HOMOSSEXUALIDADE: SERÁ MESMO PECADO?
O objetivo deste texto é responder à questão “homossexualidade é pecado?” Para isso, vamos considerar os argumentos que são tradicionalmente usados para condenar a homossexualidade. São eles: (i) a Bíblia condena a homossexualidade e (ii) a Tradição da Igreja condena a homossexualidade. O primeiro ponto será tratado em duas seções: (i) O que dizem os textos bíblicos? e (ii) é a opinião dos autores bíblicos inquestionável? O segundo ponto será tratado na seguinte seção: (iii) é mesmo verdade que historicamente a Igreja sempre condenou a homossexualidade? Uma última seção considerará a seguinte pergunta: (iv) há como justificar objetivamente que a homossexualidade seja imoral?
I. O QUE DIZEM OS TEXTOS BÍBLICOS?
Os textos que parecem condenar a homossexualidade, ao menos talvez de maneira mais explícita, são:
“Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é” (Levítico 18:22).
“Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles.” (Levítico 20.13)
"Por isso Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro." (Romanos 1:26 – 27)
“Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem afeminados ou sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus. ” (1 Coríntios 6:9-10; cf. 1 Timóteo 1.10).
Comecemos com os textos de Levítico. Primeiro, será que estamos dispostos a tomar as orientações de Levítico como absolutos morais? Os textos citados são do capítulo 18 e 20, mas veja o que diz o capítulo 19: "Obedeçam às minhas leis. Não cruzem diferentes espécies de animais. Não plantem duas espécies de sementes na sua lavoura. Não usem roupas feitas com dois tipos de tecido.” “Não cortem o cabelo, arredondando-o nos cantos da cabeça, nem cortem também os cantos da barba, tal como fazem os pagãos. Tão pouco devem dar-se golpes na vossa carne ou fazer marcas na pele a título de ritos funerários, por causa de alguém que tenha morrido. Eu sou o Senhor” Estamos dispostos a considerar as leis levíticas válidas para nós hoje?
Segundo, é importante observar que o texto condena que um homem se deite com outro homem porque seria “abominação” (תּוֹעֵבָה - toevah). O que significa “abominação” no contexto do Antigo Testamento? Toevah aparece 142 vezes no Antigo Testamento, geralmente se referindo à idolatria. Por exemplo, 1Reis 14.24 diz: “Havia em todo país até prostitutos culturais e o povo se envolvia em todo tipo de prática abominável comum nas nações que Javé havia expulsado de diante dos filhos de Israel.”
A relação sexual realizada por prostitutos cultuais era considerada “abominação” (idolatria). Observe que de todas as relações sexuais tidas por ilícitas em Levítico, esta é a única que se diz "abominação -idolatria- é". Notemos o contexto da condenação de Levítico: "Não entregue os seus filhos para serem sacrificados a Moloque. Não profanem o nome do seu Deus. Eu sou o Senhor. Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é abominação.” O contexto está falando de culto a ídolos, esse culto podia envolver sacrifícios (“não sacrifiquem seus filhos a Moloque") e prostituição cultual (“não se deite com um homem como se ele fosse mulher"). Se notarmos o “como se fosse mulher”, vemos um claro elemento patriarcal na condenação: seria humilhante a um homem assumir o papel de uma mulher.
Assim, temos dois pontos importantes: o texto reflete uma visão androcêntrica e patriarcal: é humilhante a um homem assumir o papel de uma mulher. Segundo, no contexto temos uma condenação relacionada a um contexto cultural em que o sexo de homens com homens estava associado à prostituição cultual.
Não vou considerar aqui o texto sobre a destruição de Sodoma, já que está claro que o que ocorreu ali foi um estupro coletivo. Passemos ao Novo Testamento. Se lermos Romanos 1, a relação com o mesmo sexo é novamente associada à idolatria: “Trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis. Por isso Deus os entregou à impureza sexual”. Novamente há um aspecto que precisa ser levado em conta: a relação com o mesmo sexo estava associada à idolatria na sociedade romana.
Consideremos, por fim, 1 Coríntios 6.9-10. Será que devemos entender “sodomita” e “afeminado” como “homossexual”? A palavra para sodomita é arsenokoites (literalmente: homem que realiza coito com homem) e malakoi (homem macio). A quem esses termos se referiam na cultura grega?
