O SAGRADO E O PROFANO - MIRCEA ELIADE

 

O que se segue é um resumo do livro “O Sagrado e o Profano: a essência das religiões” do filósofo romeno Mircea Eliade (1907 – 1986). O resumo segue a divisão de capítulos do livro, sendo eles: (i) o espaço sagrado e a sacralização do mundo; (ii) o tempo sagrado e os mitos; (iii) a sacralidade da natureza e a religião cósmica; (ivexistência humana e vida santificada. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original. 

 

I. O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 

 

Para o homem religioso há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras, de modo que há espaços sagrados e espaços profanos. Essa experiência da não homogeneidade do espaço corresponde a uma “fundação do mundo”. É a rotura operada no espaço que permite a constituição do mundo. Quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer, não só há rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. 

Nesse sentido, a descoberta, isto é, a revelação do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso, já que a experiência do sagrado é fundante. Em contrapartida, para a experiência profana, o espaço é homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente as diversas partes de sua massa. É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra no estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso. Até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo. 

A revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”, possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação do mundo”, o viver real. A experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade e, portanto, a relatividade do espaço.  E, contudo, nessa experiência do espaço profano ainda intervêm valores que, de algum modo, lembram a não homogeneidade específica da experiência religiosa do espaço. Existem, por exemplo, locais privilegiados, qualitativamente diferentes dos outros, como um lugar considerado especial por seu valor afetivo. 

Todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna qualitativamente diferente. Inúmeras vezes, no entanto, nem sequer há necessidade de urna teofania ou de uma hierofania propriamente ditas: um sinal qualquer basta para indicar a sacralidade do lugar. Quando não se manifesta sinal algum nas imediações, o homem provoca o, pratica. Assim, as hierofanias anularam a homogeneidade do espaço e revelaram um “ponto fixo”. 

O que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que elas subentendem entre o seu território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é o “mundo”, o Cosmos; o restante já não é um Cosmos, mas uma espécie de “outro mundo”, um espaço estrangeiro, caótico, povoado de espectros, demônios, “estranhos”. Por meio de uma hierofania, se efetua uma rotura de níveis, opera-se ao mesmo tempo uma “abertura” em cima (o mundo divino) ou embaixo (as regiões inferiores, o mundo dos mortos). Os três níveis cósmicos – Terra, Céu, regiões inferiores – tornaram-se comunicantes. 

 Disso resulta que nosso mundo, o “verdadeiro mundo” se encontra sempre no “meio”, no “Centro”. Donde se conclui que o homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do Mundo, o que explica os santuários serem construídos no centro. Visto que “nosso mundo” é um Cosmos, qualquer ataque exterior ameaça transformá-lo em “Caos” 

A formação do mundo permite falar de um tempo sagrado, que é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. Toda festa religiosa representa a reatualização de um evento sagrado. Participar religiosamente de urna festa implica a saída da duração temporal “ordinária” e a reintegração no Tempo mítico reatualizado pela própria festa. 

O homem religioso vive assim em duas espécies de Tempo, das quais a mais importante, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Para o homem religioso, ao contrário, a duração temporal profana pode ser “parada” periodicamente pela inserção, por meio dos ritos, de um Tempo sagrado, não-histórico. 

O Tempo sagrado e forte é o Tempo da origem. O Tempo de origem por excelência é o Tempo da cosmogonia, o instante em que apareceu a mais vasta realidade, o Mundo. O Tempo cosmogônico serve de modelo a todos os Tempos sagrados. Assim, o Tempo de origem de uma realidade, quer dizer, o Tempo fundado pela primeira aparição desta realidade, tem um valor e uma função exemplares; é por essa razão que o homem se esforça por reatualizá-lo periodicamente mediante rituais apropriados. Assim, periodicamente, o homem religioso torna-se contemporâneo dos deuses, na medida em que reatualiza o Tempo primordial no qual se realizaram as obras divinas. 

