O QUE A BÍBLIA DIZ SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE? - NICHOLAS WOLTERSTORFF (TRADUÇÃO)
Inicio este texto repetindo o que disse no texto anterior (aqui). Não sou especialista em nenhum dos assuntos que discutiremos. Não sou psicólogo, nem um erudito bíblico ou um especialista em ética cristã. Sou um amador em todas essas áreas. Portanto, não estou aqui como uma autoridade, dizendo o que você deve pensar sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Tudo o que estou fazendo é contar minha história pessoal de como fui lentamente mudando da posição tradicional sobre esses assuntos para minha posição atual de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é aceitável aos olhos de Deus.
Talvez algum leitor possa pensar: “Bem, Nicholas, se você não é especialista nessas questões, por que está querendo que gastemos nosso tempo lendo sua história pessoal amadora?”
Deixe-me explicar. Somente uma vez falei em público sobre este assunto: na palestra que mencionei no texto anterior que dei na Neland Ave. CRC em outubro de 2016. Não fiz essa palestra porque sentia um desejo interior de falar. Antes, um querido amigo meu, Clarence Joldersma, que leciona no departamento de educação do Calvin College, sabia que eu havia escrito extensivamente sobre justiça, acreditava firmemente que a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo levanta questões de justiça e me desafiou a falar sobre. Eu resisti. Ele continuou insistindo. Por fim, senti que não podia mais, em sã consciência, rejeitar o desafio que ele me lançara. Por isso dei a palestra.
No último texto, apresentei as considerações que gradualmente me levaram à conclusão de que o compromisso amoroso entre pessoas do mesmo sexo é aceitável aos olhos de Deus. Eu disse que, até onde pude ver, o casamento homossexual está totalmente de acordo com a lei do amor de Cristo.
Observei então que estava bem ciente do fato de que muitos de meus colegas cristãos discordam da conclusão a que fui levado. Alguns dos que discordam o fazem com base na tradição católica da lei natural. Até onde eu sei, todo mundo que discorda de mim, o faz com base em sua interpretação das Escrituras. Então eu disse a mim mesmo que, antes de chegar a uma conclusão final sobre o assunto, eu precisava considerar as passagens bíblicas relevantes.
Será que, perguntei a mim mesmo, as Escrituras deixam claro que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo violam inerentemente a lei do amor de uma maneira que eu havia ignorado? Ou será que as Escrituras ensinam que tais relacionamentos são errados, mesmo que não violem a lei do amor?
A questão prévia em relação a essas duas perguntas é, evidentemente, se as Escrituras realmente ensinam que as relações entre pessoas do mesmo sexo são inerentemente erradas. Então esta é a questão que temos diante de nós. Examinemos, pois, as passagens bíblicas relevantes. Faço isso com uma humilde consciência do que eu não sou um erudito bíblico. Sou m leitor cuidadoso das Escrituras, de fato; mas não um erudito bíblico.
Se tivéssemos espaço, eu dedicaria um texto inteiro para discutir como devemos interpretar as Escrituras. Mas dado nossa limitação, farei apenas duas breves observações.
Primeiro, as passagens relevantes devem ser lidas e interpretadas em seu contexto. A tradição reformada - da qual faço parte - sempre se declarou contrária à prática de extrair um ou dois versículos de seu contexto e usá-los para servir aos propósitos de defender alguma tese. Um exemplo disso, ocorre quando alguém isola um versículo de Provérbios de seu contexto para justificar bater em um filho.
Segundo: não há dúvidas de que os desenvolvimentos da sociedade estão levando alguns de nós a olhar novamente para estes textos a fim de ver se a interpretação tradicional está correta.
