CONSIDERAÇÕES DIALÉTICAS ACERCA DO LIBERALISMO POLÍTICO A PARTIR DE ISAIAH BERLIN E JOHN STUART MILL

 

O objetivo deste artigo é considerar liberalismo político a partir dos “Quatro Ensaios sobre a Liberdade” de Isaiah Berlin e do livro “Da Liberdade Individual e Econômica” de John Stuart Mill, fazendo uma articulação dialética com outras obras e autores. Nesse sentido, será possível evidenciar como esses pensadores refletiram sobre o tema da liberdade conforme a perspectiva do liberalismo, bem como estabelecer contrastes e aproximações dessas reflexões com outras visões de mundo. 

Em seu primeiro ensaio, Berlin (1981) considera que no desenvolvimento das ideias políticas ocorreu, no século XX, uma grande mudança na maneira de pensar a realidade. Enquanto no século XIX, os pensadores políticos entendiam que os problemas sociais poderiam ser resolvidos racionalmente, com o século XX, abandonou-se a crença na razão como solucionadora de problemas, e passou-se a defender a supressão dos problemas, ao invés de sua resolução. 

Nesse sentido, o século XX experimentou uma crise da crença na razão. O pai da fenomenologia, Edmund Husserl, é um dos que diagnosticaram essa perda de fé na capacidade da razão em solucionar os problemas humanos. De acordo com o fenomenólogo, desde o Renascimento, a humanidade europeia tinha a crença de que se deveria buscar a solução dos problemas filosóficos pela razão. No entanto, com o fracasso das ideias progressistas ante as guerras mundiais e os regimes autoritários que caracterizaram o século XX, um ceticismo profundo estabeleceu-se sobre a Europa. Ocorreu um desmoronamento da crença na razão e, consequentemente, uma perda na capacidade e possibilidade do humano de fornecer um sentido racional para sua existência. Desse modo, a crise da razão é uma perda da crença na própria humanidade e na possibilidade de uma existência que faça sentido (HUSSERL, 2012). 

Berlin (1981) apresenta três características que marcam a mentalidade política do século XX. A primeira característica consiste na minimização da importância das questões e problemas que requerem solução. A segunda característica apresenta-se na forma de uma perseguição realizada em nome da própria ciência, exemplo que pode ser visto na instrumentalização da ciência pelo regime nazista a fim de justificar e executar medidas autoritárias. A terceira característica, por sua vez, trata-se de uma maior exigência por conformismo, numa medida que nunca se requereu antes. 

Uma autora que também constatou peculiaridades específicas no século XX, foi a filósofa política Hannah Arendt, que entende ter sido esse período marcado pelo surgimento de uma forma de regime político diferente e novo. A essa forma nova de regime, a autora deu o nome de “totalitarismo”, que difere de governos de natureza autoritária e despótica que teriam existido em séculos anteriores. Assim como Berlin, a filósofa encontra no regime nazista e no comunismo (especificamente no stalinismo), exemplos da aplicação de ideias características do século XX. A autora também pontua a exigência de conformismo total que marcou tais regimes. Tal conformismo consistiu em que os movimentos e regimes totalitaristas requeriam lealdade incondicional de seus membros. A lealdade total se apresenta como um conformismo inalterável, a ponto de o apoio ao movimento se manter mesmo quando o indivíduo é expulso ou condenado pelo regime (ARENDT, 1991). 

Em seu segundo ensaio, Berlin (1981) trata de fazer uma crítica à leitura determinista da história, leitura segundo a qual os eventos históricos se dão de maneira inevitável e segundo regularidades causais explicáveis. O filósofo critica a visão da inevitabilidade histórica por ela ser incapaz de ser comprovada empiricamente, isto é, há uma impossibilidade de se falsear tal teoria. Ele observa ainda que tal visão da história se baseia em três noções, a primeira consiste na ideia teleológica de que tudo o que existe tem uma função e propósito; a segunda trata-se da posição de que todo acontecimento pode ser explicado a partir da suposição de uma realidade atemporal transcendente; a terceira diz respeito ao conceito de que tudo aquilo que existe pode ser explicado com base em leis científicas. 

