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INTRODUÇÃO À ESTÉTICA TRANSCENDENTAL


 

O termo “estética” em seu sentido grego original significa “teoria da sensibilidade”. A sensibilidade é uma faculdade da mente responsável por receber os dados oriundos dos sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato) e organizá-los. transcendental, grosso modo, é o estudo filosófico do modo pelo qual conhecemos as coisas. Tradicionalmente, essa faculdade é concebida como passiva, ela não é capaz de produzir nada novo, a não ser receber impressões dos sentidos e configurar esses dados em imagens combinadas, mas sem realmente produzir algo de novo que transcenda a associação desses dados. Assim, a sensibilidade é passiva (receptiva), ela também é imediata na medida em que nos coloca em contato direto com o objeto percebido.  Esse contato, também, é “pré-lógico” na medida em que é anterior ao pensamento. O objeto da sensibilidade não é um objeto pensado, mas apenas percebido (intuído). 

    Kant adota essas noções tradicionais da sensibilidade, mas ele expande sua teoria em pelo menos dois pontos: (i) nem todo conhecimento oriundo da sensibilidade é empírico; (ii) há um elemento da sensibilidade que é ativo ou produtivo (a imaginação) - algo parcialmente antecipado por Berkeley. Quanto ao primeiro ponto, Kant é um sensibilista, alguém para quem todo conhecimento tem sua fonte, em termos de conteúdo cognitivo, na sensibilidade. Mas ele difere do empirismo, tese segundo a qual todo conhecimento envolve a cognição de um dado sensorial particular (um cheiro, uma cor, uma sensação tátil etc). Para Kant, há conhecimentos oriundos da sensibilidade, mas que não envolvem a cognição de um dado sensorial particular. Assim, a sensibilidade é uma fonte de conhecimentos não-empíricos, tese inovadora de Kant. 

A segunda tese inovadora de Kant, mas com precedentes em Berkeley, é a de que a sensibilidade possui uma faculdade que tem um aspecto ativo - a imaginação. Antes de Kant, a imaginação era concebida como tendo um papel limitado: combinar dados do sentido ou associá-los, mas sem produzir algo realmente novo. Os medievais, por exemplo, dividiam a sensibilidade (faculdade sensitiva cognitiva) em duas faculdades: (i) sentido externo: visão, audição, olfato, paladar e tato; (ii) sentido interno: fantasia, memória e cogitativa. Em alguns casos fantasia e imaginação são tomadas como sinônimos, a fantasia ou imaginação combina as impressões dos sentidos internos para construir uma “imagem sensível” ou “fantasma”. O fantasma envolve uma sinopse dos dados dos sentidos e uma combinação intermodal, isto é, a fantasia combina dados de diferentes sentidos para construir uma imagem do que é percebido (sentido comum). Em Kant, a imaginação recebe um papel muito mais ativo que não lhe foi conferida antes. No entanto, como o foco deste texto é a Estética Transcendental de Kant, o papel produtivo da imaginação não será tão aprofundado neste texto.  Este texto se divide nas seguintes partes: (1) Tipos de juízos; (2) Intuições puras do espaço e tempo e (3) A necessidade de pressupor a coisa em si. 

 

I. TIPOS DE JUÍZO 

 

    A teoria de Kant de que a sensibilidade é uma fonte de conhecimentos não-empíricos (puros), permite a ele reclassificar os tipos de juízos. Hume havia distinguido dois tipos de juízo: (i) juízos de relações de ideias: juízos relacionados com relações entre ideias, como matemática e lógica; (ii) juízos de fatos: proposições que dependem da experiência e observação do mundo para serem verificados, como "o sol nascerá amanhã". Em Kant, contudo, os juízos podem ser de cinco tipos. Primeiro irei colocar suas definições, seguindo Wayne Waxman e, depois, explicarei melhor as noções envolvidas:

(1) juízo analítico a priori puro: são juízos que apenas explicitam o que já está contido inerentemente no conceito do sujeito e que pressupõem os dados sensoriais apenas de modo distal (exemplo: “Toda consciência da unidade da síntese de um diverso da experiência é acompanhada da unidade necessária da apercepção” - não se preocupe se não entender o exemplo agora).  