A tradição reformada, desde o início, sustenta que Deus escreveu dois livros para nós: o “livro das Escrituras” e o “livro da natureza”, como diz a Confissão Belga. Revelação especial e revelação geral. Cada livro deve ser interpretado à luz do outro. Interpretamos a revelação geral à luz do que aprendemos com revelação especial e interpretamos revelação especial à luz do que aprendemos com revelação geral. Eu poderia dar muitos exemplos da história da igreja de mudanças na sociedade e desenvolvimentos na ciência que levaram a mudanças na interpretação das Escrituras que todos nós agora aceitamos.
Seja como for. Sei que alguns podem se preocupar com o fato de que, neste caso, aqueles que não mais favorecem a interpretação tradicional das Escrituras sobre este assunto estejam permitindo que os desenvolvimentos da sociedade os levem a interpretar incorretamente as Escrituras. Eu compartilho desta preocupação; na minha opinião, todos devemos compartilhá-la. Será que a mudança na sociedade em relação a estes assuntos está nos levando a uma melhor interpretação das Escrituras ou está nos levando a uma interpretação errônea das Escrituras? Não importa qual seja a nossa posição, devemos, em espírito de oração, fazer a nós mesmos essa pergunta.
Vamos para os textos. Eu listei os mais comumente referidos. Embora eu não seja um erudito bíblico profissional, li bastantes comentários. E o que me surpreende é a extensão e a intensidade de discordâncias entre os especialistas quanto às conclusões a serem tiradas de alguns desses textos. A discordância é tal que me parece que nem mesmo um especialista pode dizer que fala com autoridade - fala com experiência, sim, mas não com autoridade.
Os dois primeiros textos (Gênesis 19; Juízes 19) de nossa lista relatam dois episódios absolutamente aterradores, nos quais alguns homens de uma cidade clamam a fim de terem permissão para estuprar um visitante do sexo masculino. Nos dois casos, o dono da casa se recusa a permitir esse ato “perverso”, como ele o chama. Mas então, em um dos casos, ele oferece suas duas filhas para sejam estupradas coletivamente e, no outro, ele oferece sua filha e sua concubina. Não encontrei nenhum comentarista que pense que possamos deduzir, a partir das declarações dos chefes de família sobre a perversidade do estupro de homossexuais, que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo sejam sempre moralmente errados.
Em seguida, temos os dois textos de Levítico (18.22 e 20.13). O contexto aqui é o código emitido a Israel por Moisés em nome de Deus. Se você ler todo o Código, encontrará muitas instruções que nos parecem realmente horríveis - entre elas, a instrução para matar aqueles que praticam a homossexualidade masculina. Desde o Concílio de Jerusalém, a que me referi no último texto, a igreja tem sustentado que o Código Mosaico não se aplica, em geral, aos cristãos gentios. O Concílio concluiu que as únicas proibições que se aplicam aos cristãos gentios são as exigências de que se abstenham das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue. Portanto, se achamos que algum componente adicional do código mosaico se aplica aos cristãos gentios, teremos que ter alguma razão para isso. Não podemos apenas apontar para o fato de que ele é um componente do Código Mosaico e concluir que ele se aplica aos cristãos gentios.
Na primeira das duas passagens de Levítico, Deus instrui Moisés a dizer a Israel que eles não devem seguir as práticas conforme as quais agem os egípcios e os cananeus. Diz-se que as práticas mencionadas de que devem abster-se de se envolver “contaminam” aqueles que as praticam. Muitos dos comentaristas que consultei argumentam que as práticas mencionadas nos versículos que citei eram provavelmente práticas cultuais do Egito e Canaã. Aparentemente, essas práticas cultuais geralmente incluíam sacrifício de crianças, prostituição masculina e sexo com animais.
Perguntemos: a passagem nos dá alguma razão para sustentar que, diferentemente da grande maioria do Código Mosaico, a proibição das relações homossexuais masculinas se aplica aos cristãos gentios?
Bem, diz-se que as relações homossexuais masculinas são uma “abominação”, enquanto nenhuma das outras práticas proibidas neste capítulo é considerada abominação. Poderia isso ser uma pista de que essa proibição vale para os cristãos gentios, enquanto as outras proibições não?