O filósofo britânico prossegue sua crítica à visão determinista da História pontuando que ainda que ela fosse verdadeira, ela exigiria uma revisão completa da maneira como nós compreendemos a realidade. Isso porque se o determinismo estiver certo, é impossível falar em responsabilidade moral. Se tudo que acontece é inevitável, isto é, não poderia ter acontecido de outro modo, então não faz sentido dizer que as pessoas são responsáveis pelos seus atos. Não se pode responsabilizar alguém que não poderia ter agido de forma diferente do que agiu. Isso significa que se admitirmos o determinismo, teremos de abandonar todas as nossas noções morais (BERLIN, 1981). 

Posso citar aqui duas visões deterministas sobre a realidade humana e como elas lidam com esse problema da moralidade. A primeira é o calvinismo determinista, compreensão teológica de que nossos atos não são livres, já que não haveria livre-arbítrio, antes tudo aquilo que realizamos foi inevitavelmente determinado por Deus e não poderia ter ocorrido de forma diferente do que aconteceu. De acordo com a Confissão de Fé de Westminster, símbolo de fé calvinista, desde a eternidade, Deus ordenou inalteravelmente tudo que acontece, mas de uma forma misteriosa, tal decreto imutável não retira a liberdade e contingência das causas secundárias, a saber, das criaturas livres, no caso, os seres humanos. Nessa perspectiva, assume-se ao mesmo tempo que nossos atos foram inevitavelmente determinados por Deus e ao mesmo tempo que somos responsáveis diante dele por nossos atos. Que se possa sustentar essa patente contradição, parece ser apenas recorrendo a uma afirmação mais religiosa do que racional, mais pertencente ao mistério do que à lógica (HODGE, 2013). 

A segunda perspectiva determinista que merece consideração é o behaviorismo ou comportamentalismo, visão do psicólogo estadunidense Burrhus Frederic Skinner. Para Skinner, todos os nossos comportamentos são determinados por uma contingência tríplice, que envolve a herança filogenética, a história individual e os fatores do ambiente no qual a pessoa se encontra inserida. Para o behaviorismo, a liberdade humana contradiz a visão científica, já que segundo a ciência todos os fenômenos do mundo operam numa cadeia natural de causalidade. Dentro dessa perspectiva, a noção de liberdade humana é considerada um mito ou ilusão. No entanto, tal visão não exclui a importância do elogio moral, já que ele serviria como reforçamento positivo para comportamentos socialmente desejáveis. Assim, o valor moral de uma ação não tem a ver com a responsabilidade de agentes livres, mas sim com o efeito reforçador dos comportamentos, que pode ser “bom” (positivo) ou “mau” (negativo). Sendo positivo aquilo que aumenta a probabilidade de ocorrência de um comportamento pelo acréscimo de um estímulo recompensador; e negativo aquilo que tem o mesmo efeito, mas pela eliminação de um estímulo aversivo (SKINNER, 1983). 

Enquanto a perspectiva calvinista não parece ajudar muito a conciliar o determinismo com a responsabilidade moral, por acabar requerendo uma aceitação pela fé de um mistério religioso; o determinismo behaviorista nos pede para considerar os elogios morais por seu efeito utilitário. Nesse sentido, não importaria que nossas ações sejam efetivamente livres, mas sim que o elogio moral enquanto consequência reforçadora sirva à função utilitária de aumentar a probabilidade de ocorrência de comportamentos socialmente desejados. Assim, parece que não importa muito se as noções morais têm bases metafísicas na liberdade humana, mas sim que elas sirvam para cumprir uma função utilitária, permitindo que pelo reforço diferenciado de comportamentos, a sociedade selecione os comportamentos mais desejáveis. 

