O CAMPO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO E SEU SIGNIFICADO - CHARLES TALIAFERRO (TRADUÇÃO)
A
Filosofia da religião consiste na investigação filosófica dos temas e conceitos
envolvidos nas tradições religiosas, bem como na tarefa filosófica mais ampla
de refletir sobre questões de significado religioso, incluindo a natureza da
própria religião, conceitos alternativos de Deus ou de realidade última e o
significado religioso de elementos gerais do cosmos (por exemplo, as leis da
natureza, o surgimento da consciência) e de eventos históricos (por exemplo, o
terremoto de Lisboa em 1755, o holocausto). A filosofia da religião também
inclui a investigação e a avaliação de cosmovisões (como o naturalismo secular)
que são alternativas às cosmovisões religiosas. A filosofia da religião envolve
todas as principais áreas da filosofia: metafísica, epistemologia, teoria do
valor (incluindo teoria moral e ética aplicada), filosofia da linguagem,
ciência, história, política, arte e assim por diante. Este texto pretende
oferecer uma visão geral do campo da Filosofia da Religião e seu significado.
De
maneira ideal, um guia sobre a natureza e história da filosofia da religião
deveria começar com uma análise ou definição de religião. Infelizmente, não há,
hoje, um consenso a respeito de uma identificação precisa de quais seriam as
condições necessárias e suficientes do que conta como religião. Assim,
atualmente não temos um critério decisivo que nos permita decidir com clareza
sobre se alguns movimentos devem ser considerados religiões (por exemplo,
seitas de Cientologia ou seitas de “Culto à Carga” nas ilhas do Pacífico). Mas,
embora o consenso em detalhes precisos seja difícil de conseguir, a seguinte
descrição geral do que conta como religião pode ser útil:
Uma
religião envolve um corpo comum e transmissível de ensinamentos e práticas
prescritas sobre uma realidade ou estado de ser sagrado e último que requer
reverência ou temor, um corpo que guie seus praticantes para o que é descrito
como um relacionamento redentor, iluminador ou libertador em relação a esta
realidade através de uma vida transformadora de oração, meditação ritualizada
e/ou práticas morais como arrependimento e a regeneração pessoal. [Esta é uma
definição ligeiramente modificada da definição de “Religião” no Dicionário de
Filosofia da Religião, Taliaferro &; Marty 2010: 196–197; 2018, 240.]
Essa
definição envolve algumas deficiências óbvias, tais como considerar uma
tradição como religiosa apenas se ela envolver crença em Deus ou deuses, dado
que algumas religiões reconhecidas como o budismo (em suas principais formas)
não envolve crença em Deus ou deuses. Embora controversa, a definição fornece
algumas razões para pensar que a Cientologia e as seitas de "Culto à
Cargo" são proto-religiosas, na medida em que esses movimentos não possuem
um corpo de ensinamentos comuns e transmissíveis e não atendem a outras condições
de religião. (Portanto, embora ambos os exemplos não sejam decisivamente
descartados como religiões, talvez seja compreensível que, na Alemanha, a
Cientologia seja rotulada de "seita", enquanto na França seja
classificada como "um culto".) Para uma discussão de outras
definições de religião, veja Taliaferro 2009, capítulo um, e para uma análise
recente e diferente, veja Graham Oppy 2018, capítulo três. Ao invés de dedicarmos mais espaço às definições, será
adotada uma política pragmática: para os propósitos desta introdução,
assumiremos que as tradições hoje amplamente reconhecidas como religiões são,
de fato, religiões. Será assumido, então, que as religiões incluem (pelo menos)
hinduísmo, budismo, taoísmo, confucionismo, judaísmo, cristianismo, islã e
tradições similares. Essa maneira de delimitar um domínio é por vezes descrita
como o emprego de uma definição através de exemplos (uma definição ostensiva) ou como um apelo a uma semelhança familiar entre as coisas. Também será
assumido que as visões greco-romanas de deuses, rituais, vida após a morte e alma, são amplamente "religiosas" ou "religiosamente
significativas". Dado o uso pragmático e aberto do termo “religião”, a
esperança é evitar iniciar nossa investigação com um leito procustiano.