Foucault, em História da Sexualidade nos ajuda a entender o que esses termos significam. A seção Erótica, do História da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres diz resumidamente:
“A noção de homossexualidade não é muito adequada para entender o uso dos prazeres na relação com os rapazes. Os gregos não opunham, como duas escolhas excludentes, como dois tipos de comportamento radicalmente diferentes, o amor ao seu próprio sexo ao amor pelo sexo oposto. Costuma-se ligar estreitamente o amor grego pelos rapazes à prática da educação e ao ensino filosófico, no entanto, mesmo antes de serem levadas em conta pela reflexão filosófica, essas relações já eram pretexto de todo um jogo social. Diferente da vida matrimonial, a relação entre homens e rapazes trata-se de um jogo aberto não preso a uma estrutura relacional. Em torno das relações com os rapazes foram formadas práticas de 'corte' entre o amante, a quem cabia tomar a inciativa mostrando seu ardor moderadamente e o amado a quem cabia evitar ceder com facilidade. Existe um isomorfismo entre a relação sexual com os rapazes, pensada sobre o modelo da atividade e passividade, com as relações sociais entre aquele que domina e aquele que é dominado. De modo que aquele que penetra é associado à superioridade e aquele que é penetrado é associado à inferioridade, restando à mulher o papel de inferioridade.”
O arsenokoites, portanto, era aquele que penetra, o amante mais velho e viril, e o malakoi, o dominado e penetrado, o amado, mais rapaz e afeminado. No entanto, não seria correto entender isso como “homossexual ativo” e “homossexual passivo”. Estamos diante de um determinado tipo de relação específico das sociedades gregas antigas. Um homem heterossexual que têm relações com sua esposa, deixava essa relação (“deixando o uso natural da mulher”) para ter, “por prazer”, relações com rapazes. No final, o que estava por traz dessa prática era: relações com mulheres visam a reprodução e relações com rapazes visam o prazer.
Assim, os dados bíblicos mostram que a relação sexual entre rapazes foi condenada numa cultura em que ela estava associada à prostituição cultual ou a uma prática cultural específica dos gregos de homens que, não sendo propriamente homossexuais, tinham relações com rapazes mais novos. Esses dados parecem insuficientes para dizer que a Bíblia condena a homossexualidade na configuração que ela ganhou hoje.
II. É A OPINIÃO DOS AUTORES BÍBLICOS INQUESTIONÁVEL?
Uma doutrina estranha usada por biblicistas fundamentalistas é a de que os escritores bíblicos eram inerrantes e, portanto, eles não podem ser questionados. Contra essa visão, alguns teólogos têm entendido que a Revelação de Deus em Cristo é de fato isenta de erro, mas o registro escrito dessa revelação, isto é, sua interpretação e comunicação pelos escritores bíblicos, não é inerrante. Os autores bíblicos eram humanos e, portanto, estavam sujeitos a erros. A Bíblia não é exatamente a revelação de Deus, a revelação de Deus é Cristo. A Bíblia testemunha da revelação.
Que a Bíblia contém erros, não é difícil de perceber. A Bíblia contém claros erros cronológicos, numéricos, históricos e linguísticos. Quando lemos Lucas 1.1-3, percebemos que os autores bíblicos faziam pesquisas a partir das quais produziam seus textos. Eles não eram inspirados mecanicamente para escreverem sem errar. Eles eram verdadeiramente humanos na escrita, sujeitos a erros e condicionantes históricos e sociais.
Além disso, se formos fiéis à inerrância bíblica, teríamos de assumir absurdos, como, por exemplo, que a escravidão não é imoral ou que a terra é plana. Parece mais correto dizer que a revelação de Deus e a mensagem espiritual da Bíblia é isenta de erros, mas não que parte por parte da Bíblia é inerrante. Isso significa que ao lermos a Bíblia devemos lembrar que os escritores viviam numa sociedade patriarcal e que refletiram o contexto em que viviam. Que se o homem ser passivo numa relação sexual era visto como vergonhoso e humilhante era porque a cultura da época ensinava que a mulher é inferior ao homem.
Paulo, como um pensador do seu tempo, defendeu o dogma da inata inferioridade da mulher, ensinando que mulher tem que ser submissa e permanecer calada. Paulo não é Cristo, estava sujeito a errar. Assim, mesmo que o Antigo Testamento e Paulo (lembre-se: ambos apoiam a escravidão), fossem contra a homossexualidade, não somos obrigados a concordar com eles. Mesmo Paulo reconheceu que dizia algumas coisas por ele mesmo (exemplo 1 Coríntios 7.12: “digo eu, não o Senhor”).