Para Berlin (1981), no entanto, alguns deterministas argumentam que se o comportamento humano não poderia ter acontecido de forma diferente de como ocorreu, então devemos evitar fazer juízos morais. Segundo o autor, os argumentos que os deterministas levantam contra os juízos morais, podem ter duas bases distintas. A primeira consiste na crença de que sabemos demais, a partir dessa ideia, argumenta-se que à medida em que tudo pode ser explicado, então tudo pode ser perdoado e justificado. A segunda consiste, por sua vez, na crença oposta, isto é, de que sabemos de menos; conforme essa perspectiva, é impossível que tenhamos certeza absoluta de nossas ideias morais e, por conseguinte, não podemos impor nossa moral aos outros. 

No entanto, como se pode perceber, o argumento de que não podemos fazer juízos morais é autorrefutável. Se é errado censurar os outros com base em noções morais, então não se pode censurar alguém por fazer juízos morais. Assim, estamos diante de uma ideia absurda. Deixar de fazer juízos morais é impossível, fazer julgamentos faz parte de nosso modo de ser. É verdade que alguns de nossos julgamentos morais são relativos e subjetivos, mas só se pode dizer isso se outros não o forem; pois sem um padrão objetivo é impossível falar de algo subjetivo. 

Em seu terceiro ensaio, Berlin (1981) discute dois conceitos distintos de liberdade. O primeiro ele denomina como liberdade negativa, que consiste na noção de não-interferência; já o segundo ele chama de liberdade positiva, que consiste, por sua vez, no autocontrole. Essas duas formas de liberdade podem não só se mostrar diferentes, como podem entrar em conflito e se apresentarem em oposição. Das duas, a liberdade usualmente defendida no liberalismo político é a negativa, que consiste na defesa de que o Estado não deve interferir na liberdade dos indivíduos, o que inclui tanto a não-interferência econômica, quanto a proteção das liberdades morais, liberdade de expressão, de opinião e de ação. 

Berlin (1981) observa que, visto que a liberdade de indivíduos distintos não se harmoniza completamente, o conflito é inevitável, de modo que a liberdade de uns acaba dependendo, por sua vez, da limitação da liberdade de outros. O autor faz uma crítica àqueles que defendem a liberdade individual, sem, no entanto, lutarem para que os indivíduos possuam as condições básicas para que haja liberdade. Desse modo, para que haja liberdade efetiva, até em sentido liberal, é necessário que haja condições mínimas para que um indivíduo usufrua de liberdade, dado isso, parece que o Estado pode ter a obrigação de fornecer as condições de liberdade. Isso significa que a sociedade precisaria fornecer aos seus membros condições básicas de vida, como alimentação, moradia e saúde. 

Nesse aspecto, Berlin parece defender um liberalismo talvez mais igualitário do que aquele defendido por pensadores como Ludwig von Mises, já que o combate às desigualdades sociais arbitrárias seria uma condição para a defesa da verdadeira liberdade. Sendo assim, parece que para Berlin, o Estado tem alguma função social no sentido de fornecer condições mínimas para um padrão de vida adequado. Já Mises entende que a única função do Estado é a segurança, isto é, cabe ao Estado o papel único de proteção dos cidadãos. Nenhuma outra interferência do Estado se justifica senão aquela que visa garantir a segurança da população. Nesse sentido, qualquer interferência estatal na economia, mesmo aquela que vise diminuir desigualdades ou fornecer melhores condições de vidas, constituem um intervencionismo condenável (MISES, 2009). 