(2) juízo analítico a priori impuro: são juízos em que o conceito está inerentemente contido no conceito de sujeito e que não envolvem a consciência de um dado sensorial particular, embora envolvam a infiltração de notas empíricas (exemplo:Todo solteiro é um não-casado). 

(3) juízo sintético a priori puro: são juízos em que o conceito do predicado não está contido intrinsecamente no conceito do sujeito, não envolvem a consciência de um dado sensorial particular e pressupõem as sensações apenas de modo distal (exemplo: “2+2=4”). 

(4) juízo sintético a priori impuro: são juízos em que o conceito do predicado não está contido intrinsecamente no conceito do sujeito, não envolvem a consciência de um dado sensorial particular, mas envolvem a infiltração de notas empíricas (exemplo: “A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade”).  

(5) juízo sintético a posteriori: são juízos em que o conceito do predicado não está contido intrinsecamente no conceito do sujeito e envolvem a consciência de um dado sensorial particular (exemplo: “o céu é azul”). 

A sensibilidade sozinha não é capaz de fornecer as condições suficientes para haver juízos, juízos envolvem também nossa faculdade de pensar (entendimento). Contudo, todo juízo, para que tenha conteúdo, depende da sensibilidade. É justamente pela sensibilidade ter uma “fonte cognitiva” que não é empírica, é que é possível haver algo como “juízos sintéticos a priori”, isto é, juízos necessários e universais de caráter ampliativo. Como há grande confusão na literatura sobre os conceitos de “analítico”, “sintético”, “a priori” e “a posteriori”, é preciso fazer esclarecimentos.  

É importante dizer que esses conceitos não têm os sentidos encontrado em autores como Carnap, Quine, Kripke e outros. É comum na filosofia analítica definir esses conceitos como: (i) analítico: proposição cujo valor de verdade é determinado simplesmente em virtude dos significados dos termos envolvidos; (ii) sintético: proposição cujo valor de verdade não é determinado apenas em virtude dos significados dos termos envolvidos; (iii) a priori: proposição que é conhecida de modo anterior ou independente da experiência; (iv) a posteriori: proposição que é conhecida com base na experiência. Esse não é o modo como Kant usa esses conceitos. 

Analítico e sintético em Kant, na realidade, têm a ver com o chamado princípio da separabilidade de Berkeley. De acordo com o princípio da separabilidade de Berkeley: se duas representações podem ser concebidas separadamente, isto é, se uma pode ser concebida sem conceber a outra, então sua conexão não é necessária. Para Berkeley não era possível conceber separadamente uma representação e seu caráter de ser percebido, toda representação é sempre concebida como uma representação percebida, até mesmo no próprio ato de representar. Com base nisso, Berkeley concluiu que ser é ser percebido. Por outro lado, Hume, seguindo Berkeley, usou o princípio para mostrar que a causa e o efeito podem ser representados distintamente, por exemplo, a fumaça pode ser representada existindo separadamente em relação ao fogo. Desse modo, a relação de causa e efeito não seria necessária. Por outro lado, “montanha” e “vale” são representações que não podem ser concebidas separadamente, de modo que sua conexão é necessária. 

Kant usa o princípio da separabilidade do seguinte modo: “se duas representações podem ser concebidas separadamente, isto é, se uma pode ser concebida sem conceber a outra, então sua conexão não é analítica”. A ligação pode ser necessária, mas não ser analítica. Essa conexão entre representações leva em conta tanto cointensionalidade (termos que tem os mesmos significados) quanto coextensividade (termos que tem os mesmos referentes). No caso dos juízos analíticos, há uma estrutura de contenção de representações, isto é, certas representações estão inerentemente contidas na outra por cointensionalidade ou coextensividade. Por exemplo, a representação “ser humano” envolve a contenção de representações de “animal” e “racional”, de modo que a representação “ser humano” não pode ser concebida sem as representações “animal” e “racional”. 

