MIGUEL SERVETO: RESISTÊNCIA À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA


   
            Por vezes, alguns personagens históricos são esquecidos ou pouco citados. Este artigo tem como objetivo tornar conhecido a história de Miguel Serveto, morto pelos calvinistas simplesmente por causa de suas crenças religiosas. Miguel Serveto é um nome que precisa ser lembrado sempre que um calvinista diz "lutar pela fé reformada e contra as heresias" e deve constituir o caso para lembrarmos a importância da defesa das liberdades religiosas.


            O artigo Miguel Servet — sozinho na busca pela verdade (jw), fornece um bom resumo de sua história:
“MIGUEL SERVET nasceu em 1511 na aldeia de Villanueva de Sijena, Espanha. Desde pequeno, foi um excelente aluno. Segundo certo biógrafo, ‘aos 14 anos, ele havia aprendido grego, latim, hebraico e tinha muito conhecimento de filosofia, matemática e teologia’
Ainda na adolescência, Servet passou a ser ajudante de Juan de Quintana, conselheiro espiritual do imperador espanhol Carlos V. Em suas viagens oficiais, Servet pôde ver as principais divisões religiosas da Espanha. Judeus e muçulmanos tinham sido exilados desse país ou forçados a se converter ao catolicismo.
Aos 16 anos, Servet foi estudar Direito na Universidade de Toulouse, França. Foi ali que viu uma Bíblia completa pela primeira vez. Embora fosse terminantemente proibido ler a Bíblia, Servet leu-a escondido. Após terminar a primeira leitura, jurou ler a Bíblia outras ‘mil vezes’. A Bíblia que Servet estudou em Toulouse provavelmente foi a Poliglota Complutense, uma versão que lhe permitiu ler as Escrituras nos idiomas originais (hebraico e grego) junto com a tradução em latim.  O estudo da Bíblia e a decadência moral que ele havia visto entre os clérigos espanhóis abalaram sua fé na religião católica.
Suas dúvidas aumentaram quando ele compareceu à coroação de Carlos V. O rei espanhol foi coroado imperador do Sacro Império Romano pelo Papa Clemente VII. O papa, sentado em seu trono portátil, recebeu o rei, que lhe beijou os pés. Servet escreveu mais tarde: ‘Vi com meus próprios olhos o papa sendo carregado nos ombros dos príncipes com toda a pompa, sendo adorado de joelhos pelas pessoas nas ruas.’ Servet reconheceu que toda aquela pompa e extravagância não se harmonizavam com a simplicidade do Evangelho.
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Os que buscam a verdade sempre tiveram muitos inimigos. Entre os muitos adversários de Servet, estava João Calvino, que tinha estabelecido um autoritário Estado protestante em Genebra. Segundo o historiador Will Durant, ‘a ditadura de Calvino não era baseada na lei ou na força, mas na sua determinação e caráter’, e ‘Calvino era tão radical quanto qualquer papa no rejeitar o individualismo nas crenças’. ”