Por outro lado, curiosamente, a visão de Berlin de que só há liberdade quando se preenche condições materiais básicas de vida para os indivíduos, está em acordo com a postura defendida pelo filósofo e sociólogo alemão, Karl Marx. Para Marx, só é possível alcançar uma liberdade real no mundo real e pelo emprego de meios reais. O sociólogo alemão entende que não é possível existir genuína liberdade enquanto os indivíduos forem incapazes de terem acesso a alimentação e bebida, moradia e vestimenta, em qualidade e quantidade suficientes. O entendimento comunista, portanto, é o de que os indivíduos precisam ter atendidas suas condições básicas de vida para poderem ser livres. Mas essa visão marxista se contrapõe à visão liberal, por entender que uma sociedade genuinamente livre em que as pessoas tenham atendidas suas condições básicas de vida só pode ser alcançada através de uma revolução (MARX & ENGELS, 2007). 

Essa questão faz lembrar ainda a distinção feita pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman entre liberdade subjetiva e liberdade objetiva. A liberdade subjetiva é aquela que resulta na mera eliminação dos desejos. Significa que se passa a considerar a si mesmo livre pelo simples fato de que não se anseia mais aquilo que não se possui. A liberdade objetiva, por outro lado, é uma emancipação real do indivíduo e consiste na ampliação das capacidades de ação de um sujeito. Nesse sentido, à medida em que o oferecimento de condições básicas de vida amplia o campo de possibilidades de ação de um indivíduo, pode-se dizer que elas contribuem para uma maior liberdade objetiva (BAUMAN, 2001). 

Berlin (1981) pontua que liberdade positiva significa ter o indivíduo domínio sobre si mesmo. O problema é que, segundo o autor, essa compreensão criaria uma cisão no indivíduo. Se alguém precisa ter domínio sobre si mesmo, então estaríamos falando de dois “egos”, um ego que domina e outro que seria dominado. O ego que domina seria o “ego racional” enquanto o ego dominado seria o “ego empírico”. Portanto, haveria um ego racional que precisaria dominar sobre o ego empírico, isto é, a razão precisaria dominar sobre os instintos. Essa divisão do indivíduo em dois “egos” teria levado à identificação do ego racional como algo mais amplo do que o indivíduo como um “todo social”: o Estado, a Igreja, a raça, a sociedade, etc. Essa entidade, por sua vez, acabaria por ter sido identificada como sendo o “ego verdadeiro”, que, impondo sua vontade coletiva sobre os membros ainda não-livres, conseguiria a liberdade genuína. 

Berlin (1981) cita Immanuel Kant como um filósofo que teria defendido a autonomia da razão e seu domínio sobre as paixões. No campo político, essa ideia poderia ser levada à noção de que precisaríamos de um Estado racional que garanta a verdadeira liberdade. A ética kantiana, ao campo político, poderia, assim, ser levada à defesa de uma sociedade planejada, à criação de um Estado Racional governado por leis orientadas segundo o imperativo categórico, leis que todos os sujeitos racionais aceitariam livremente. Segundo essa concepção, um Estado seria racional não se fosse guiado pelo que o povo diz, mas pelo que o povo diria se expressassem suas ideias de forma racional. Nesse caso, uma política racional poderia ir contra o povo, para ser a favor do povo. Pois, defender o que é racional seria defender o que é bom para a sociedade, mesmo que isso signifique ir contra o que o povo efetivamente deseja. Sendo assim, um governo racional seria aquele que governa segundo o que o povo desejaria tendo suas aptidões racionais desenvolvidas. Assim, a coerção se justificaria para proteger a verdadeira liberdade, aquela baseada na razão.  

Se considerarmos a ética deontológica kantiana, conforme expressa na Metafísica dos Costumes, segundo a qual os valores morais são objetivamente verdadeiros e se constituem enquanto juízos da razão prática baseados no imperativo categórico, então não parece estranho propor uma sociedade racionalmente planejada (KANT, 2009). Se pensarmos o quanto a sociedade como um todo age de maneira irracional, o que pode ser exemplificado por aqueles que no atual período de pandemia não respeitam as medidas sanitárias, será mesmo ruim supor que um Estado racional preocupado com a saúde e bem-estar de seus membros, interferisse na liberdade de seus membros? Não deveria também um Estado laico basear todas as suas ações em debates racionais, livres, por exemplo, de pressupostos religiosos? Parece-me que o debate democrático é totalmente adequado, desde que se estabeleça a condição de que as partes do debate apresentem e justifiquem suas posições com base unicamente em argumentos racionais. 