No caso de conceitos empíricos, como “árvore”, “água” e outros, novas notas podem ser “infiltradas” no conceito a partir de descoberta empírica, de modo que se considera na distinção a representação idealmente concebida. Por “notas”, entendemos características ou predicados que compõem a concepção de um objeto. Por exemplo, “água” inclui notas como “líquido”, “incolor”, “inodoro”, que foram descobertas pela experiência, mas já eram conhecidas muito antes da ciência. Antoine Lavoisier no século XVIII descobriu que água inclui também “H2O”. Isso significa que ser “H2O” passa a ser uma nota constitutiva do conceito de água de modo que o conceito de água idealmente representado, inclui representar não só “líquido inodoro e incolor”, mas também “líquido cuja composição química é H2O”, de modo que o juízo “água é H2O” é analítico. Nesse caso, trata-se de um juízo analítico a priori impuroque ele envolve a infiltração de notas empíricas. 

Para testar se um juízo é analítico, pode-se usar o teste do princípio da não-contradição. Um juízo analítico é aquele cuja negação é uma contradição. Por exemplo, tome a sentença “o ser humano é um animal racional”. Sua negação é algo como “o ser humano não é um animal racional”. Sabemos que ser humano significa “animal racional” de modo que a sentença “o ser humano não é um animal racional” corresponde a dizer “o animal racional não é um animal racional”, o que é uma patente contradição. Não se deve confundir algo ser uma contradição com algo ser necessariamente falso. A contradição envolve afirmar e negar uma propriedade a algo na mesma acepção, como afirmar que ao mesmo tempo que o ser humano é e não é um animal racional. 2+2=5 na matemática, por exemplo, não é uma contradição, mas uma proposição com sentido que é necessariamente falsa.  

No caso de representações que podem ser concebidas separadamente, mesmo que sua ligação seja necessária, trata-se de um juízo sintético. Por exemplo, em 2+2=4, o número “2”, o conceito de “soma” e a representação do “4” podem todos ser concebidos separadamente ou distintamente, de modo que sua ligação, mesmo que necessária, é sintética. Isso vale para os juízos geométricos, como “a soma de todos os ângulos internos de um triangulo é 180 graus” e, também, se quisermos atualizar os exemplos, para os juízos da lógica clássica de Frege. É por causa desse caráter sintético que a geometria, a aritmética e a lógica matemática têm potencialidades quase infinitas de ampliação.  

Há muitas verdades que a matemática ainda pode descobrir sobre as propriedades dos números ou novos teoremas sobre o triângulo. É o caráter sintético da geometria que permite que haja diferentes postulados geométricos com consequências diversas ou que haja conjecturas, como a Conjetura de Goldbach, que ainda podem ser provadas. Essa possibilidade de ampliação da aritmética ou de modelos de geometria não seria possível se esses conhecimentos fossem analíticos. O caráter ampliativo dessas áreas do conhecimento é dado pelas formas puras do espaço e tempo, que será estudado no próximo tópico. O espaço é responsável pelo elemento de justaposição presente, por exemplo, na representação justaposta em um mesmo espaço plano dos lados de um triângulo e o tempo é responsável pelo elemento de sucessividade, como a sucessão de números na aritmética.  Por isso, juízos matemáticos envolvem acréscimos oriundos das formas do espaço e do tempo, de modo que não podem ser meramente analíticos.

    Quanto à distinção entre “a priori” e “a posteriori” elas têm a ver com a consciência da cognição de conteúdo sensacional. Por conteúdo sensorial, entende-se dados particulares da sensação, como uma determinada cor, um determinado cheiro ou uma dada sensação tátil. A priori, portanto, não tem a ver com “antes da experiência”. Em Kant, nada é “antes da experiência” porque “todo conhecimento começa com a experiência”. Por isso, mesmo o juízo a priori mais puro pressupõe as sensações ainda que de forma distal. É importante também observar que quando Kant fala de “a priori” como “independente da experiência” ele quer dizer “aquilo que não depende da cognição de um dado empírico particular e não “aquilo que não depende da experiência em sentido nenhum”.  Considere o juízo “o céu é azul”, azul é um dado sensorial particular cuja cognição está presente no juízo “o céu é azul”, o que torna esse juízo a posteriori. 

