AUTOACEITAÇÃO INCONDICIONAL

 O objetivo deste texto é apresentar e desenvolver a noção de “autoaceitação incondicional”. Penso o termo e o utilizo a partir da compreensão do psicólogo estadunidense Carl Rogers, que pensou o conceito de “aceitação incondicional”. O termo, conforme usado por Rogers, significa aceitar o paciente sem condições. Refletindo sobre isso, pensei em como essa atitude diante do outro poderia se converter numa atitude diante de si mesmo, donde me ocorreu falar em “autoaceitação incondicional”. Como ninguém inventa a roda, descobri que o termo já existia, embora não sei se para dizer o mesmo que pretendo. Ainda é preciso dizer que autoaceitação não significa autoestima, não pretendo falar de autoaceitação no sentido de autoestima, mas sim de uma atitude existencial de amor incondicional a si mesmo que abrange, inclusive, acolher nossos “sentimentos de baixa autoestima”. 

Comecemos com o conceito rogeriano de aceitação incondicional e pensemos como podemos ter essa atitude, primariamente pensado na relação psicoterapeuta-cliente, na relação eu=>si-mesmo. Carl Rogers assim explica seu conceito: 

 

“É sempre altamente enriquecedor poder aceitar outra pessoa. Verifiquei que aceitar verdadeiramente uma pessoa e seus sentimentos não é nada fácil, não mais do que compreendê-la. Poderei realmente permitir que outra pessoa sinta hostilidade em relação a mim? Poderei aceitar sua raiva como uma parte real e legítima de si mesma? Poderei aceitá-la quando ela encara a vida e seus problemas de uma forma completamente diferente da minha? Poderei aceitá-la quando tem para mim uma atitude positiva, quando me admira e me toma como modelo? Tudo isto está englobado na aceitação e não surge facilmente.” (Tornar-se pessoa) 

 

Rogers chama o psicoterapeuta a amar seu cliente sem estabelecer condições e sem fazer qualquer julgamento. Ainda que aquilo que o outro expressa seja ódio contra nós, ainda que o outro nos seja hostil, a atitude do psicoterapeuta é positiva no sentido de aceitar a pessoa do cliente. Só assim o cliente pode se sentir amado pelo que é. Talvez isso faça surgir a questão: “Mas aceitar o outro como ele é, não significaria justificar que ele continue sendo como é?” Por exemplo, se aceito um assassino, embora ele seja um assassino, não estarei sendo conivente que ele continue matando pessoas? A resposta de Rogers é justamente o oposto, é quando a pessoa se sente aceita pelo que ela é, que uma mudança genuína pode acontecer. 

Pensemos em porque mudamos. Desde criança somos ensinados pelos nossos pais que se agirmos mal podemos ser punidos, com castigos ou apanhando. Por outro lado, se agirmos bem, somos recompensados, às vezes com elogios, brinquedos e presentes. Em tudo isso, a mensagem que nos é comunicada é algo assim: “você será amado se comportar-se bem”. Na escola a mesma lógica impera: “seja um aluno estudioso e receberá boas notas”.  Na Igreja, ouvimos que o próprio Deus nos trata assim: “Obedeça à lei divina, e assim agradarás a Deus.” Somos ensinados que devemos mudar para sermos amados. Muitas vezes mudamos para receber amor e nossa vida passa a consistir numa busca em agradar o outro. 

Quanto sofrimento é produzido pela ideia de que precisamos cumprir exigências e condições para recebermos amor e aceitação? Talvez boa parte de nossa culpa, nossos medos, frustrações e ansiedades se expliquem porque somos dominados pela lógica do “mude para ser aceito”. Uma mudança que assim se efetue não é autêntica, não parte de nós mesmos, não pode ser genuína. A mudança real só pode ocorrer a partir da compreensão de que somos amados, independente do que façamos ou deixemos de fazer. Só quando me sinto aceito como sou é que posso mudar verdadeiramente, pois não mudarei para ser amado, ao contrário, é por já ser amado que posso experimentar genuína mudança. 