Além de um Estado poder estabelecer suas ações com base em princípios éticos racionais, parece ser possível propor ainda uma sociedade cientificamente planejada. Skinner, já citado, defende que a manipulação do ambiente permitiria a produção dos melhores comportamentos, de modo a possibilitar a construção de uma sociedade que fosse planejada em conformidade com princípios científicos de análise e controle do comportamento. Tal proposta nada tem a ver com a defesa de um Estado autoritário, já que tal planejamento incluiria o não-uso de técnicas punitivas. Para Skinner, a tecnologia de punição simplesmente não funciona, pois ela tem como foco modificar o indivíduo, alterar suas representações e traços de caráter, mas não é a representação ou o caráter do indivíduo o que realmente se encontra por trás de seus comportamentos reprováveis, mas sim as contingências do ambiente. Portanto, o que se defende é a construção de um ambiente melhor e não o controle autoritário dos indivíduos (SKINNER, 1983). 

É verdade, o próprio Skinner reconhece, que tal posição contraria os princípios do liberalismo, mas a verdade é que uma sociedade política e economicamente livre é um mito. O liberalismo político e econômico está sustentado sobre o mito do sujeito autônomo, no entanto, escolhas econômicas são determinadas, não por ações livres de indivíduos autônomos, mas por contingências do ambiente. O problema da economia liberal, pontua o psicólogo, é que abster-se de controlá-la é deixar a tarefa do controle, não nas mãos de indivíduos autônomos, dos "cidadãos", como pensam os liberais, mas de outros componentes do ambiente social e não-social (SKINNER, 1983). 

Evidentemente que Isaiah Berlin, enquanto um liberal, não concorda com a proposta de um Estado racional e de uma sociedade cientificamente planejada. Para o filósofo britânico, a defesa da liberdade negativa tem como consequência a defesa da não interferência do Estado. Por outro lado, para o autor, a defesa intransigente da liberdade positiva poderia levar até mesmo a formas de despotismo. Por isso, Berlin coloca que o liberalismo deve manter dois princípios básicos e inalteráveis para uma sociedade genuinamente livre. O primeiro princípio consiste em que nenhum poder político pode ser considerado absoluto, e o segundo consiste no reconhecimento da existência de dimensões limitadas onde os homens devem ser invioláveis (BERLIN, 1981). 

No quarto ensaio, Berlin apresenta um pouco da vida e pensamento de John Stuart Mill. A partir daqui me parece que já podemos refletir um pouco sobre a compreensão do liberalismo político a partir da obra “Liberdade Individual e Econômica” do referido autor. Em sua obra, Mill defende a liberdade de expressão contra qualquer interferência estatal que censure opiniões e suas expressões. Para o filósofo, o direito à liberdade de expressão deve ser afirmado contra qualquer forma de coerção. É do autor a célebre frase de que “se toda a humanidade menos um, fosse de uma determinada opinião, e apenas uma pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais justificativas para silenciar aquela pessoa, do que ela, se tivesse o poder, de silenciar a humanidade” (MILL, 2019, pp.43-44). 

Mill pontua que é possível considerar duas situações em relação ao silenciamento de opiniões, a primeira diz respeito ao silenciamento de opiniões falsas, e a segunda de opiniões verdadeiras. Em ambos casos, censurar as opiniões é ruim. Caso a opinião seja falsa, os indivíduos perderão a oportunidade de trocar o erro pela verdade; por sua vez, se a opinião for verdadeira, os sujeitos estarão privados de uma compreensão mais clara e vívida da verdade. Além disso, observa o pensador, nunca temos como possuir certeza absoluta da verdade ou falsidade de uma opinião, de modo que podemos estar reprimindo uma opinião verdadeira enquanto achamos estar reprimindo uma opinião falsa. Outro argumento importante contra a repressão de ideias é o de que ele pode limitar intelectuais promissores, o que criaria uma atmosfera de escravidão mental (MILL, 2019). 