    A posteriori, por sua vez, não deve ser confundido com a priori impuro. É possível que um elemento empírico componha um conceito, na verdade isso ocorre com conceitos empíricos. Quando a cognição de um conteúdo empírico está presente em um juízo, mas esse conteúdo empírico não é um dado sensorial particular, mas um conteúdo necessário e universal, o juízo é a priori impuro. Por necessário, entende-se aquilo que está universalmente e necessariamente presente em todas as representações reais e possíveis de um objeto. Os juízos da física são exemplos de juízos sintéticos a priori impuros enquanto os juízos em que conceitos empíricos são definidos são exemplos de juízos analíticos a priori impuros 

 

II. INTUIÇÕES PURAS DO ESPAÇO E DO TEMPO 

 

Para Kant, a sensibilidade possui duas formas a priori ou puras (não-empíricas) que permitem organizar os dados do sentido: o espaço e o tempo. O espaço se relaciona ao sentido externo e o tempo ao sentido interno. Essa distinção entre “interno” e “externo” não deve ser pensada em termos espaciais: “interno” é o que se refere as percepções da mente de seus próprios processos mentais enquanto “externo” se refere à percepção de objetos representados como distintos de nossos processos mentais internos. A filosofia sensibilista, antes de Kant, teve muita dificuldade de explicar como percebemos as coisas espacialmente e temporalmente.  

Se considerarmos nossas sensações em si mesmas, elas não são espaciais. Poderíamos conceber um ser que experiencia cores ou odores sem configurá-los de modo espacial. Alguns autores propuseram que nossa visão é pelo menos de duas dimensões. Poderíamos ver tudo ao nosso redor como se fosse uma tela 2D e não é possível concluir um espaço de três dimensões só com a visão. Para chegarmos a uma compreensão de um espaço tridimensional, seria preciso combinar os dados da visão com os do tato. O tato inclui desde a sensação motora dos movimentos de nossos globos oculares até a capacidade de pensar sensações táteis em termos de “em cima”, “abaixo”, “à direita” e “à esquerda”. Assim, o espaço seria resultado de uma combinação das sensações visuais e táteis. A visão de Locke, por exemplo, é de que a noção de espaço vem da combinação dos dados bidimensionais da visão com os dados tridimensionais do tato. 

Mas seria realmente suficiente a combinação de sensações táteis e visuais para produzir uma experiência de espacialidade? Berkeley argumentou que nenhuma sensação, nem mesmo tátil, é em si mesma espacial. Pelo princípio da separabilidade, pode-se pensar as sensações de modo distinto de sua representação enquanto espaciais. Pois, como poderia dados dos sentidos tão heterogêneos, como os visuais e táteis, serem simplesmente combinados para produzirem a noção de um espaço tridimensional? Por causa disso, em Berkeley, a imaginação já passa a ter um aspecto bem mais produtivo do que em seus antecessores, pois ela seria capaz de produzir a experiência de espacialidade. Assim, a espacialidade deve ser atribuída ao trabalho produtivo da imaginação, e não propriamente a um sentido, como o tato.

Kant e Berkeley partem de um ponto em comum, a crítica à teoria do espaço como uma sensação e a proposta de um papel produtivo da imaginação. No entanto, Kant foi muito mais radical em afirmar que a sensação não é espacial nem pode resultar da associação de sensações. Kant também rejeita a ideia racionalista de que o espaço seria um conceito do entendimento a partir do qual os dados dos sentidos seriam organizados, como no conceito de extensão em Descartes. Assim, Kant mantém duas teses: (i) que o espaço é uma intuição da sensibilidade; (ii) que o espaço não é empírico. Para provar esses pontos ele recorre aos argumentos abaixo.  As premissas foram colocadas como elementos que dão suporte à conclusão e não exatamente como uma estrutura argumentativa formal.

