeu dignidade e importância, como se ele fosse uma das maiores contribuições espirituais do mundo ocidental.  
Embora seja óbvio que o racismo é a principal arma ideológica da política imperialista, ainda se crê na antiga e errada noção de que o racismo é uma espécie de exagerado nacionalismo. Contudo, estudos já provaram que o racismo não é apenas um fenômeno anacional, mas tende a destruir a estrutura política da nação. O racismo deliberadamente irrompeu através de todas as fronteiras nacionais, definidas por padrões geográficos, linguísticos, tradicionais ou quaisquer outros, e negou a existência político-nacional como tal. A ideologia racial, e não a de classes, acompanhou o desenvolvimento da comunidade das nações europeias, até se transformar em arma que destruiria essas nações. Historicamente falando, os racistas, embora assumissem posições aparentemente ultranacionalistas, foram piores patriotas que os representantes de todas as outras ideologias internacionais; foram os únicos que negaram o princípio sobre o qual se constroem as organizações nacionais de povos: o princípio de igualdade e solidariedade de todos os povos, garantido pela ideia de humanidade. 
Historicamente, na primeira fase do imperialismo, houve uma conjugação do racismo e do sistema burocrático, onde terras imensas caíram sob o domínio completo, não da lei, mas do decreto, onde seus nativos eram classificados como cidadãos inferiores na mera base de raça ou cor O Imperialismo se fez presente na expansão continental da Alemanha e da Rússia, que começou com os movimentos de unificação pan-germanista e pan-eslavista, que contribuíram, respectivamente, para o nazismo e o bolchevismo, combinando as nuances de um movimento de unificação étnica com as de uma ideologia racista. No entanto, na medida em que o século XIX se encerra com os movimentos de unificação, o século XX se inicia com a Primeira Guerra Mundial em 1914. Antes que a política totalitária conscientemente atacasse e destruísse a própria estrutura da civilização europeia, a explosão de 1914 e suas graves consequências de instabilidade haviam destruído a fachada do sistema político.  
Antes de considerar o Totalitarismo, é importante fazer aqui uma crítica aos direitos humanos. A Declaração dos Direitos do Homem, no fim do século XVIII, foi um marco decisivo na história. Significava que doravante o Homem, e não o comando de Deus nem os costumes da história, seria a fonte da Lei. Mas havia outra implicação que os autores da Declaração apenas perceberam pela metade. A Declaração dos Direitos Humanos destinava-se também a ser uma proteção muito necessária numa era secularizada em que os indivíduos já não estavam a salvo nos Estados em que haviam nascido, nem seguros de sua igualdade perante Deus. Como se afirmava que os Direitos do Homem eram inalienáveis, irredutíveis e indeduzíveis de outros direitos ou leis, não se invocava nenhuma autoridade para estabelecê-los; o próprio Homem seria a sua origem e seu objetivo último. 
Embora os Direitos do Homem houvessem sido definidos como “inalienáveis” porque se supunha serem independentes de todos os governos; sucedia que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los. Para os apátridas e as minorias a perda de direitos nacionais era idêntica à perda de direitos humanos, a primeira levava à segunda. O fundamental para se ter acesso a tais direitos era ter a posse de uma cidadania. Os Direitos Humanos não atenderam aos judeus, às minorias étnicas e aos refugiados.  

III. TOTALITARISMO  

Nada caracteriza melhor os movimentos totalitários em geral, e principalmente a fama de que desfrutam os seus líderes, do que a surpreendente facilidade com que são substituídos, foi assim com Lênin, Stalin e Hitler. Isso ocorre porque os movimentos totalitários só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia. 
Os regimes totalitários, enquanto no poder, e os líderes totalitários, enquanto vivos, sempre comandam e baseiam-se no apoio das massas. A atração que o mal e o crime exercem sobre a mentalidade das massas não é novidade, mas o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos. Eles continuam apoiando o movimento, mesmo quando eles mesmos se tornam vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados, para o assombro de todo o mundo civilizado, estará até disposto a colaborar com a própria condenação e tramar a própria sentença de morte. Dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte. 
Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas que, por um motivo ou outro, desenvolveram certo gosto pela organização política. As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto. 
