DUNS SCOTUS E O PRIMADO DA ESSÊNCIA


O objetivo deste texto é apresentar a ontologia do filósofo e teólogo John Duns Scotus tomando como fio conduzir sua discussão a respeito da relação entre essência e existência. Por essência, entende-se aquilo que a coisa é, enquanto por existência entende o ser da coisa enquanto ela existe, seu existir. Para isso, usei como referência o livro “O Ser e a Essência” de Etienne Gilson nas partes nas quais é considerado o pensamento de Scotus 

Scotus de alguma forma herda e amplia a ontologia de Avicena, reafirmando a tese de que a distinção entre essência e existência não é real, mas meramente formal. Como Avicena, Scotus compreende que a essência pensada em si mesma não é nem universal, nem singular, mas é indiferente tanto à uma coisa quanto à outra. O que ocorre é que a essência se torna universal no intelecto (enquanto conceito) e se faz singular na coisa (como ente individual). Mas a essência só pode ser universal no intelecto e singular na coisa porque em si mesma ela é indiferente tanto em relação à universalidade quanto em relação á singularidade.  

Se não fosse essa indiferença, a essência seria contraditória, pois seria simultaneamente universal e singular em si mesma, o que seria um contrassenso. Também, a essência não poderia ser apenas singular, senão haveria um único ente singular. Por outro lado, não poderia ser somente universal, pois senão seria apenas uma ideia una e universal de ser.  Por conseguinte, a fim de não cair em absurdo, tanto Avicena quanto Scotus pensam numa essência que é indiferente ou neutra no que diz respeito ao universal e ao singular. 

Seguindo ainda os passos de Avicena, Scotus entende que a existência não está incluída na essência, ele também rejeita a tese tomista de que a existência seria um ato da existência. A essência da coisa e sua quididade não inclui sua existência, pois aquilo que algo é pode ser entendido sem fazer referência ao fato de ele existir ou não. Nesse sentido, a existência é algo que se acrescenta à existência de fora. Para Scotus, a existência pode ser entendida como nada mais do que a modalidade de ser própria à essência tomada em cada um dos estados em que ela se encontra. 

Sendo assim, a essência pode ser encontrada em diferentes modos ou estados. A princípio, a essência se encontra primeiro na mente divina e na medida em que a essência pode vir à existência, ela é um possível. Se a essência fosse contraditória, ela não seria possível, logo não poderia vir à existência; mas se ela pode vir à existência, ela tem o existir como sua possibilidade. Desse modo, desde sua origem, a essência nunca é um puro nada, já que existe como possível. Isso significa que a essência é neutra quanto à singularidade e à universalidade, ela não existe na coisa nem no intelecto, mas no entendimento divino. 

A essência é sempre acompanhada pela existência, mesmo enquanto possível no entendimento divino ela é acompanhada pelo seu ser ou existir. Desse modo, nunca há essência sem existência, e também, só há existência na medida em que há essência, já que a primeira é apenas uma modalidade da segunda. É por isso que não é possível nenhuma distinção real entre essência e existência. A essência sempre comporta sua existência, de modo que ambas são inseparáveis. 

Dado isso, a existência pode ser designada como um modo intrínseco da essência, por modo intrínseco entende-se tudo que se acrescenta à essência sem mudar sua razão formal. A existência é acrescentada exteriormente à essência sem afetar sua quididade. Aquilo que a coisa é em suas propriedades essenciais permanece inalterável apesar do acréscimo da existência que lhe é correspondente. Compreendido isso, o problema da individuação, isto é, o problema de como a essência se dá como coisa singular, aparece sob uma perspectiva peculiar. Não é a existência atual que individualiza a essência, pois não sendo a existência algo realmente distinto da essência, ela não pode ser seu princípio de individuação. Não é a existência que determina a essência, mas é a essência que sempre determina a existência. 

Sendo a essência o que tem o primado ou precedência sobre a existência, pode-se pensar numa hierarquia da existência somente em relação à essência à qual ela corresponde. Pode-se pensar essa hierarquia considerando os graus de ser que vão do gênero mais geral até a espécie mais singular. A individualização, pois, só se dá a partir da coordenação de existências remetidas às essências correspondentes, de modo que a hecceidade não se explica pela existência, antes a existência é alcançada na essência individualizada que a hecceidade e determina. Por hecceidade entende-se aquilo que faz com que uma essência seja “esta” essência individual e específica. 

A existência, enquanto modo intrínseco não afeta a essência, apenas altera seu grau de realização. A essência continua a mesma embora possa variar em grau nas modalidades em que existe. Assim como uma luz branca pode ser mais intensa ou menos intensa, sem, no entanto, deixar de ser a mesma luz, a essência pode variar em seus graus sem ser afetada em si mesma. Dado esses graus, não faz sentido dizer que há uma distância infinita entre a existência e a não-existência, a distância só seria infinita entre Deus e o nada, pois Deus é infinito entre sua essência. Mas entre um ser finito e o nada, a distância será finita e proporcional à quantidade de ser contida em sua essência. 

