FILOSOFIA E CIÊNCIA - HEIDEGGER (RESUMO)
O que se segue é um resumo da primeira
seção do livro Introdução à Filosofia do
fenomenólogo existencial Martin
Heidegger. Heidegger discute a relação entre Filosofia, Ciência e Verdade.
Ele apresenta um conceito originário de verdade enquanto desvelamento mostrando
como a definição tradicional de verdade como correspondência com a realidade é
apenas um sentido derivado de verdade. Distinguindo ser e ente, Heidegger
apresenta a Ciência como conhecimento particular do ente e a Filosofia como
filosofar que se direciona em relação ao ser. É importante colocar que este
resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem
paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor
original.
I. O QUE SIGNIFICA FILOSOFIA?
As ciências não são um acúmulo de saber
aprendido de maneira técnico-disciplinar nas universidades, pertence
primariamente ao conceito de ciência que ela seja investigação. Há quem fale da
filosofia como sendo uma ciência
fundamental ou uma “ciência de rigor”, uma “filosofia científica”, contra isto
é preciso dizer que a filosofia não é ciência. No entanto, isso não significa
necessariamente que a filosofia seja não-científica. Filosofia é filosofar, a
filosofia precisa ser determinada a partir de si mesma.
O motivo pelo qual a filosofia não é
ciência não está em uma incapacidade de se aproximar de um ideal de ciência,
não se pode acusar de falta de cientificidade algo que não deve ser ciência. Ao
contrário, ela não é nenhuma ciência porque o que a ciência só possui em um
sentido derivado a Filosofia possui de uma maneira originária. A filosofia é
essencialmente uma possibilidade humana, ela é um modo, um tipo fundamental do
comportamento. Filosofia é filosofar.
II. A PERGUNTA SOBRE A ESSÊNCIA DA
CIÊNCIA
Podemos falar de uma crise das ciências,
esta crise se dá de maneira tripla: (i) crise
na estrutura interna da própria ciência: por um lado as ciências apelam
para os fatos e métodos consolidados e, por outro lado, operam rápido demais
com ideias e conceitos filosóficos tomados de empréstimo em algum lugar
qualquer e trazidos de fora para o interior da ciência, isso mostra o quanto as
ciências estão distantes da intelecção da essência da ciência; (ii) crise da ciência no que diz respeito à
sua posição no todo de nosso ser-aí histórico social: a popularização da
ciência fez com que ela fosse fundamentalmente mal compreendida em sua
essência, ou seja, por promover uma destruição interna da essência, a
popularização da ciência promove uma destruição interna da própria ciência; (iii) crise na relação do indivíduo com a
própria ciência: a posição da existência do indivíduo em relação à ciência
está em crise devido ao fato de estar absolutamente indeterminado e inexplicado
como é que algo como a ciência encontra-se disposto no ser-aí humano como algo
próprio à sua essência.
A ciência é entendida
como sendo conhecimento metódico, sistemático e universalmente válido. A exatidão é tomada como marca
característica da ciência, no entanto, a exatidão pode ser justamente
inadequada em relação ao objeto a ser conhecido de modo que a exatidão pode
trazer a não-verdade consigo. Para ser considerada rigorosa, uma ciência não
precisa ser exata, embora possa ser que o caráter de rigor seja um caráter
necessário para a ciência.
Rigor
é o modo de conquista da verdade e a meta da ciência é a apreensão da verdade.
Rigor é um determinado caráter da apropriação referente à adequação do objeto do conhecimento. Essa adequação está presente
na definição tradicional de verdade como correspondência
com a realidade. Nesse sentido a verdade é entendida como verdade proposicional.
No entanto, o conceito tradicional de
verdade como adequação do intelecto à coisa não toca na essência originária da
verdade, a verdade proposicional é um sentido derivado de verdade. A concepção
tradicional de verdade estabelece sua sede na proposição de modo que a verdade
só poderia residir no enunciado. Se, de maneira derivada a verdade pode ser
atribuída à proposição enquanto enunciado, este sentido de verdade se funda em
algo mais originário que não possui o caráter de enunciado. O que é preciso fazer
agora é buscar compreender qual seria a essência mais originária da verdade.
III. VERDADE E SER
DA ESSÊNCIA ORIGINÁRIA DA VERDADE
COMO DESVELAMENTO
Todas as teorias filosóficas,
no momento mesmo em que estão se construindo, misturam-se a outras teorias
fazendo surgiu um sistema consolidado no mal sentido do termo. A filosofia
acaba por aspirar a só considerar como conhecimento aquilo que é demonstrado
racionalmente de modo argumentativo, dessa forma não se vê mais a instância de
uma intuição imediata em sua imediatidade. É preciso deixar de lado todas as teorias e concentrar esforços para reter e
realmente manter firme o fenômeno
como aquilo que está se mostrando.