III. É MESMO VERDADE QUE A IGREJA CONDENOU HISTORICAMENTE A HOMOSSEXUALIDADE?
Argumenta-se que a homossexualidade é pecado porque a Igreja sempre a condenou e que ser contra ela seria ir contra o ensino milenar da Igreja. Primeiro, precisamos reconhecer que a Igreja já errou moralmente, cruzadas e inquisição estão aí como testemunho. A Igreja não é inerrante, assim como a Bíblia não é. Mas será mesmo verdade que a Igreja sempre condenou a homossexualidade?
A homossexualidade como orientação e identidade é um fenômeno moderno. Não existia antes da modernidade. Nesse sentido, seria anacrônico dizer que a Igreja condenou a homossexualidade. Como vimos, a relação com o mesmo sexo já ganhou diferentes configurações e não é apropriado chamá-las todas de homossexualidade, pois elas são diferentes da configuração que as relações com o mesmo sexo ganharam nas sociedades modernas.
"Nos séculos anteriores ao século XIX, não havia a categoria homossexual, que viria a surgir com o discurso médico. Até então, existia a figura do sodomita, que não era uma categoria identitária, mas alguém que cometia o ato da sodomia. Para compreender como e por que houve esta transição de concepção enquanto ato para identidade sexual, temos que percorrer o caminho da construção da categoria homossexualidade através da história.
Na Inglaterra, durante o governo de Henrique VIII, a bestialidade foi considerada crime passível de pena de morte, permanecendo assim até 1861. Bestialidade era definida como qualquer ato contra a natureza (sodomia), fosse entre homens e mulheres, homens e animais ou homens e homens. O ponto importante desta lei é o de que ela fala de atos e não de pessoas, ou seja, a sodomia não estava vinculada a um determinado tipo de pessoa, mas era vista como um comportamento possível a qualquer indivíduo.
Fazia-se a distinção entre dois tipos de sodomia, a sodomia própria, praticada homem com homem ou homem com mulher e a sodomia imprópria, praticada entre duas mulheres. Se fosse provada a culpa do denunciado, prendia-se somente os que houvessem cometido a sodomia própria.
A sodomia brasileira na primeira visita no Santo Ofício no Brasil, foi realizada pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que não o relaxava o braço secular para se executar a pena capital, já que a Santa Igreja não poderia manchar seu nome com sangue. Apenas a sodomia própria era castigada com a prisão e sobre a sodomia imprópria, não foi escrita uma só linha que mencionasse algum tipo de pena a ela, dando-se a entender que tanto o Santo Ofício, como os teólogos, padres e o próprio autor dessa obra, que baseou esse título nas Constituições do Santo Pio V, ignoraram e fizeram vista grossa a sodomia cometida entre mulheres. Diferentemente do que ocorre nas Ordenações Filipinas, nas quais a punição para o crime de sodomia se estendia tanto aos homens quanto às mulheres que o cometessem entre si, mesmo sendo prevista na teoria, na prática isso não ocorria. Também nas Ordenações se previam a morte dos culpados, fato esse que não ocorria as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, em que apenas o culpado de sodomia própria era preso.
Tanto nas Ordenações Filipinas como nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, não há nenhuma explicação que indique de que maneira poderia se dar a sodomia, seja entre homens, seja entre mulheres ou até mesmo entre um homem e uma mulher. Outro fato bastante notório é que já naquela época (séculos XVI, XVII e XVIII), existia uma grande preocupação em condenar as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Exemplo disso, são as previsões que as Ordenações Filipinas e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia fazem ao pecado da molície, caracterizando-o como masturbação entre homens ou entre mulheres. E se existia tamanha preocupação é porque com certeza havia também uma enorme incidência desses casos.
A sodomia feminina sempre foi tratada como um tema ambíguo e os inquisidores nunca conseguiam chegar a um consenso sobre como ela poderia ser praticada entre mulheres. Por isso, em 1640 as relações sexuais entre mulheres passaram a não mais pertencer à alçada inquisitorial.
No século XVIII, havia dois tipos de corpos (homem e mulher) e três tipos de gênero (masculino, feminino e sodomita), uma vez que o sodomita experienciava seus desejos como resultado de educação ou socialização corrompida, não devido a uma condição do corpo. Na sociedade burguesa emergente daquele século, o sodomita tinha importância, pois garantia a manutenção das relações de poder entre homens e mulheres, já que destacava o comportamento sexual (desejo por homens, sentido por sodomitas e mulheres) como marca de diferença de gênero (homens só desejavam mulheres). Isso nos remete a Laqueur (apud Nunan, 2001:8), que estabelece que a busca por estabelecer diferenças só ocorreu porque 'essas diferenças se tornaram politicamente importantes.'