O sucesso dos movimentos totalitários entre as massas significou o fim de duas ilusões dos países democráticos(i) a ilusão de que o povo, em sua maioria, participava ativamente do governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro; (ii) a ilusão de que essas massas politicamente indiferentes não importavam, que eram realmente neutras e que nada mais constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação. 
Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana. Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais, de família, amizade, camaradagem, só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento. A lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto, que poderia dar azo a mudanças de opinião. 
O que perturba os espíritos lógicos mais que a incondicional lealdade dos membros dos movimentos totalitários e o apoio popular aos regimes totalitários é a indiscutível atração que esses movimentos exercem sobre a elite e não apenas sobre os elementos da ralé da sociedade. Seria realmente temerário atribuir à excentricidade artística ou à ingenuidade escolástica o espantoso número de homens ilustres que são simpatizantes, companheiros de viagem ou membros registrados dos partidos totalitários. O que era tão atraente é que o terrorismo havia se tornado uma espécie de filosofia através da qual era possível exprimir frustração, ressentimento e ódio cego, uma espécie de expressionismo político. 
É desconcertante a atração que os movimentos totalitários exerceram sobre a elite, enquanto e onde não houvessem tomado o poder, porque as doutrinas patentemente vulgares, arbitrárias e dogmáticas do totalitarismo são mais visíveis para o espectador que está de fora. O que ocorre é que numa atmosfera em que todos os valores e proposições tradicionais haviam se evaporado era de certa forma mais fácil aceitar proposições patentemente absurdas do que as antigas verdades que haviam virado banalidades, exatamente porque não se esperava que ninguém levasse a sério os absurdos. O que atraía a elite era o radicalismo em si, que busca s destruir completamente todos os credos, valores e instituições existentes. 
 Enquanto a elite e a ralé traída pelo ímpeto do totalitarismo, as massas precisam ser conquistadas pelo totalitarismo por meio da propaganda. Sob um governo constitucional e havendo liberdade de opinião, os movimentos totalitários que lutam pelo poder podem usar o terror somente até certo ponto e, como qualquer outro partido, necessitam granjear aderentes e parecer plausíveis aos olhos de um público que ainda não está rigorosamente isolado de todas as outras fontes de informação. Quando o totalitarismo detém o controle absoluto, substitui a propaganda pela doutrinação. 
As formas da organização totalitária visam dar às mentiras propagandísticas do movimento, tecidas em torno de uma ficção central, a realidade operante e a construir, mesmo em circunstâncias não totalitárias, uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício. O movimento totalitário realmente leva a sério a sua propaganda, e essa seriedade se expressa muito mais assustadoramente na organização dos seus adeptos do que na liquidação física dos seus oponentes. 
Quando chegam ao poder, os líderes totalitários desprezam pactos diplomáticos e constitucionais e utilizam-se da multiplicação de órgãos para a constante transferência de poder. A única regra segura num Estado totalitário é que, quanto mais visível é uma agência governamental, menos poder detém; e, quanto menos se sabe da existência de uma instituição, mais poderosa ela é. Uma das importantes diferenças entre movimento e Estado totalitários é que o ditador totalitário pode e necessita praticar a arte totalitária de mentir com maior consistência e em maior escala que o líder do movimento. Mentir ao mundo inteiro de modo sistemático e seguro só é possível sob um regime totalitário, no qual a qualidade fictícia da realidade de cada dia quase dispensa a propaganda. 
Até hoje conhecemos apenas duas formas autênticas de domínio totalitário: a ditadura do nacional-socialismo, a partir de 1938, e a ditadura bolchevista, a partir de 1930. Essas formas de domínio diferem basicamente de outros tipos de governo ditatorial, despótico ou tirânico; e embora tenham emanado, com certa continuidade, de ditaduras partidárias, suas características essencialmente totalitárias são novas e não podem resultar de sistemas unipartidários. Diferente das ditaduras partidárias, os regimes totalitários procuram conscientemente manter todas as diferenças essenciais entre o Estado e o movimento e evitar que as instituições “revolucionárias” do movimento sejam absorvidas pelo governo. Todo o poder verdadeiro é investido nas instituições do movimento, fora da estrutura do Estado e do Exército. Todas as decisões são tomadas dentro do movimento, que permanece como o centro de ação do país. 