Nunca me deparei com o que me pareceu uma explicação bem fundamentada do que significava chamar algo de “abominação”. Todas as explicações oferecidas parecem-me, no fundo, suposições. As relações homossexuais masculinas não eram de modo algum a única coisa que se dizia ser uma abominação. No capítulo seguinte, lemos que se um sacrifício pacífico ao Senhor não é comido no segundo dia, mas é comido no terceiro dia, “é uma abominação”.
Mas não precisamos descobrir o que significava chamar algo de abominação. Presumivelmente, os judeus presentes no Concílio de Jerusalém sabiam o que se queria dizer. E eles não pensaram que algo o fato de algo ser chamado de “abominação” no Código Mosaico, implica que tal proibição se aplique aos cristãos gentios.
Em resumo, não vejo como esta passagem pode nos dar uma razão para sustentar que a proibição das relações homossexuais masculinas se aplique aos cristãos gentios.
O contexto da segunda passagem de Levítico em nossa lista não é sobre instruções em relação a como Israel se distingue das práticas de “profanação” do Egito e Canaã, mas, antes, faz parte do que é comumente chamado de “Código de Santidade” da lei mosaica. O Código de Santidade diz, entre muitas outras coisas, que Israel deve manter-se santo por não comer animais impuros, como porcos, por não usar roupas feitas de materiais diferentes, por não fazer marcas na pele e por não se envolver em práticas homossexuais masculinas.
Será que esta passagem nos fornece uma razão para concluir que, embora a maior parte do Código de Santidade não se aplique aos cristãos gentios, a proibição da prática homossexual masculina se aplica?
Aqui também, das práticas mencionadas na passagem, apenas a prática homossexual masculina é considerada uma abominação. Será que isso ser uma razão para concluirmos que esta proibição se aplica aos cristãos gentios?
Não, pelas razões mencionadas ao discutir a passagem anterior: independente do que significava chamar alguma prática de abominação, o Concílio de Jerusalém não entendeu que o fato de uma prática ser chamada de abominação implicasse que a proibição desta prática se aplicasse aos cristãos gentios.
Em resumo, esta passagem, como a anterior, não nos dá uma razão para sustentar que a proibição das relações homossexuais masculinas se aplique aos cristãos gentios.
Então vamos para o Novo Testamento. Até onde eu sei, não há discordância entre os tradutores sobre o significado das passagens do Antigo Testamento que vimos. No entanto, diferente disso, nas passagens de 1 Coríntios 6.9 e Timóteo 1.10; os tradutores levantam questões de significado calorosamente contestadas. Na passagem de Coríntios, aparecem homens que são chamados “malakoi” em grego e homens que são chamados “arsenokoitai” são condenados. Tanto a Nova Versão Padrão Revisada como a Nova Versão Internacional original traduzem “malakoi” como “prostitutos masculinos”; a Nova Versão Internacional mais recente traduz como “homens que fazem sexo com homens”. A Nova Versão Padrão Revisada traduz “arsenokoitai” como "sodomitas"; a Nova Versão Internacional original a traduzia como “transgressores homossexuais”. Não há diferença significativa entre elas. A Nova Versão Internacional mais recente traduz como “homens que fazem sexo com homens”.
Na passagem de Timóteo, aparece apenas a palavra “arsenokoitai”. A Nova Versão Padrão Revisada traduz novamente como “sodomitas”. A Nova Versão Internacional original traduziu como “pervertidos”. A Nova Versão Internacional mais recente traduz como “aqueles que praticam a homossexualidade”.
Entre a Nova Versão Padrão Revisada e a Nova Versão Internacional original, não há diferença significativa. Mas, enquanto a tradução da Nova Versão Internacional original apresenta Paulo nessas passagens condenando prostitutos e transgressores homossexuais, a tradução da Nova Versão Internacional mais recente condena “homens que fazem sexo com homens” e “aqueles que praticam homossexualidade”.