O homem religioso assume uma humanidade que tem um modelo transumano, transcendente. O homem religioso se quer diferente do que ele acha que é no plano de sua existência profana. O homem religioso não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar-se dos modelos divinos. Visto que, para o homem religioso das sociedades primitivas, os mitos constituem sua “história sagrada”, ele não deve esquecê-los: reatualizando os mitos, o homem religioso aproxima se de seus deuses e participa da santidade. Pela reatualização dos mitos, o homem religioso esforça se por se aproximar dos deuses e participar do Ser; a imitação dos modelos exemplares divinos exprime, ao mesmo tempo, seu desejo de santidade e sua nostalgia ontológica.  

 

III. A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA  

 

Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente “natural”: está sempre carregada de um valor religioso. Isto é facilmente compreensível, pois o Cosmos é uma criação divina: saindo das mãos dos deuses, o Mundo fica impregnado de sacralidade. Os deuses manifestaram as diferentes modalidades do sagrado na própria estrutura do Mundo e dos fenômenos cósmicos.   

A simples contemplação da abóbada celeste é suficiente para desencadear uma experiência religiosa de modo que se pensa em Deus como habitando o Céu. Nesse sentido, Deus é pensado como longínquo, os Seres supremos de estrutura celeste têm tendência a desaparecer do culto; “afastam se” dos homens, retiram-se para o Céu. Desse modo pode-se falar de um fenômeno do afastamento divino. O “afastamento divino” traduz na realidade o interesse cada vez maior do homem por suas próprias descobertas religiosas, culturais e econômicas. Interessado pelas hierofanias da Vida, em descobrir o sagrado da fecundidade terrestre e sentir se solicitado por experiências religiosas mais “concretas”, o homem primitivo afasta-se do Deus celeste e transcendente. No entanto, mesmo quando a vida religiosa já não é dominada pelos deuses celestes, as regiões siderais, o simbolismo uraniano, os mitos e os ritos de ascensão etc. conservam um lugar preponderante na economia do sagrado. 

Encontra-se também nas religiões uma valorização das águas. As Águas existiam antes da Terra. As águas simbolizam a soma universal das virtualidades; a imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A emersão repete o gesto cosmogônico da manifestação formal; a imersão equivale a uma dissolução das formas. É por isso que o simbolismo das Águas implica tanto a morte como o renascimento. Em qualquer conjunto religioso em que as encontremos, as águas conservam invariavelmente sua função: desintegram, abolem as formas, “lavam os pecados”, purificam e, ao mesmo tempo, regeneram. 

Quanto à terra, temos a imagem primordial da Terra Mãe e a crença de que os homens foram paridos pela Terra, bem como que na morte voltamos à terra. Assim, a mulher relaciona se, pois, misticamente com a Terra; o dar à luz é uma variante, em escala humana, da fertilidade telúrica. Sendo assim, os mitos e os ritos da Terra-Mãe exprimem sobretudo as ideias de fecundidade e riqueza. 

Outro símbolo importante é a imagem da árvore. A imagem da árvore, além de simbolizar o Cosmos, também exprime a Vida, a juventude, a imortalidade, a sapiência. É nos símbolos de uma Árvore cósmica que se exprimem com o máximo de força e clareza as valências religiosas da vegetação. Para o homem religioso, os ritmos da vegetação revelam o mistério da Vida e da Criação, e também da renovação, da juventude e da imortalidade. 

No entanto, recentemente, o homem moderno passou a ter uma relação dessacralizada com a Natureza. A experiência de uma Natureza radicalmente dessacralizada é uma descoberta recente, acessível apenas a uma minoria das sociedades modernas, sobretudo aos homens de ciência. Para o resto das pessoas, a Natureza apresenta ainda um “encanto”, um “mistério”, uma “majestade”. No entanto, não há homem moderno, seja qual for o grau de sua irreligiosidade, que não seja sensível aos “encantos” da Natureza. 

 

IV. EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 

 

O objetivo último do historiador das religiões é compreender, e tornar compreensível aos outros, o comportamento do homem religioso e seu universo mental. Para o mundo moderno, a religião como forma de vida e concepção do mundo confunde se com o Cristianismo. No entanto, para se obter uma perspectiva religiosa mais ampla, é útil familiarizar-se com o folclore dos povos europeus; em suas crenças, costumes e comportamento perante a vida e a morte, nos quais ainda podemos reconhecer numerosas “situações religiosas” arcaicas. O único meio de compreender um universo mental alheio é situar-se dentro dele, no seu próprio centro, para alcançar, a partir daí, todos os valores que esse universo comanda. 