O totalitarismo no poder usa o Estado como fachada externa para representar o país perante o mundo não totalitário. Como tal, o Estado totalitário é o herdeiro lógico do movimento totalitário, do qual deriva a sua estrutura organizacional. Os governantes totalitários tratam os governos não totalitários da mesma forma como tratavam os partidos parlamentares ou as facções intrapartidárias antes de terem tomado o poder.  
Acima do Estado e por trás das fachadas do poder ostensivo, está o núcleo do poder do país, os supereficientes e supercompetentes serviços da polícia secreta. O primeiro estágio dos regimes totalitários é exterminar os inimigos reais. Só depois do completo extermínio dos reais inimigos e após o início da caça aos “inimigos objetivos” é que o terror se torna o verdadeiro conteúdo dos regimes totalitários. A principal diferença entre a polícia secreta despótica e a totalitária reside na distinção entre inimigo “suspeito” inimigo “objetivo”. Este último é definido pela política do governo e não por demonstrar o desejo de derrubar o sistema. Na prática, o governante totalitário age como alguém que persistentemente insulta outra pessoa até que todo o mundo saiba que ela é sua inimiga, a fim de que possa, com certa plausibilidade, matá-la em autodefesa. O dever da polícia totalitária não é descobrir crimes, mas estar disponível quando o governo decide aprisionar ou liquidar certa categoria da população. 
Os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível. Os campos destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas, da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são. 
O totalitarismo difere essencialmente de outras formas de opressão política que conhecemos, como o despotismo, a tirania e a ditadura. Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Se é verdade que podemos encontrar os elementos do totalitarismo se repassarmos a história e analisarmos as implicações políticas daquilo que geralmente chamamos de crise do nosso século, chegaremos à conclusão inelutável de que essa crise não é nenhuma ameaça de fora, nenhuma consequência de alguma política exterior agressiva.  
Em vez de dizer que o governo totalitário não tem precedentes, poderíamos dizer que ele destruiu a própria alternativa sobre a qual se baseiam, na filosofia política, todas as definições da essência dos governos, isto é, a alternativa entre o governo legal e o ilegal, entre o poder arbitrário e o poder legítimo. No entanto, o totalitarismo nos coloca diante de uma espécie totalmente diferente do governo. 
Num perfeito governo totalitário, todos os homens tornaram-se Um-Só-Homem, toda ação visa à aceleração do movimento da natureza ou da história, cada ato é a execução de uma sentença de morte que a Natureza ou a História já pronunciou, são condições nas quais se pode ter plena certeza de que o terror manterá o movimento em constante atividade. Não obstante, enquanto o governo totalitário não conquista toda a terra e, com o cinturão de ferro do terror, não transforma cada homem em parte de uma humanidade única, o terror, em sua dupla função de essência de governo e princípio não de ação mas de movimento, não pode ser completamente realizado.  
É importante considerar que as Cosmovisões e ideologias do século XIX não constituem por si mesmas o totalitarismo. Embora o racismo e o comunismo tenham se tornado as ideologias decisivas do século XX, não eram, em princípio, “mais totalitárias” do que as outras. Todas as ideologias contêm elementos totalitários, mas estes só se manifestam inteiramente através de movimentos totalitários. 
Podemos considerar três elementos especificamente totalitários, peculiares de todo pensamento ideológico(i) na pretensão de explicação total, as ideologias têm a tendência de analisar não o que é, mas o que vem a ser, o que nasce e passa; (iio pensamento ideológico liberta-se de toda experiência da qual não possa aprender nada de novo, mesmo que se trate de algo que acaba de acontecer; (iiicomo as ideologias não têm o poder de transformar a realidade, conseguem libertar o pensamento da experiência por meio de certos métodos de demonstração. O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade. 
O que prepara os homens para o domínio totalitário é o fato de que a solidão, que já foi uma experiência fronteiriça, sofrida geralmente em certas condições sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência diária de massas cada vez maiores. O impiedoso processo no qual o totalitarismo engolfa e organiza as massas parece uma fuga suicida dessa realidade. O “raciocínio frio como o gelo” e o “poderoso tentáculo” da dialética que nos “segura como um torno” parecem ser o último apoio num mundo onde ninguém merece confiança e onde não se pode contar com coisa alguma. 


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