 

(1) Argumento da precedência do espaço:  

Premissa 1: Para que certas sensações sejam relacionadas a algo externo a mim, é necessário já ter a noção de espaço. 

Premissa 2: Para representar essas sensações como exteriores umas às outras e em diferentes lugares, a noção de espaço já precisa estar presente. 

Premissa 3: Se a representação do espaço fosse extraída da experiência, isso significaria que a experiência externa poderia ocorrer sem uma noção prévia de espaço. 

Premissa 4: No entanto, a experiência externa só é possível porque já temos a representação do espaço. 

Conclusão: Portanto, o espaço não é um conceito empírico extraído da experiência, mas uma representação a priori que possibilita a própria experiência externa. 

(2) Argumento da necessidade a priori do espaço: 

Premissa 1: O espaço é uma representação necessária para todas as intuições externas. 

Premissa 2: Não é possível ter uma representação na qual o espaço não exista, mas é possível pensar na ausência de objetos dentro do espaço. 

Premissa 3: Se o espaço fosse derivado da experiência, sua existência dependeria da presença de objetos sensíveis. 

Premissa 4: No entanto, como se pode conceber um espaço vazio (sem objetos), mas não uma experiência externa sem espaço, isso indica que o espaço não depende das aparências, mas sim as aparências dependem do espaço. 

Conclusão: Portanto, o espaço é uma representação a priori que fundamenta necessariamente todas as aparências externas, sendo a condição de possibilidade da experiência sensível. 

(3) Argumento da unidade do espaço:  

Premissa 1: Quando falamos de vários espaços, estamos nos referindo a partes de um único e mesmo espaço. 

Premissa 2: As partes do espaço não podem anteceder o espaço único que tudo abrange; elas só podem ser pensadas dentro dele. 

Premissa 3: O espaço é essencialmente uno, um e único.

Premissa 4: O caráter de único, um e uno é característico de intuições em oposição ao caráter de universalidade dos conceitos. 

Conclusão: Portanto, o espaço não é um conceito discursivo ou universal das relações das coisas, mas uma intuição pura. 

 

(4) Argumento do espaço como grandeza infinita 

Premissa 1: O espaço é representado como uma grandeza infinita dada. 

Premissa 2: Qualquer conceito é pensado como uma representação comum compartilhada por uma multidão infinita de representações diferentes possíveis, subsumindo-as.

Premissa 3: Nenhum conceito, enquanto tal, pode ser pensado como se encerrasse em si uma infinidade de representações. 

Premissa 4: O espaço é pensado como algo que encerra uma infinidade de representações (pois todas as partes do espaço existem simultaneamente no espaço infinito). 

Conclusão: Portanto, a representação originária de espaço é intuição a priori e não conceito. 

 

Os argumentos 1 e 2 provam que o espaço não é empírico, ou seja, os empiristas que acreditavam ser possível extrair a noção de espaço das sensações, estão equivocados. Já os argumentos 3 e 4 mostram que o espaço não é um conceito do entendimento, de modo que os racionalistas que entendiam que há no entendimento um conceito prévio de espaço a partir do qual a experiência pode ser organizada estão errados. Se o espaço não é nem empírico, nem intelectual, visto que há na mente humana  apenas duas grandes faculdades (entendimento e sensibilidade), só resta que o espaço seja alguma outra coisa. No sensibilismo kantiano, o espaço é sensível sem ser empírico, isto é, o espaço pertence à sensibilidade sem, no entanto, ser extraído das sensações. É nesse sentido que o espaço é uma intuição pura. Intuição é o termo que se refere às percepções imediatas da sensibilidade em oposição ao pensamento que pertence ao entendimento. Intuições são sempre imediatas e sobre uma representação única. Por puro, por outro lado, entende-se aquilo que não é empírico, isto é, que não envolve a consciência de um dado sensorial particular. 