No entanto, esse esforço pela primeira
apreensão do fenômeno ainda não é suficiente. Infelizmente, há na fenomenologia
a opinião funesta de que voltando-se para a mostração imediata das coisas e
descrevendo inteiramente as coisas como elas são, tudo estaria bem. Este tipo
de opinião só abre espaço para o erro de que a filosofia e a botânica seriam a
mesma coisa.
O enunciado é sempre o enunciado sobre algo, de modo que o “enunciar sobre” se movimenta no interior
e através de nossa permanência junto a
algo. Deixando de lado todas as teorias, isto é, nada de consciência, alma
ou representações, podemos nos lançar ao ser-junto-a
que foi coberto por teorias. Um ser-junto-a já se encontra à base da enunciação
e esse ser-junto-a caracteriza o modo de ser humano. O ente que cada um de nós
mesmos somos é o ser-aí-humano ou simplesmente ser-aí (Dasein).
Ser-junto-a é uma modalidade da
existência do ser-aí. Se queremos alcançar a essência originária da verdade e
compreender a partir dela a essência da ciência como um tipo de verdade, é
preciso que nos voltemos ao ser-aí. Chamamos de existência um caráter fundamental do modo como o ser-aí é. A
essência do ser-aí é a existência. O ser-aí e somente ele existe. Somente o
homem tem existência. Isso não significa que outro ente não seja efetivamente
real. A pedra, o giz, a roupa, a janela, o livro "estão-à-mão", o
espaço e os números "são", as plantas e os animais "vivem",
mas só o humano existe.
Em nossa permanência junto às coisas
sempre já temos diante de nós uma multiplicidade, uma totalidade de relações
conjunturais perpassa e domina a multiplicidade das coisas. Um contexto conjuntural consiste no fato
de tudo estar sempre relacionado ao todo, mostrando uma referência a ele e
devendo o seu si mesmo a essa referencialidade.
É só depois de já termos descortinado o contexto conjuntural que o ente pode
tornar-se manifesto para nós.
A manifestação do ente é um desvelamento. Desvelamento é o
significado da palavra grega geralmente traduzida como verdade (aleteia). Aquilo
que é verdadeiro, isto é, desvelado, é o próprio ente. Verdade significa,
portanto, desvelamento. A manifestação (verdade) do ente que nos é acessível em
sua multiplicidade é diversa e sempre dependente do modo de ser dos entes que
se anunciam. Um ente múltiplo sempre se torna manifesto para nós de muitos
modos. Alguns entes tem o modo de ser de uso, mas também pode-se falar do ente
que subsiste por si, como a pedra, do ente que vive (plantas e animais) e do
ente que existe, o ser-aí humano.
O ente que possui o modo de ser do ente
por si subsistente nunca pode ser-aí conosco. Somente o que por si mesmo é ser-aí
pode ser um ser-aí-com, um ser-com-outros. Só o humano e o humano
podem ser um com o outro. “Com”
significa participação. Ser-com-outros
não consiste em que eu conheça o outro e o outro me conheça, o “com” significa compartilhamento, significa ser de igual
maneira, é o comportamento em relação ao mesmo.
A mesmidade não designa inalteração, nem
constância substancial, nem identidade formal do ente consigo mesmo. Somos
junto ao mesmo no sentido de que algo é o mesmo para todos. O mesmo é aquilo
que é o mesmo para muitos. O ente por si subsistente junto ao qual somos é algo
compartilhado. Partilhar o ente por si subsistente entre nós significa que não
o despedaçamos e o distribuímos entre nós, mas o deixamos indiviso. Partilhamos
entre nós o ente sem que ele se altere. Partilhamos o tal ente como algo
compartilhado, de modo que esse algo compartilhado possibilita o ser-com-outro.
No ser junto ao ente por si subsistente
é um deixar-ser. O desvelamento
(verdade) advém ao ente, o ente é
primeiro verdadeiro e só depois a proposição sobre ele é verdadeira. É justamente
por meio do desvelamento (verdade) que deixamos esse ente ser o que ele é. Esse
deixar-ser encontra-se em uma relação de condição com a verdade.
Partilhamos entre nós o desvelamento do
ente. O compartilhamento é a verdade do ente. A verdade é o mesmo, e esse mesmo
é o que possibilita, como desvelamento, que o que está manifesto no desvelamento
se mostre como o próprio mesmo e, em verdade, se mostre a todos os que têm em
comum o desvelamento. O elemento compartilhado por nós é o desvelamento, é a
verdade que partilhamos entre nós. Ser-com-outros é um compartilhamento da
verdade. A verdade é, portanto, constitutiva para a estrutura do ser-com-outros
como um modo essencial do ser-aí.