É nesse sentido que Carl Rogers escreve:  

 

“Acho que quanto mais aceitação e apreço sinto com relação a um indivíduo, mais estarei criando uma relação que ele poderá utilizar. Por aceitação, quero dizer uma consideração afetuosa por ele enquanto uma pessoa de autovalia incondicional — de valor, independente de sua condição, de seu comportamento ou de seus sentimentos. Significa um respeito e apreço por ele como uma pessoa separada, um desejo de que ele possua seus próprios sentimentos à sua própria maneira. Significa uma aceitação de suas atitudes no momento ou consideração pelas mesmas, independente de quão negativas ou positivas elas sejam, ou de quanto elas possam contradizer outras atitudes que ele sustinha no passado. Essa aceitação de cada aspecto flutuante desta outra pessoa constitui para ela uma relação de afeição e segurança, e a segurança de ser querido e prezado como uma pessoa parece ser um elemento sumamente importante em uma relação de ajuda. Também acho que a relação é significativa na medida em que sinto um desejo contínuo de compreender — uma empatia sensível com cada um dos sentimentos e comunicações do cliente como estes lhe parecem no momento. Aceitação não significa muito até que esta envolva a compreensão. É somente à medida que compreendo os sentimentos e pensamentos que parecem tão terríveis para você, ou tão fracos, ou tão sentimentais, ou tão bizarros — é somente quando eu os vejo como você os vê, e os aceito como a você, que você se sente realmente livre para explorar todos os cantos recônditos e fendas assustadoras de sua experiência interior e frequentemente enterrada.” (Tornar-se pessoa). 

 

Caberá aqui a questão: poderemos cultivar essa atitude com nós mesmos? Penso que sim, mas é preciso compreender que a autoaceitação incondicional não é uma lei moral. Até mesmo no grande mandamento do amor, não se diz: “ame-se a si mesmo”. Fala-se de “ame o próximo como a si mesmo”. Mas nenhum imperativo se lê nessa lei no sentido do amor próprio. Poderá, pois, se colocar a aceitação de si mesmo como um conselho ou uma dica? Poderá ser conquistada como uma regra? Creio que não. Prefiro entender que a autoaceitação incondicional é cultivada no livre processo da vida. É uma nova orientação em relação a si mesmo que inclusive “convive” com a atitude da não-autoaceitação. Paradoxalmente, autoaceitação é acolher e aceitar inclusive o fato de que nem sempre nos aceitamos e que está tudo bem! 

Só posso falar aqui da autoaceitação incondicional a partir de como a experiencio. E a vivo na mesma medida em que ainda não me aceito e sem que exclua o fato de que há partes de mim que rejeito ou tenho dificuldades em aceitar. Mas aprendi que está tudo bem! O mais importante é que me abri a aprender a difícil tarefa de me aceitar quando muitos me rejeitaram, me amar como eu sou, com todos os meus erros e defeitos. Aceitar também meus sentimentos, sejam eles quais for e não me culpar ou me condenar por eles. Compreendo que não há razão pela qual me cobrar pelo que quer que seja, que eu fui aquilo que pude ser a cada momento. Tenho entendido que meu passado não me define, muito menos o que os outros pensam, que eu sou livre para construir uma nova possibilidade de ser no mundo.  

Autoaceitação incondicional é se amar a si mesmo. Significa reconhecer que aquilo que eu sou no mais profundo do meu ser não é "depravado", "destrutivo" ou "perigoso". Que não há nada de errado em ser quem eu sou. Incondicional quer dizer que me aceito sem julgamentos, não importa meu passado ou aquilo que eu chamo de "erros": eu me amo sem impor a mim mesmo condições. Não importa quem eu sou, fui ou serei, o que fiz, faço ou farei ou ainda o que deixei de fazer. Estou disposto a me amar e aceitar tudo em mim. Aceito minhas emoções, todas elas, as que considero "positivas" e as que sinto como "negativas". Acolho tudo que sou, não me condeno, não me julgo, não me critico, não busco dominar a mim mesmo, não pretendo me controlar, não cobro nada de mim, apenas me amo e me aceito como sou. 