O espaço da Estética Transcendental não deve ser confundido com o espaço nem da Física nem da Geometria. Isso ocorre porque a Física e a Geometria envolvem juízos e postulados, o que depende do pensamento, isto é, do entendimento. Como o espaço da sensibilidade ainda não é o espaço pensado, ele é um espaço indiferenciado e indeterminado. Isso significa que o espaço da Estética Transcendental é indeterminado quanto ao número de dimensões, quanto a ser curvo ou plano etc. Por isso, o espaço da Estética Transcendental não deve ser compreendido nem como um espaço que seja plano, tridimensional ou euclidiano. Ao contrário de uma interpretação comum, Kant não era um euclidiano dogmático, para quem o espaço só poderia ser considerado em termos do espaço euclidiano.  

Por isso, é importante distinguir alguns sentidos de espaço em Kant: (i) espaço como intuição pura: envolve tanto o espaço como forma da sensibilidade quanto sua representação enquanto uma intuição; (ii) espaço geométrico: é o espaço em termos de axiomas, postulados e teoremas e requer a contribuição das categorias do entendimento; (iii) espaço empírico: envolve o espaço científico objetivo e matematizável da física ao qual atribuímos 13,7 bilhões de anos; (iv) espaço fenomenológico: é o espaço como é vivido subjetivamente pelas pessoas. Os sentidos de espaço (ii), (iii) e (iv) dependem do (i), que é o sentido primário de espaço em Kant.  

Quanto ao tempo, a discussão sobre a experiência do tempo é complexa, porque o tempo não é uma sensação. Não percebemos o tempo e, portanto, uma teoria empirista do tempo não é capaz de explicá-lo. As sensações aparecem para nós em um fluxo temporal, mas o próprio tempo nunca aparece para nós como algo percebido dentro desse fluxo. Nem é suficiente recorrer à memória para explicar o tempo, pois cada memória é uma apresentação de uma representação no presente da consciência e, essa representação, embora possa em certo sentido reproduzir o passado, só pode se mostrar na consciência no presente. O fluxo temporal já aparece pressuposto em qualquer teoria que explique tempo em termos de memória. Se o tempo não é empírico, restaria nas teorias tradicionais que ele fosse intelectual, no entanto, Kant apresenta os seguintes argumentos para o tempo não ser nem empírico nem intelectual: 

 

(1) Argumento do tempo como condição a priori da percepção 

Premissa 1: Nem a simultaneidade nem a sucessão surgiriam na percepção se a representação do tempo não fosse o seu fundamento a priori. 

Premissa 2: Só pressupondo a representação do tempo podemos representar-nos que uma coisa existe num só e mesmo tempo (simultaneamente) ou em tempos diferentes (sucessivamente). 

Conclusão: Portanto, o tempo não é um conceito empírico (extraído de uma experiência determinada), mas uma representação a priori. 

 

(2) Argumento da necessidade a priori do tempo 

Premissa 1: O tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. 

Premissa 2: Não se pode suprimir o tempo em relação às aparências em geral, embora se possam abstrair as aparências do tempo. 

Premissa 3: O tempo é dado a priori, e somente nele é possível toda a realidade das aparências. 

Premissa 4: De todos as aparências pode-se prescindir, mas o tempo (enquanto condição geral da sua possibilidade) não pode ser suprimido. 

Conclusão: Portanto, o tempo é uma representação a priori e condição necessária para a experiência. 

 

(3) Argumento dos princípios apodíticos do tempo 

Premissa 1: A necessidade a priori do tempo fundamenta a possibilidade de princípios apodíticos das relações do tempo (axiomas do tempo). 

Premissa 2: Entre esses princípios estão que o tempo tem apenas uma dimensão e que tempos diferentes não são simultâneos, mas sucessivos. 

Premissa 3: Esses princípios não podem ser extraídos da experiência, pois a experiência não lhes concederia rigorosa universalidade nem certeza apodítica. 

Premissa 4: Esses princípios valem como regras que possibilitam as experiências e nos instruem antes delas, não mediante elas. 

Conclusão: Portanto, os princípios do tempo são a priori e não derivados da experiência. 

 

(4) Argumento da intuitividade do tempo 

Premissa 1: Tempos diferentes são unicamente partes de um mesmo tempo. 