O desvelamento apenas “advém” ao ente por si subsistente como
advir possível do desvelamento, mas “pertence”
ao ser aí na medida em que o desvelamento pertence a todo ser-aí como tal. A
pertença da verdade ao ser-aí-humano não implica em relativismo, pois não é o ser-aí humano quem decide o que deve
advir ao ente, antes o ser-aí se guia justamente por ele.
IV. VERDADE – SER-AÍ – SER-COM
O ter-sido-descoberto,
o desvelamento (verdade) do ente por si subsistente depende de modo decisivo do
ser-descobridor, do ser-aí, ou seja,
de sua existência. Ao ser-aí como um ente essencialmente descobridor pertence a
verdade. Na medida em que o ser-aí se mantém junto ao ente por si subsistente,
ele se detém no ter sido descoberto de tal ente. O modo como a verdade
(desvelamento do ente por si subsistente) pertence ao ser-aí é necessariamente
um compartilhamento da verdade.
Todo ter-sido-descoberto do ente por si
subsistente já deve se mostrar essencialmente como compartilhamento, a verdade
sobre o ente por si subsistente é necessariamente algo que o ser-aí compartilha
com outros. Mesmo que alguém que descubra algo não comunique essa verdade ao
outro, ele ainda a compartilha no modo da retenção.
De acordo com sua essência, o desvelamento do ente por si subsistente (o
ter-sido-descoberto) sempre é compartilhado por um ser-aí com outros seres-aí. O
desvelamento do ente é essencialmente algo compartilhado, ele nunca pertence a
um ser-aí singular como indivíduo.
O desvelamento do ente por si
subsistente pode ser chamado de descobrimento,
já o desvelamento do ente que tem o modo do ser-aí-humano, chama-se descerramento. A verdade enquanto
desvelamento do ente por si subsistente é constitutiva para o ser-com-outros e
pertence originariamente ao ser-aí, de modo que o descobrimento só é possível
no descerramento, isto é, no desvelamento que traz consigo o ser-aí.
V. O ÂMBITO ESSENCIAL DA VERDADE E
A ESSÊNCIA DA CIÊNCIA
Podemos resumir até aqui oito teses sobre a verdade:
(1) A
verdade está de tal modo correlacionada ao ente por si subsistente que ela
pode, mas não precisa advir ao ente. A verdade não pertence, de forma alguma, à
consistência essencial do ente por si subsistente, no entanto, chamamos de descobrimento ao desvelamento do ente
que possui o modo de ser do ente por si subsistente.
(2) O
descobrimento do ente por si subsistente só acontece porque um ser-aí
descobridor existe. O ser-aí é um ente que é desvelado a partir de si mesmo, o
desvelamento do ser-aí chama-se descerramento.
(3) Há
dois modos fundamentais de desvelamento do ente: verdade como descobrimento (desvelamento do ente por si
subsistente) e verdade como descerramento
(desvelamento do ente que tem o modo de ser-aí).
(4) A
verdade do ente por si subsistente, o descobrimento, se funda no descerramento
que, por sua vez, pertence à constituição ontológica do ser-aí.
(5) O
caráter de conjunto próprio aos seres-aí sempre aponta para um ser-com-outros.
(6) O
descobrimento é compartilhado na
abertura do ser-aí mesmo quando não há nenhum participante faticamente
presente.
(7) O
ser-aí é essencialmente verdade.
(8) A
verdade existe, isto é, seu modo de
ser é a existência e esse é o modo no qual algo assim como o ser-aí é.
A partir dessas teses, pode-se pensar
agora na determinação da essência da ciência a partir do conceito originário de
verdade. A ciência se mostra como um contexto de fundamentação de proposições
verdadeiras, a ciência é um tipo de verdade. No entanto, como considerado, a
verdade em seu sentido originário não é proposicional, antes é desvelamento do
ser-aí. Somente porque a verdade em seu sentido originário é desvelamento que
ela também pode se tornar, em sentido derivado, verdade proposicional. Se a
verdade como desvelamento pertence à essência do ser-aí e se a ciência é um
tipo de verdade, então, a ciência, em seu sentido originário, não é uma
produção humana acidental, mas algo que necessariamente pertence à essência do
ser-aí. Sendo a ciência um modo da existência humana pode-se falar num conceito existencial de ciência.