Tendo
em conta o que foi exposto acima em relação a ampla perspectiva do que conta
como religião, as raízes do que chamamos de filosofia
da religião remontam às formas mais antigas de filosofia. Desde o início,
filósofos da Ásia, Oriente Próximo e Médio, África do Norte e Europa,
refletiram sobre os deuses ou sobre Deus, os deveres para com o divino, a
origem e natureza do cosmos, a vida após a morte, a natureza da felicidade e
das obrigações, se existem deveres sagrados para com a família ou para com os
governantes, e assim por diante. Assim como em cada um dos que viriam a ser
considerados subcampos da filosofia hoje (como filosofia da ciência, filosofia
da arte), os filósofos do mundo antigo abordaram temas de importância religiosa
(assim como fizeram reflexões sobre o que chamamos de ciência e arte ) no curso
de sua prática geral de filosofia. Embora, de tempos em tempos, na era
medieval, alguns filósofos judeus, cristãos e islâmicos tentavam demarcar o
campo da filosofia em relação à teologia ou a religião, o papel evidente da
filosofia da religião como um campo distinto da filosofia não parece aparente
até meados do século XX. Pode-se argumentar, no entanto, que há alguma sugestão
do surgimento da filosofia da religião no movimento filosófico do século XVII,
no Platonismo de Cambridge. Ralph Cudworth (1617-1688), Henry More (1614-1687)
e outros membros desse movimento foram os primeiros filósofos a praticar
filosofia em inglês; eles introduziram em inglês muitos dos termos que são
frequentemente empregados na filosofia da religião atualmente, incluindo o
termo "filosofia da religião", bem como "teísmo",
"consciência" e "materialismo". Os Platonistas de Cambridge
forneceram as primeiras versões em inglês dos argumentos cosmológicos,
ontológicos e teleológicos, reflexões sobre a relação de fé e razão e o questão
sobre tolerar diferentes religiões. Embora os Platonistas de Cambridge possam
ter sido os primeiros filósofos explícitos da religião, em sua maioria, seus
contemporâneos e sucessores trataram da religião como parte de seu trabalho
geral. Há razão, portanto, para acreditar que a filosofia da religião apenas
emergiu gradualmente como um subcampo distinto da filosofia em meados do século
XX. (Para uma data anterior, veja a ênfase de James Collins em Hume, Kant e
Hegel em The Emergence of Philosophy of
Religion, 1967.)
Hoje,
a filosofia da religião é uma das áreas mais vibrantes da filosofia. Os artigos
em filosofia da religião aparecem em praticamente todos os principais
periódicos filosóficos, enquanto alguns (como o International Journal of Philosophy of Religion, Religious Studies,
Sophia, Faith and Philosophy e outros) são dedicados especialmente à
filosofia da religião. A filosofia da religião está em evidência nas reuniões
institucionais de filósofos (como as reuniões da American Philosophical
Association e da Royal Society of Philosophy). Existem sociedades dedicadas ao
campo, como a Society for Philosophy of Religion (EUA) e a Britsh Society for
Philosophy of Religion, e o campo é apoiado por vários centros, como o Center
for Philosophy of Religion da Universidade de Notre Dame, o Rutgers Center for
Philosophy of Religion, o Center for the Philosophy of Religion da Universidade
de Glasgow, o John Hick Center for Philosophy of Religion da Universidade de
Birmingham e outros lugares (como a Universidade de Roehampton e a Nottingham
University). A Oxford University Press publicou em 2009: The History of Western Philosophy of Religion em cinco volumes,
envolvendo mais de 100 colaboradores (Oppy &; Trakakis 2009), e a Wiley Blackwell Encyclopedia of Philosophy
of Religion em cinco volumes, com mais de 350 colaboradores de todo o
mundo, com publicação agendada para 2021. O que explica essa vibração?
Considere quatro possíveis razões:
(1) A natureza religiosa da
população mundial: A maioria das pesquisas sociais sobre
religião apoia a visão de que a maioria da população do mundo faz parte de uma
religião ou é influenciada pela religião (consulte o Pew Research Center on-line). Portanto, dedicar-se à
filosofia da religião, não significa simplesmente tocar tangencialmente
assuntos de interesse social atual, antes significa dedicar-se a um assunto que
afeta pessoas reais. Talvez uma das razões pelas quais a filosofia da religião
seja frequentemente o primeiro tópico das introduções de livros didáticos à
filosofia seja que essa é uma maneira de propor aos leitores que o estudo
filosófico pode afetar o que um grande número de pessoas realmente pensa sobre
vida e valor. O papel da filosofia da religião no engajamento de crenças (e
dúvidas) concretas sobre religião talvez também seja evidenciado pela
popularidade atual dos livros a favor e contra o teísmo no Reino Unido e nos
EUA. Um outro aspecto das populações religiosas que pode motivar a filosofia da
religião é que a filosofia é uma ferramenta que pode ser usada quando as
pessoas comparam diferentes tradições religiosas. A filosofia da religião pode
desempenhar um papel importante para ajudar as pessoas a entender e avaliar
diferentes tradições religiosas e suas alternativas.