Premissa 2: A representação que só pode dar-se através de um único objeto é uma intuição ao contrário do conceito que é universal.

Premissa 3: A proposição de que tempos diferentes não podem ser simultâneos é sintética e não pode ser derivada de conceitos. 

Conclusão: Portanto, o tempo não é um conceito discursivo ou universal, mas uma forma pura da intuição sensível.


(5) Argumento da infinitude do tempo 

Premissa 1: A infinitude do tempo significa que qualquer grandeza determinada de tempo é possível apenas por limitações de um tempo único que lhe serve de fundamento. 

Premissa 2: A representação originária do tempo tem de ser dada como ilimitada. 

Premissa 3: As partes e toda a magnitude de um objeto só podem ser representadas de maneira determinada por limitação. 

Premissa 4: A representação integral do tempo não pode ser dada por conceitos (que contêm apenas representações parciais), mas requer uma intuição imediata. 

Conclusão: Portanto, a representação do tempo é uma intuição imediata e não um conceito. 

 

Os argumentos (1), (2) e (3) provam que o tempo não é empírico e os argumentos (4) e (5) mostram que o tempo não é um conceito. Um conceito é universal, e com poucas notas nele enquanto uma intuição é algo único com muitas partes nele, este último é o caso do espaço. O espaço, portanto, pertence à sensibilidade, não ao entendimento. Mas ele também não pode ser empírico, toda experiência sensível pressupõe o espaço e o espaço não pode ser extraído das sensações. Portanto, o argumento é uma intuição não-empírica, isto é, pura. O mesmo raciocínio se aplica ao tempo, como veremos mais adiante.

Assim, nem o empirismo nem o racionalismo podem explicar o tempo. Os empiristas teriam de explicar o tempo como extraído da experiência enquanto os racionalistas teriam de ver o tempo como um conceito puro do entendimento que organiza os dados da experiência. Nenhuma das duas teorias se sustenta à luz dos argumentos acima, de modo que se deve atribuir à noção de tempo uma outra origem. Só no sistema de Kant há uma fonte adicional para a noção de tempo: a sensibilidade pura.  

 

III. A NECESSIDADE DE POSTULAR A COISA EM SI 

 

Que não percebemos a realidade como ela realmente é, é algo sabido há tempos. Tomás de Aquino, por exemplo, dizia que conhecemos os objetos materiais, não como eles realmente são em si mesmos, mas à maneira do intelecto, isto é, conhecemos o material de modo imaterial. O avanço das ciências cognitivas também tem mostrado o quanto nossa mente é construtiva, não processamos simplesmente as informações dos sentidos de modo passivo, mas construímos representações das coisas de forma produtiva.  

A física também revelou que o mundo pode ser muito diferente de como o representamos. O que chamamos de sensações, como cores, sons ou cheiros são apenas correlatos de coisas não-observáveis como ondas mecânicas, vibrações de partículas, espectros eletromagnéticos ou compostos moleculares. A biologia, por sua vez, demonstrou o quanto as formas sensoriais de representar o mundo podem variar entre os seres vivos. Um exemplo notável são os morcegos, que possuem sentidos completamente ausentes em nossa experiência, como a ecolocalização, que lhes permite "enxergar" por meio de ondas sonoras. Outro exemplo são as abelhas, que enxergam luz ultravioleta, ou as cobras, que detectam radiação infravermelha. 

Poderíamos, também, usar nossa imaginação para pensar seres com sentidos completamente diferentes dos nossos, capazes de processar informações sensoriais que nenhum animal conhecido processa. Imagine um ser capaz de perceber e interpretar campos magnéticos de forma direta e detalhada, como se "enxergasse" as linhas de força magnética ao seu redor. Esse sentido permitiria que ele navegasse por ambientes complexos, identificasse objetos metálicos ou até mesmo "sentisse" a presença de correntes elétricas. Além disso, ele poderia detectar mudanças sutis no campo magnético da Terra, usando isso para se orientar em longas distâncias ou prever fenômenos naturais, como tempestades solares. Esse sentido seria tão natural para ele quanto a visão é para nós, mas seria completamente incompreensível para nossa experiência sensorial.  