O ser-aí do homem europeu ocidental
atual é um ser-aí científico na
medida em que ele é um ser-aí cujo desvelamento do ente é determinado pelo
conhecimento científico. No entanto, a
ciência só se desenvolve com base numa manifestação já existente com o ser-aí
anterior à ciência. O ser-aí
pré-científico é um ser-aí que ainda não foi transpassado pela ciência.
Acredita-se que o ser-aí científico se
encontre numa posição evolutiva elevada que supera o ser-aí-primitivo. Mas não
é verdade que a ciência elimine a barbárie, nem se pode identificar o ser-aí
pré-científico com o ser-aí primitivo. Além disso, o que se chama de
"primitivo" pode muito bem possuir uma autenticidade que pode faltar
ao homem dito civilizado enquanto o homem dito não primitivo pode ser
inautêntico e bárbaro. A ciência não torna o homem necessariamente civilizado,
elevado e livre da barbárie. Apesar da ciência, e até mesmo com o uso dela,
existe em nossa sociedade ocidental uma barbárie com a qual a maioria se sente
confortável. A verdade científica não é nem a única espécie de verdade, nem a
mais elevada.
Todo comportamento do ser-aí é como tal
um ser-na-verdade. Conhecer em virtude da verdade é uma forma totalmente
específica de manter-se-no-desvelamento em virtude de um desvelamento do
próprio ente. Ciência significa ser no desvelamento do ente em virtude do
desvelamento do ente. O que importa é
deixar o ente ser o que e como ele é.
VI. SOBRE A DIFERENÇA ENTRE CIÊNCIA
E FILOSOFIA
O traço distintivo do
tipo de existência no qual ocorre o ser-na-verdade em virtude da verdade, isto
é, da ciência, reside no projeto da constituição ontológica. Por ontológico designa-se a compreensão do ser, enquanto por ôntico denomina-se o conhecimento do ente. O conhecimento científico enquanto conhecimento positivo do ente que se acha aí defronte
é um determinado tipo de conhecimento
ôntico.
Entendida a distinção entre ôntico e ontológico,
pode-se falar em: (i) verdade ontológica:
desvelamento do ser; (ii) verdade
ôntica: desvelamento do ente: (a)
descerramento: desvelamento do ente que existe no modo de ser-aí; (b) descobrimento: desvelamento do ente
por si subsistente. Podemos agora acrescentar mais algumas teses às oito teses
apresentadas sobre a verdade:
(9) A
verdade tomada como desvelamento do ente
só existe se o ser-aí existente compreende algo assim como o ser de modo que a verdade ontológica é
mais originária e, portanto, possibilitadora da verdade ôntica.
(10) A
verdade ontológica (desvelamento do ser) só é possível se o ser-aí estiver em
condições de, segundo sua essência, transcender (ultrapassar) o ente de modo
que a verdade ontológica funda-se na transcendência
do ser-aí, ela é transcendental.
(11) A
transcendência do ser-aí é a condição de possibilidade da diferença ontológica,
do fato de que é possível haver de algum modo uma diferença entre ser e ente.
A ciência transforma o ente em objeto e
só consegue fazer isso por meio do projeto ontológico, por meio d transcender
no qual o ser-aí se comporta em relação ao ser. O transcender leva a termo a
delimitação da ciência, a ciência é essencialmente ciência particular, ou seja, reside na essência da ciência o fato de não
poder haver nenhuma ciência universal. Como conhecimento do ente e não do ser, a
ciência é sempre ciência de um âmbito determinado e nunca do ente na
totalidade.
O que confere a clareza à ciência no
sentido de desvelamento do ente a
coloca simultaneamente na obscuridade no sentido do velamento do ser. O desvelamento sempre segue lado a lado com o
velamento. A compreensão de ser acontece em meio ao transcender, quando o
transcender é expressamente concebido como ser temos a filosofia. Filosofar é o
tornar-se-essencial do ser-aí em meio ao transcender expresso, em meio ao
questionar expresso do ser como tal. Enquanto a ciência é conhecimento positivo direcionado para o ente, a
filosofia está direcionada para o ser.
A finalidade da discussão da relação
entre ciência e filosofia era mostrar a partir da essência interna da própria ciência
o fato de residir nela um limite necessário, um limite por meio do qual a
ciência é justamente delimitada, indo além, essa delimitação se realiza na
filosofia. O transcender como compreensão de ser é filosofar e, sendo a
transcendência a constituição essencial do ser-aí, transcender enquanto
filosofar é ato de o ser-aí se tornar essencial em sua existência. Filosofar
como transcender não acontece como uma conduta arbitrária entre outras, mas sim
no fundo do ser-aí como tal.
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