A tese escotista, portanto, é de que a existência é sempre determinada pela essência e a finitude e a infinitude se manifestam como modos intrínsecos do ser, que se acrescentam à essência de fora sem alterá-la. A essência permanece unívoca mesmo com alteração dos seus graus. Nesse sentido, Scotus rejeita a tese tomista da analogia do ser em relação a Deus, já que a distância entre o ser de Deus e o ser das criaturas é infinita, mas essa infinitude diz respeito a um modo intrínseco que não altera o próprio ser ou a essência. 

Dado não haver distinção real entre essência e existência, a existência não é um acidente verdadeiro, mas acompanha a essência como seu grau correspondente. Em certo sentido, a existência não pode ser pensada como um acidente, pois não é, como definiu Aristóteles, algo que subsiste em outro algo. A existência não é acidente no mesmo sentido em que o são a quantidade, a qualidade, o lugar, a relação, o estado, o tempo, o hábito, a ação ou a paixão. No entanto, pode-se chamá-la de acidente no sentido daquilo que se acrescenta de fora à essência. Portanto a existência é acidente na acepção de algo estranho à quididade. A existência se acrescenta à essência de fora, não estando incluída nela. 

Até aqui a doutrina escotista herda o pensamento aviceniano, mas quando se pensa em Deus, há uma diferença notável. Avicena raciocinou que Deus não pode possuir essência, pois tudo aquilo que é uma essência precisa comportar para além dela mesma a existência. Dessa forma, a essência nunca pode existir necessariamente e por si mesma, visto que a existência sempre se lhe acrescenta de fora. Se isso é assim, Avicena conclui que Deus é pura existência e que ele não possui essência. Outra tese diferente dessa, mas que também é rejeitada por Scotus, é a compreensão tomista de que a essência divina é a existência. 

Rejeitando tanto a tese aviceniana, como a tomista, Scotus concebe a existência de Deus como imediatamente contida em sua essência, que é infinita. Quando se diz que Deus existe, deve-se entender essa afirmação de modo diferente de quando dizemos que “a árvore existe”, “o ser humano existe” ou “o giz existe”. Isso porque há duas formas em que uma proposição pode ser evidente: (i) proposição evidente por si no primeiro modo: é aquela em que o predicado está incluído no sujeito; (ii) proposição evidente por si no segundo modo: é aquela na qual o predicado não está incluso sujeito, mesmo que esteja a ele ligado necessariamente.  

Enquanto os demais entes têm a existência acrescida à sua essência de fora, em Deus a existência se inclui na própria essência. Nesse sentido, dizer que “Deus existe” é uma proposição evidente por si mesma no primeiro modo, porque a existência pertence direta e imediatamente à essência divina. Se isso é assim, não se pode pensar que a existência se ligue à essência divina necessariamente, porque mesmo se essa ligação é tomada como necessária, a existência não estaria incluída na essência, de modo que a proposição “Deus existe” seria de segundo modo.  

A essência divina, portanto, inclui sua própria existência. No entanto, Scotus permanece defendendo a tese de que a existência divina é uma modalidade de sua essência.  Essa essência possui sua hecceidade na medida em que é “esta” essência divina, isto é, a essência determinada naquilo que faz dela a essência divina. As modalidades da essência divina são tais que fazem com que a essência de Deus seja aquilo que ela é, uma essência divina. Essa hecceidade da essência divina relaciona-se com o fato de que ela é uma essência infinita. No entanto, como já considerado, essa infinidade é um modo intrínseco da essência, ou seja, algo que não a afeta em sua essencialidade.  Mas enquanto infinita, essa essência precisa incluir sua própria existência, de modo que a existência pertence necessariamente à essência infinita. Por conseguinte, se a essência infinita é possível, isto é, se ela não implica contradição, ela existe necessariamente.  

Portanto, a hecceidade da essência divina decorre da sua infinitude. É por ser infinita que a essência de Deus é “esta” essência divina.  Portanto, a modalidade intrínseca da infinitude precede a hecceidade dessa essência. A única essência que possui o modo de ser da essência que é “esta” essência divina, que é a essência infinita. Logo, é por ser infinita que essa essência pode incluir a existência, portanto antes mesmo da condição formal da existência, como precedente à questão do existir, está posta o modo intrínseco que constitui essa essência que é a infinitude. 

 Destarte, a existência só aparece depois que se determina as modalidades intrínsecas da essência e sua hecceidade. A existência, portanto, não tem primazia, mesmo quando se considera a existência de Deus. Embora a essência divina inclua a existência, elas não se confundem. Isso significa que a existência se distingue modalmente na quididade da essência divina. Portanto, a conclusão a que se chega é a de que o conceito da essência divina não inclui o ato de sua existência.  

 

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Referência Bibliográfica: 

GILSON, Étienne. O Ser e a Essência. São Paulo: Paulus, 2016, pp. 129 – 139.  



 

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