Embora houvesse o sodomita, este era única e exclusivamente pautado no comportamento sexual, não existindo, ainda, a categoria homossexual. Esta só viria a surgir no século XIX, com o discurso médico. Foi depois do advento da separação da medicina geral do corpo da medicina do sexo, com a publicação, em 1846, da Psychopatia Sexualis, de Heinrich Kaan, que passou a vigorar 'um domínio médico-psicológico das 'perversões', que viria a tomar o lugar das velhas categorias morais de devassidão e da extravagância'".
Assim, parece mais correto dizer que a homossexualidade como a conhecemos, como orientação e categoria identitária, é um fenômeno recente. Não é correto chamar as manifestações históricas de amor entre rapazes de “homossexualidade”, pois elas tinham significações diferentes da homossexualidade como vivida hoje. Nesse sentido, dizer que a Igreja sempre condenou a homossexualidade seria anacrônico.
IV. HÁ COMO JUSTIFICAR OBJETIVAMENTE QUE A HOMOSSEXUALIDADE SEJA IMORAL?
A reposta é não, não há nada objetivamente que testemunhe contra a homossexualidade. Ela não fere nenhum princípio deontológico de dignidade humana, não pode ser deduzida de princípios da razão e não contradiz em nada o Princípio de Maior Felicidade. No fim, o único argumento que restaria é “a homossexualidade é errada porque Deus a considera errada”.
Será que estamos dispostos a assumir as consequências desse tipo de resposta? Se a homossexualidade não fere nenhum princípio objetivo, mas mesmo assim é condenada por Deus, então ela seria uma condenação arbitrária. Não importa se disfarçamos isso dizendo “a homossexualidade não é condenada arbitrariamente, ela contradiz a ‘natureza’ de Deus”, ainda não está dissolvida a questão se não ficar mostrado em que a homossexualidade contradiz a natureza divina. A natureza divina é boa, justa e verdadeira. Se a homossexualidade não é contrária à bondade, justiça e verdade, então ela não contradiz a natureza divina.
Como não há nada eticamente objetivo que testemunhe contra a homossexualidade, se Deus considerasse a homossexualidade errada seria por pura arbitrariedade e isso destruiria a moral objetiva.
John Stuart Mill, em o Utilitarismo, mostra que uma moral objetiva e a crença em Deus são coerentes na medida em que se entende que Deus deseja a felicidade de suas criaturas.
John Stuart Mill, em o Utilitarismo, mostra que uma moral objetiva e a crença em Deus são coerentes na medida em que se entende que Deus deseja a felicidade de suas criaturas.
Na história, milhares de pessoas tem sofrido por uma moral que diz que os sentimentos que elas não escolheram ter é “pecaminoso” e “abominável”. Uma doutrina assim tem levado pessoas à culpa agonizante e até ao suicídio. Por outro lado, quando um homossexual se ama e se aceita de fato, pode viver de maneira mais leve e feliz.
Um Deus que condenasse a homossexualidade seria um Deus que estaria do lado do sofrimento que a moral heteronormativa tem produzido. Um Deus assim é oposto a uma ética objetiva. No entanto, se Deus deseja nossa felicidade, Ele não condena a homossexualidade. Deus disse através de Isaías (48.18):
“Como seria bom se você prestasse atenção aos meus mandamentos!
Então a sua paz se tornaria como um rio”
Deus quer que obedeçamos os mandamentos dele para que tenhamos paz e felicidade. Não é essa paz e felicidade que é encontrada por homossexuais ao tentarem reprimir quem são. Se Deus é bom, e não um legislador arbitrário, então Ele não exige dos homossexuais que se entreguem a uma vida de repressão e infelicidade.
O "pecado" é uma atitude desarmônica consigo mesmo, com os outros e com o Cosmos (Deus e o Nada). É justamente não aceitar quem somos que nos coloca em desarmonia conosco mesmo. As análises aqui feitas mostraram que nem a Bíblia, nem a Igreja historicamente, nem a ética objetiva condenam a homossexualidade. Portanto, a partir do que foi considerado neste artigo, parece correto concluir: homossexualidade não é pecado.
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