O primeiro fato com que deparamos ao adotar a perspectiva do homem religioso das sociedades arcaicas é que o Mundo existe porque foi criado pelos deuses, e que a própria existência do Mundo “quer dizer” alguma coisa, que o Mundo não é mudo nem opaco, que não é uma coisa inerte, sem objetivo e sem significado. Para o homem religioso, o Cosmos “vive” e “fala”. A própria vida do Cosmos é uma prova de sua santidade, pois ele foi criado pelos deuses e os deuses mostram-se aos homens por meio da vida cósmica. 

É por essa razão que, a partir de um certo estágio de cultura, o homem se concebe como um microcosmo. Ele faz parte da Criação dos deuses, ou seja, em outras palavras, ele reencontra em si mesmo a santidade que reconhece no Cosmos. Sua vida possui uma dimensão a mais: não é apenas humana, é ao mesmo tempo “cósmica”, visto que tem uma estrutura transumana. Poder-se-ia chamá-la uma “existência aberta”, porque não é limitada estritamente ao modo de ser do homem. 

A existência do homem religioso é 'aberta' para o mundo; vivendo, o homem religioso nunca está sozinho, pois vive nele uma parte do Mundo. A existência “aberta” para o Mundo não é uma existência inconsciente, enterrada na Natureza. A “abertura” para o Mundo permite ao homem religioso conhecer se conhecendo o Mundo – e esse conhecimento é precioso para ele porque é um conhecimento religioso, refere se ao Ser. 

O homem religioso vive num mundo “aberto” e que, por outro lado, sua existência é “aberta” para o Mundo. Isto é o mesmo que dizer que o homem religioso é acessível a uma série infinita de experiências que poderiam ser chamadas de “cósmicas”. Tais experiências são sempre religiosas, pois o Mundo é sagrado. Toda experiência humana é suscetível de ser transfigurada, vivida num outro plano, o transumano. 

Os ritos de passagem desempenham um papel importante na vida do homem religioso. É certo que o rito de passagem por excelência é representado pelo início da puberdade, a passagem de uma faixa de idade a outra (da infância ou adolescência à juventude). Mas há também ritos de passagem no nascimento, no casamento e na morte, e pode se dizer que, em cada um desses casos, se trata sempre de uma iniciação, pois envolve sempre uma mudança radical de regime ontológico e estatuto social. Esse fenômeno mostra nos que o homem das sociedades primitivas não se considera “acabado” tal como se encontra ao nível natural da existência: para se tornar um homem propriamente dito, deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para uma vida superior, que é ao mesmo tempo religiosa e cultural. 

Em outras palavras, o primitivo coloca seu ideal de humanidade num plano sobre humano. Isto quer dizer que: (i) só se torna um homem completo depois de ter ultrapassado, e em certo sentido abolido, a humanidade “natural”; (ii) os ritos iniciáticos comportando as provas, a morte e a ressurreição simbólicas foram fundados pelos deuses, os Heróis civilizadores ou os Antepassados míticos.  Isso nos mostra mais uma vez que o homem religioso se quer diferente do que se encontra ao nível “natural”, esforçando se por se fazer segundo a imagem ideal que lhe foi revelada pelos mitos. 

Nas sociedades a religiosas modernas, a iniciação já não existe como ato religioso. No entanto, embora fortemente dessacralizados, os padrões de iniciação ainda sobrevivem no mundo moderno. O homem não-religioso descende do homem religioso e, queira ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas por seus antepassados. O homem sem religião no estado puro é um fenômeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. A maioria dos “sem religião” ainda se comporta religiosamente, embora não esteja consciente do fato. O homem moderno que se sente e se pretende sem religião carrega ainda toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados, como é possível perceber nas festas de casamento ou nos festejos ante a instalação de uma casa nova.  


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