John Stuart Mill apresenta ainda uma terceira possibilidade, para além das situações de uma opinião silenciada ser ou verdadeira ou falsa. Essa terceira possibilidade consiste em que duas opiniões contrastantes, ao invés de uma ser verdade e a outra não, podem compartilhar a verdade entre si. Isso significa que a verdade tem um caráter parcial, de modo que uma opinião não é necessariamente completamente verdadeira, mas parcialmente. Se esse for o caso, a opinião contrária à vigente seria importante a fim de suprimir a parcela de erro compartilhada por ambas as opiniões, possibilitando uma depuração e complementação da verdade (MILL, 2019). 

Mill (2019) observa ainda que a liberdade de expressão e a liberdade de opinião são importantes para o estado de bem-estar mental da humanidade. O filósofo defende que as pessoas precisam ter o direito de agirem conforme suas ideias. O único limite para a liberdade de ação é que ela não interfira na liberdade do outro. Portanto, a condição básica de toda ação é de que ela não cause danos aos outros. Tirando essa exceção, o Estado não tem direito de interferir na liberdade dos indivíduos, nem mesmo quando ao agirem assim os indivíduos causem danos a si mesmos. É só quando a liberdade individual é preservada que o desenvolvimento humano pode produzir-se, pontua o pensador. Sendo assim, o livre desenvolvimento da individualidade é a condição para que os indivíduos desfrutem de bem-estar. 

Tais ideias de John Stuart Mill em defesa da liberdade de expressão, fazem-me lembrar das palavras do político neocalvinista holandês Abraham Kuyper, que escreveu: 


"Vocês não podem privar da liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa àquele cuja consciência difere da sua, mais ainda, vocês não podem nem mesmo pensar nisto. É inevitável que eles, a partir de seu ponto de vista, derrubem tudo quanto em sua opinião é santo. Em vez de buscar auxílio para sua consciência científica em queixas deprimidas, ou em sentimentos místicos, ou em trabalho não confessional, a energia e o cuidado de nossos antagonistas deve ser sentida por todo erudito cristão como um claro incentivo a si mesmo para também voltar-se para seus próprios princípios em sua reflexão, para renovar toda investigação científica sobre as linhas desses princípios e para saturar a imprensa com a carga de seus estudos convincentes." (KUYPER, 2015, p.145). 


De tudo que foi dito até aqui, parece razoável concluir que o liberalismo político conforme presente em Isaiah Berlin e John Stuart Mill, vai muito além da defesa da liberdade econômica. Significa, outrossim, a defesa da liberdade negativa, isto é, da não-interferência do Estado, não só em relação ao que diz respeito à economia, mas também em se tratando da liberdade de expressão, de opinião e de ação. Isso significa que, para ambos os autores, a liberdade deve ser preservada, pois a liberdade individual é essencial para que o homem possa ser juiz de seu próprio bem-estar e felicidade. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 


ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Cia das Letras, São Paulo, 1991. 

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2001. 

BERLIN, Isaiah. Quatros ensaios sobre a liberdade. Editora da UNB, Brasília, 1981. 

HODGE, Archibald Alexander. A Confissão de Westminster Comentada. Recife: Os Puritanos, 2013. 

HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. 

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso Editorial & Barcarolla, 2009. 

KUYPER, Abraham. O Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2015. 

MARX, Karl, & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. 

MILL, John Stuart. Da Liberdade individual e econômica. Faro Editorial, 2019. 

MISES, Ludwig von. As Seis lições. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2009. 

SKINNER, Burrhus Frederic. O Mito da Liberdade. 2. ed. São Paulo: Summus, 1983. 


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