Wayne Waxman propõe o seguinte exercício: Imagine um ser cuja percepção do tempo é tão diferente da nossa que ele consegue processar eventos que para nós são ultrarrápidos de forma gradual e detalhada. Por exemplo, enquanto nós vemos o bater de asas de um beija-flor como um borrão indistinto, esse ser seria capaz de perceber cada batida de asa individualmente, como se o tempo estivesse "desacelerado" para ele. Para esse ser, o movimento rápido do beija-flor seria uma sequência clara e distinta de eventos, como se ele estivesse observando um vídeo em câmera lenta.  

A Teoria da Evolução também sugere que a maneira como representamos o mundo tem mais a ver com uma construção representativa que nos permita entender e agir no mundo de modo a garantir nossa sobrevivência e transmissão de genes, do que com uma representação fiel de como as coisas são em si mesmas. É, portanto, ingênuo achar, dada a ciência atual disponível, que o mundo é como o percebemos. Isso não significa negar que haja alguma relação entre nossa representação do mundo e a coisa em si mesma, o mundo como o representamos é como processamos dados da realidade e guarda alguma relação com esses dados, mas não uma relação de identidade ou espelhamento. 

 Uma ilustração interessante proposta por Bernardo Kastrup é a do dashboard de um avião que representa de modo útil as condições externas do avião sem ser essas próprias condições. O altímetro mostra a altitude, mas não é a altitude em si. O velocímetro indica a velocidade, mas não é a velocidade em si. O termômetro exibe a temperatura, mas não é a temperatura em si. 

Por isso, Kant distingue de um lado a matéria das sensações e as próprias sensações. Se os empiristas falavam apenas de “impressões” ou “sensações”, a teoria da sensibilidade de Kant não permite mais esse vocabulário simples. As sensações como a de cor, a de cheiro ou uma experiência tátil apenas equivale a algo fora de mim que tem uma materialidade que eu não acesso diretamente. Essas sensações, ainda, são configuradas de acordo com as formas do espaço e o tempo. Assim, temos aquilo que equivale à matéria das sensações configurado nas formas do espaço e tempo, a isso damos o nome de aparências. As aparências não devem ser confundidas com “fenômenos”. Os fenômenos são as aparências determinadas pelas categorias do pensamento. Na sensibilidade não há fenômenos, só aparências.  

As aparências envolvem, pois, um aspecto formal (espaço e tempo) e um conteúdo material (as sensações). Aqui fica claro a necessidade de pressupor uma “coisa em si”. Kant foi acusado de ser um idealista berkeliano para quem não há nenhuma matéria a não ser enquanto percebida pela mente. Isso é impossível no sistema de Kant. A sensibilidade é uma faculdade receptiva e que dá conta apenas do aspecto formal das aparências. Por isso, a sensibilidade não é capaz de produzir a matéria das aparências. Pense, por exemplo, em um bolo. No bolo temos a massa e a forma. A sensibilidade só explica a forma – de onde vem a massa do bolo? É a presença do conteúdo material das aparências que exige inferir a coisa em si, ainda que ela não possa ser conhecida, já que não temos como ter acesso aos objetos como eles são em si mesmos independentemente de como os representamos. Algo que não é uma representação, nada é para nós. 

Alguns acham que aqui há uma suposta contradição: a coisa em si é incognoscível, mas ao mesmo tempo conhecemos algo sobre ela, isto é, que ela existe. Uma analogia pode nos ajudar a perceber porque isso não é uma contradição: a analogia da cortina escura. Imagine que você está em uma sala onde há uma cortina escura que separa você de outra parte e não permite ver o outro lado. Pelos movimentos na cortina você poderia inferir que há algo do outro lado, mas sem ter informações suficientes para realmente conhecer o que há do outro lado. A coisa-em-si é incognoscível no sentido de que não podemos acessar sua natureza, mas podemos inferi-la com base nas aparências que intuímos. 

 


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Bruno dos Santos Queiroz

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