Considerem esta diferença: será que são formas perversas específicas da homossexualidade masculina que estão sendo condenadas ou é a homossexualidade masculina em geral? (Dave Jackson, em Risking Grace, alega que a mudança na tradução da Nova Versão Internacional foi devido à pressão contra a tradução original de “defensores influentes da visão tradicional a respeito da homossexualidade” p. 165).
Por trás dessas diferenças na tradução há intensa controvérsia entre os especialistas sobre o significado das palavras. O problema é que o termo “malakoi” ocorre raramente na literatura grega, e o termo “arsenokoitai” parece ter sido criado por Paulo reunindo duas palavras gregas e é usado, no Novo Testamento, apenas nessas duas passagens.
Diante dessas controvérsias entre especialistas sobre o significado das palavras cruciais, não vejo como podemos concluir decisivamente que essas passagens ensinam que a prática homossexual masculina é sempre moralmente errada. Talvez elas ensinem isso, talvez não.
Isso nos leva finalmente à passagem da epístola aos Romanos, em relação à qual todos (até onde eu sei) concordam que é decisiva. Milhares de páginas foram escritas sobre ela.
Nos versículos 20 a seguir do primeiro capítulo de Romanos, Paulo está claramente considerando as práticas cultuais profundamente corrompidas de muitas cidades do Império Romano. Alguns comentaristas argumentam que era comum os escritores judeus exagerarem a perversidade dos cultos. E soa como se Paulo estivesse exagerando. Mas, pelo que sei, todos concordam que o que estava acontecendo, em muitos lugares, era verdadeiramente corrompido e repulsivo.
Os casais homossexuais que eu conheço, que são membros fiéis da igreja, não são nada como os homossexuais que Paulo descreve aqui. Eles não são consumidos por luxúria e paixões degradantes, não são idólatras, não têm inveja, homicídios, contenda, etc. Não obstante, será que podemos inferir da condenação de Paulo à prática homossexual que ele tem em vista que a prática homossexual em todas as suas formas é moralmente errada - mesmo dentro de um vínculo de compromisso amoroso?
Há muito o que dizer e muito que foi dito sobre a passagem de Romanos. Mas para a questão que nos preocupa, acho que se resume, em última instância, ao que Paulo quer dizer com “mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza”. O que ele quis dizer aqui com “contrário à natureza”?
Um ponto preliminar é que Paulo é bastante mais livre no uso da palavra “natureza” do que nós geralmente somos. Em 1 Coríntios 11.14, ele diz: “Ou não vos ensina a própria natureza ser desonroso para o homem usar cabelo comprido?” A palavra grega “atimia”, traduzida aqui como “desonroso”, é a mesma palavra que Paulo usa em Romanos 1.24 quando descreve o povo que tem em mente como entregues “para desonrarem o seu corpo entre si”. João Calvino, em seu comentário sobre a passagem de 1 Coríntios 11.14, diz que o que Paulo chama de natureza é “o que era naquele tempo de uso comum por consentimento e costume universais”. Essa interpretação me parece correta.
Seja como for, o que Paulo poderia pensar que seria “contrário à natureza" na prática homossexual? Uma possibilidade que acho plausível é que Paulo esteja aqui expressando a ideia, comum entre os judeus da época, de que não era natural que um homem fosse passivo no ato sexual. Fílon de Alexandria, um proeminente escritor judeu contemporâneo de Jesus e Paulo, escreveu sobre “parceiros passivos, que se habituam a suportar a doença de serem efeminados ... e não deixam nenhum membro de sua natureza sexual masculina inflamar-se".