Um exemplo concreto de autoaceitação incondicional é aprender a não buscar a aprovação do outro. Essa é uma lógica totalmente diferente da qual fomos criados desde a nossa infância. A busca por aprovação é a lógica em que estamos inseridos, é como nossa sociedade funciona. Mas podemos ir contra isso que está posto e podemos inclusive sermos gentis com a gente mesmo quando nos submetemos a essa lógica. Pensemos no exemplo concreto de quando nos preocupamos com o que os outros pensam de nós: 

O quanto faz sentido se preocupar com que os outros pensam da gente? Algumas preocupações são válidas, mas muita das vezes sem utilidade. Deveríamos nos perguntar o que efetivamente muda na realidade se ficarmos remoendo pensamentos do que os outros estão pensando de nós. Remoer ou não remoer não mudará efetivamente nada, a não ser o fato de que nos fará mal nos enchermos dessa preocupação. Mas outras coisas são importantes de se considerar: "Será que o outro realmente está pensando em nós?" Não é meio irracional achar que as outras pessoas gastam o tempo do dia delas pensando em nós? Pessoas têm muito o que pensar (trabalho, estudos, família, questões pessoais, problemas financeiros, etc.), é muito improvável que achem tempo para ficarem "pensando na gente". Nós é que ficamos gastando tempo em pensar o que os outros pensam de nós. E o que pensamos que o outro pensa de nós nunca é de fato o que o outro pensa - não somos capazes de ler mentes! 

Mais um ponto importante é que não temos controle do que o outro pensa - quão inútil será, pois, tentar exercer esse tipo de controle. E realmente importa tanto o que o outro pensa? O que as pessoas pensam de você nunca é o que você realmente é, mas sempre a interpretação que fizeram de você, ou melhor, de uma versão sua. Uma versão que tem a ver com situações específicas e que também envolve questões do outro. Talvez toda essa preocupação com que o outro pensa signifique uma necessidade de aceitação e aprovação. É aqui que entra a importância de cultivar a "autoaceitação incondicional". A única pessoa que precisa te aceitar é você mesmo. E esse aceitar precisa ser sem condições ou julgamentos. Não importa seus "erros", seu passado ou seus "defeitos": o ponto é amar-se de maneira incondicional. E esse amor próprio, essa autoaceitação incondicional, é tudo o que realmente importa. 

Outro exemplo concreto em relação ao qual podemos pensar a questão da autoaceitação incondicional, está nas noções de “ser bom” e “estar bem”. O que significa estar bem e ser bom? Se estar bem é ser feliz e tranquilo o tempo todo e ser bom é nunca ser "tóxico", nunca ser "preconceituoso" e sempre agir eticamente e corretamente, então não se está realmente bem. Se não pudermos ficar tristes às vezes, errar, magoar alguém, sentir raiva, explodir, perder o controle, agir de forma imatura, ter crises existenciais e emocionais, etc. - isso significará simplesmente que não estamos vivos. Estar bem e tranquilo o tempo todo é aniquilar a vida, é estar, de algum modo, morto. É importante saber aceitar o que sentimos e acolher nossos erros. Ser uma pessoa boa e que está bem o tempo todo é viver artificialmente, é não viver de verdade. 

Podemos concluir então sintetizando alguns princípios aos quais nos leva a compreensão de autoaceitação incondicional: 

Ninguém precisa estar bem o tempo todo.  

Está tudo bem em perder o controle. 

Está tudo ok em se sentir triste. 

Também está tudo bem explodir às vezes ou ter reações desproporcionais.  

Ninguém precisa ser calmo, sereno, feliz e tranquilo o tempo todo.  

Às vezes nossas emoções simplesmente fluem e é uma ilusão querer dominá-las. Não temos esse controle.  

Por vezes vamos agir movidos por nossas paixões e sentimentos que nos invadem. E, no final das contas, está tudo bem. 

Não há nada de errado em ser um tanto descontrolado emocionalmente. Seria estranho é não o ser num mundo que faz tão mal à nossa saúde mental.  

Se estressar, chorar, perder o controle, sentir ansiedade, medo, culpa, raiva, ódio, angústia, explodir... fazem parte da vida. Emoções deixam a vida colorida e não há nada de errado com elas. 


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