(2) A filosofia da religião como um
campo pode ser popular por causa dos interesses sobrepostos encontrados nas
tradições religiosas e filosóficas. Tanto o pensamento
religioso quanto o filosófico levantam muitas das mesmas questões e
possibilidades fascinantes sobre a natureza da realidade, os limites da razão,
o significado da vida e assim por diante. Existem boas razões para crer em
Deus? O que é bom e mau? Qual é a natureza e o escopo do conhecimento humano?
Em Hinduism; A Contemporary Philosophical
Investigation (2018), Shyam Ranganathan argumenta que, no pensamento
asiático, a filosofia e a religião são quase inseparáveis, de modo que o
interesse em um sustenta o interesse no outro.
(3) Estudar a história da filosofia
fornece amplas razões para ter alguma experiência em filosofia da religião. No
Ocidente, a maioria dos filósofos antigos, medievais e modernos refletiram
filosoficamente sobre questões de importância religiosa. Entre esses filósofos
modernos, seria impossível envolver de maneira abrangente sua obra sem examinar seu trabalho filosófico
sobre crenças religiosas: René Descartes (1596-1650), Thomas Hobbes
(1588-1679), Anne Conway (1631-1679), Baruch Spinoza (1632-1677), Margaret
Cavendish (1623-1673), Gottfried Leibniz (1646-1716), John Locke (1632-1704),
George Berkeley (1685-1753), David Hume (1711-1776), Immanuel Kant (1724)
–1804) e George Hegel (1770-1831) (a lista é parcial). E no século XX, deve-se
notar o importante trabalho filosófico dos filósofos continentais sobre
questões de significado religioso: Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul
Sartre (1905-1980), Simone de Beauvoir (1908-1986) Albert Camus (1913–1960),
Gabriel Marcel (1889–1973), Franz Rosenzweig (1886–1929), Martin Buber
(1878–1956), Emmanuel Levinas (1906–1995), Simone Weil (1909–1943) e, mais
recentemente, Jacques Derrida (1930–2004), Michel Foucault (1926–1984) e Luce
Irigary (1930–). Evidências de filósofos que levam a sério as questões religiosas
também podem ser encontradas nos casos em que pensadores que não seriam
(normalmente) classificados como filósofos da religião se dirigiram à religião,
incluindo Alfred Whitehead (1861-1947), Bertrand Russell (1872-1970), George
Moore (1873–1958), John Rawls (1921–2002), Bernard Williams (1929–2003), Hilary
Putnam (1926–2016), Derek Parfit (1942–2017), Thomas Nagel (1937–), Jürgen
Habermas (1929-), e outros. Na filosofia chinesa e indiana, há um desafio ainda
maior do que no Ocidente para distinguir importantes fontes filosóficas e
religiosas da filosofia da religião. Seria difícil classificar Nagarjuna
(150-250 d.C.) ou Adi Shankara (788-820 d.C.) como pensadores exclusivamente
filosóficos ou religiosos. Suas obras se mostram tão importantes filosoficamente
quanto religiosamente (veja: Ranganathan 2018).
(4) Um estudo abrangente de
teologia ou dos estudos religiosos também fornece boas razões para ter
competência em filosofia da religião. Como acabamos de
observar, a filosofia asiática e o pensamento religioso estão entrelaçados e,
portanto, as questões envolvidas na filosofia da religião se mostram
relevantes: o que é espaço e tempo? Existem uma multiplicidade de coisas ou uma
só realidade? Nosso mundo empiricamente observável pode ser uma ilusão? O mundo
seria governado pelo Karma? A reencarnação é possível? Em termos do Ocidente,
há motivos para pensar que mesmo os textos sagrados da fé abraâmica envolvem
fortes elementos filosóficos: no judaísmo, Jó é talvez o texto mais
explicitamente filosófico da Bíblia Hebraica. A tradição de sabedoria de cada
fé abraâmica pode refletir modos filosóficos mais amplos de pensar; o Novo Testamento
cristão parece incluir ou abordar temas platônicos (o Logos, a relação entre a
alma e o corpo). Grande parte do pensamento islâmico inclui reflexão crítica
sobre Platão, Aristóteles, Plotino, bem como trabalhos filosóficos
independentes.
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Traduzido de: Taliaferro, Charles, "Filosofia da Religião", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição de outono de 2019), Edward N. Zalta (ed.), URL = https://plato.stanford.edu/entries/philosophy-religion/
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