Outra possibilidade sobre o que Paulo poderia ter entendido como “contrário à natureza”, que nos últimos anos se tornou comum entre os que defendem a posição tradicional, é que Paulo está aqui aludindo a Gênesis 2, onde, dizem esses escritores, somos apresentados ao princípio do que eles chamam de “complementaridade de gênero”, um princípio que, segundo eles, aparece em toda a Escritura, e é fundamental para a compreensão de como Deus ordena que os sexos devem se relacionar e implica que as relações homossexuais são sempre erradas.
Duvido que Paulo esteja de fato aludindo a Gênesis 2. O que ele diz neste capítulo sobre Deus como Criador é muito diferente do que se lê em Gênesis 2. Mas façamos uma concessão.
Qual é o princípio da complementaridade de gênero que, segundo afirmam esses autores, nos é apresentado em Gênesis 2? Nunca me deparei com uma declaração clara do princípio que eu pudesse citar. Robert Gagnon, um dos principais promotores da ideia, fala longamente sobre o princípio sem nunca o explicar. Mas fiz o possível para entender ele e os outros, e acho que o que eles têm em mente é o seguinte: homem e mulher se complementam anatomicamente em relação à reprodução. Eles também podem se complementar de outras maneiras; com base em certos textos do Novo Testamento, alguns desses escritores argumentam que homens e mulheres também se complementam com relação aos homens que emitem diretrizes e às mulheres que obedecem a essas diretrizes. Mas complementar-se anatomicamente com relação à reprodução é algo visto como fundamental. Eis o que diz Gagnon: “A naturalidade das uniões entre sexos opostos é facilmente visível de acordo com a anatomia e a fisiologia - isto é, no que diz respeito à capacidade reprodutiva - e em uma série de aspectos interpessoais que contribuem em nossos dias para o slogan popular 'homens são de Marte e mulheres são de Vênus'.”
É verdade, é claro, que homem e mulher se complementam anatomicamente em relação à reprodução. Sobre isso, não pode haver controvérsia. Mas esses escritores não apenas afirmam esse princípio óbvio. Eles afirmam que, em Gênesis 2, somos ensinados que Deus criou Eva como anatomicamente complementar a Adão para propagar a humanidade, e que podemos deduzir, a partir disso, que as relações homossexuais são sempre erradas.
Não vejo como podemos fazer essa inferência. Nenhum dos escritores que li sobre isso explica como se segue da alegação de que Deus criou a mulher como complementar em relação ao gênero para o homem que as relações entre pessoas do mesmo sexo são sempre moralmente erradas. Mas vamos considerar o texto para ver se ele realmente ensina a complementaridade de gênero.
Uma das várias maneiras pelas quais a história da criação em Gênesis 2 difere da história em Gênesis 1 é que, em Gênesis 2, Deus cria Adão antes de criar os animais. Depois de criar Adão, Deus diz: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea.” (18). Então Deus cria os animais, traz os animais diante de Adão, e Adão os nomeia. Mas ele não encontra ninguém que possa ser “uma auxiliadora que lhe fosse idônea.” (20). Observe bem: o escritor não diz que Adão não encontrou nenhum animal que fosse complementar em relação ao gênero - nenhum com quem ele pudesse ter sexo reprodutivo. O escritor diz que não encontrou nenhum que pudesse ser um auxiliador. Adão ainda se encontrava só.
Deus então faz com que Adão caia em um sono profundo, extrai uma de suas costelas e faz dela uma mulher e a traz ao homem depois que ele acorda. Adão não diz nada que possa ser interpretado como significando que agora, finalmente, ele possui alguém que lhe é complementar em relação ao gênero quanto à reprodução. Nada nas declarações anteriores nos leva a esperar que ele diga isso. Ao invés disso, o que ele diz é: “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne” - ou seja, isto finalmente é uma criatura com a qual tenho parentesco, a sugestão é que, como uma criatura de mesmo parentesco, ela pode ser uma auxiliadora como parceira dele. (“osso dos meus ossos e carne da minha carne” é uma expressão usada com esse significado em muitos textos do Antigo Testamento.) Não se trata de uma complementaridade de gênero, mas de uma complementaridade de parentesco!
O escritor então diz: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.”. (Nestes dois versículos, obviamente, há um jogo sobre dois sentidos da palavra “carne”.) Não é o desejo reprodutivo que leva o homem a se apegar à mulher; é seu desejo por um certo tipo de companhia, descrita como sendo uma relação de parceria e de auxílio de um em relação ao outro. Acho interessante que, no Formulário da Igreja Cristã Reformada para a Solenização do Casamento, a primeira coisa que se diz sobre a intenção de Deus para o casamento é que “ele proporcionaria um contexto no qual marido e mulher pudessem ajudar e confortar um ao outro e encontrar companheirismo”. Isso é exatamente o que diz Gênesis 2.
Movido por seu desejo por companheirismo, o homem se une à mulher de tal maneira que os dois se tornam uma só carne. Tornar-se uma só carne inclui ter relações sexuais com ela. Mas tornar-se uma carne, no sentido bíblico, inclui muito mais do que isso. (Na passagem de 1 Coríntios 6.16 podemos ver Paulo se esquivando de dizer que fazer sexo com uma prostituta é suficiente para que eles se tornem uma só carne [sarx]. Ele diz que eles se tornam um só corpo [soma]). De alguma maneira difícil de descrever, os dois se tornam um).
Na passagem de Efésios, Paulo menciona parte do que está envolvido em se tornar uma só carne (ele não faz menção a relações sexuais). E então, depois de dizer que tornar-se uma carne é um “grande mistério”, ele diz que a relação da Igreja com Cristo é como duas pessoas se tornando uma só carne.
Em resumo, não encontro na passagem de Gênesis 2 algo que diga que o propósito de Deus ao criar a mulher era dar ao homem uma que lhe fosse complementar em relação ao gênero. O propósito declarado de Deus era fornecer ao homem uma criatura de mesmo parentesco que pudesse ser sua companheira, sua parceira auxiliar. E o desejo do homem por uma companheira o leva a se unir à mulher de uma maneira que os escritores bíblicos descrevem como “tornar-se uma só carne”. O propósito implícito do casamento não é funcionar como uma relação de equivalência de gênero, mas representar o mistério de se tornar uma só carne.
Então, o que podemos concluir sobre a moralidade das relações entre pessoas do mesmo sexo a partir dessa passagem? Podemos concluir que as relações entre pessoas do mesmo sexo são sempre moralmente erradas? Não me parece ser o caso. Suponha que alguém veja em uma pessoa do mesmo sexo alguém que possa ter como companheiro, e suponha que isso o leve a se tornar uma só carne com ele, da maneira misteriosa e profunda a que Paulo alude. Podemos deduzir, a partir do texto de Gênesis 2, que o que eles estão fazendo é errado? Não parece ser esse o caso.
Entramos nesta discussão a respeito de Gênesis 2 porque alguns comentaristas sustentam que a declaração de Paulo em Romanos 1, de que as relações entre pessoas do mesmo sexo são contrárias à natureza, é uma alusão a Gênesis 2, onde, segundo eles, aprendemos que Deus criou a mulher para o propósito de ser complementar em relação ao gênero para o homem, e isso implica que as relações entre pessoas do mesmo sexo são sempre moralmente erradas. Eu acho que essa interpretação de Gênesis 2 é uma interpretação equivocada.
Para concluir: até onde eu posso ver, as Escrituras não ensinam ou sugerem de maneira clara que as relações entre pessoas do mesmo sexo são sempre moralmente erradas - erradas mesmo no contexto do amor compromissado. Eu sei que alguns podem discordar da minha posição. Eu respeito isso. Os que discordam de mim possuem comentaristas qualificados e responsáveis ao seu lado, assim como eu. Esta é a posição desconfortável em que nos encontramos, atualmente, na igreja cristã.
Comentários