            A influência do reformador João Calvino na morte de Serveto foi decisiva. Embora Calvino não tenha matado diretamente Serveto, apoiou a decisão do conselho municipal de Genebra de levar Serveto à morte. A única coisa que Calvino fez foi sugerir que Serveto fosse decapitado ao invés de queimado vivo. Calvino também já havia denunciado Serveto à inquisição católica, que também tentou matá-lo. Calvino ainda ordenou um tratamento cruel a Serveto na prisão. Calvino escreveu a Guilherme Farel: “Se Serveto vir aqui, se minha autoridade valer algo, eu nunca lhe permitiria sair vivo” (Fiat LuxO Homem Memória do Universo). Coube a Guilherme Farel, conhecido por persuadir João Calvino a permanecer em Genebra, quem em 27 de outubro de 1553, executou Serveto numa fogueira.
            O teólogo reformado Augustus Nicodemus coloca: “Calvino aceitava a pena de morte, não somente para os que matavam o corpo de seus semelhantes, mas também para os que lhes matavam a alma através do veneno mortal do erro religioso.” (Calvino e Serveto). Assim, pregar doutrinas consideradas “erradas” era, para os calvinistas, “matar a alma” e isso exigia que a pessoa fosse punida com a morte.
De acordo com o historiador calvinista Franklin Ferreira: “todos os reformadores europeus apoiaram unanimemente a decisão do conselho de Genebra.” (Desconstruindo mitos sobre Calvino).  Nicodemus também pontua: “Calvino, estava determinado a mostrar que Genebra era uma cidade reformada e comprometida com os credos. E assim, Serveto foi condenado a ser queimado vivo.” “A execução de Serveto foi aprovada por todas as demais cidades-estados reformadas e por todos os reformadores. Lutero e Zwinglio já haviam morrido, mas certamente haveriam concordado. O próprio Lutero havia consentido na execução de camponeses revoltosos. Os demais, Bullinger, Beza, Bucer, etc., todos deram apoio irrestrito a Calvino.” (Calvino e Serveto) Martin Bucer escreveu: “Servetus merecia ser desentranhado e rasgado em pedaços.” Teodoro Beza disse: “A punição foi mais merecidamente infligida sobre Servetus em Genebra, não porque ele era um sectário, mas porque era uma combinação monstruosa de mera impiedade e de repugnante blasfêmia, com a qual ele tinha, por todo o período de trinta anos, pela fala e pela escrita, poluído tanto o céu quanto a Terra.”
            Miguel Serveto havia escrito para João Calvino: eu não te odeio, nem te desprezo, nem quero vos perseguir. Ele também disse: “Deixa, pois, Calvino, de deturpar-nos aquela Lei, ou de tratar de sua observação em formas tão violentas, como se tratasses com judeus. Que Deus, que nessa Lei se apiedou tantas vezes dos judeus, apiede-se também de ti. Amém" (Christ.Rest., 653). Nas Institutas da Religião Cristã, Calvino demonstrou não compartilhar da mesma atitude respeitosa. Ele caracteriza Serveto como de “abominável impiedade” (1.13.10) e de “diabólica imaginação” (2.9.3).  Para se proteger contra seus perseguidores que lhe desejavam a morte, Serveto teve até de mudar de nome, assumindo o pseudônimo de Michel de Villeneuve.
            A história de Serveto é marcada pela busca sincera da verdade: “É digno de nota que a palavra ‘verdade’ e seus derivados aparecem em seus escritos com mais frequência do que qualquer outra palavra.” (Miguel Servet — sozinho na busca pela verdade - jw). Perseguido pelos católicos, Serveto tentou buscar refúgio entre os protestantes em Genebra. Mas, “Genebra não era um lugar seguro para todos. Miguel Servet, nascido em 1511 na Espanha, estudou grego, latim, hebraico e medicina, e talvez tenha conhecido Calvino quando os dois estudavam em Paris. ... Ele tentou se corresponder com Calvino sobre esse assunto (a Trindade), mas Calvino encarava Servet como um inimigo. Perseguido pelos católicos na França, Servet fugiu para Genebra, a cidade de Calvino. Em vez de ser bem acolhido, ele foi preso, julgado por heresia e queimado na estaca em 1553. ‘A execução de Servet continua a ser uma marca desonrosa na vida e no trabalho do grande Reformador [Calvino]’, diz o historiador Friedrich Oehninger.” (O que o calvinismo conseguiu realizar em 500 anos? – jw).
            Em busca da verdade, Serveto foi um dedicado estudante não só da religião, mas também das ciências, tendo descoberto e descrito a circulação pulmonar. “Em sua descrição da circulação pulmonar expõe que a força vital provém da mistura, nos pulmões, do ar aspirado e do sangue que flui do ventrículo direito ao esquerdo. Todavia, o fluxo do sangue não se dá, como geralmente se crê, através do septo interventricular. O sangue flui por um longo conduto através dos pulmões, onde a sua cor se torna mais clara, passando da veia que se parece a uma artéria, a uma artéria parecida com uma veia. Admite-se que Servet tenha realizado observações próprias em animais para chegar a essa conclusão, embora não as tenha mencionado. A sua descoberta da circulação pulmonar foi divulgada em um livro sobre religião, intitulado Christianismi restitutio, que foi considerado herético, confiscado e incinerado.” (O trágico destino de Miguel Servet - Joffre Marcondes de Rezende). Seu conhecimento de ciências, fez dele um importante médico: “Estudou medicina em Paris e mais tarde a exerceu em diversas cidades da França. Ficou famoso por sua contribuição em relação à descoberta da circulação pulmonar do sangue.”  (Morrer por uma doutrina – jw)
            Os católicos, não tendo conseguido matar Serveto, queimaram um boneco em seu lugar. Queimado vivo pelos protestantes e em figura pelos católicos, Serveto é um símbolo de resistência à intolerância religiosa:
“A triste lembrança da execução do médico espanhol Miguel Servet, queimado vivo no fogo lento da madeira verde, em Genebra, no dia 27 de outubro de 1553, retrata o trágico resultado da perseguição aos homens e mulheres que resistiram aos dogmas encobertos pelo véu da intolerância dos católicos e protestantes. A coragem de Servet amedrontou as duas hierarquias. Por essa razão, acabou queimado em imagem pela igreja católica, em Paris, e na fogueira pelos calvinistas.”  (Miguel Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes. Prof.Dr.HC João Bosco Botelho)
            Alejandro Rodríguez de la Peña mostra como proporcionalmente a Inquisição calvinista foi pior que a inquisição católica espanhola: “Não podemos esquecer, tampouco, que em Genebra – a Meca do Protestantismo – João Calvino não duvidou em mandar para a fogueira o ilustre descobridor da circulação sanguínea – o espanhol Miguel Servet. E o cientista aragonês foi apenas um entre as 500 vítimas [mortas], em 10 anos de intolerância calvinista, em uma cidade com somente 10.000 habitantes. Observando esta proporção brutal de condenações, a Inquisição Espanhola deveria ter queimado 1.000.000 de pessoas por cada século de operação; porém, na realidade, condenou 3.000 em 300 anos! Não obstante, Torquemada passou a ser, no ideário popular, sinônimo de intolerância, e Calvino foi aclamado por muitos como um dos 'pais' das democracias liberais do norte da Europa.”
            A execução injusta de Serveto revoltou intelectuais em toda a Europa. Os intelectuais tomaram o caso de Serveto a fim de destacarem a importância da liberdade religiosa, argumentando que ninguém devia ser morto por causa de suas crenças. Contra a ideia dos reformados de que era preciso matar um homem para proteger a "doutrina da Trindade", o intelectual francês Sébastien Chateillon escreveu: “Matar um homem não significa proteger uma doutrina, significa matar um homem.”
            Leandro Almeida pontua: “Enquanto Calvino e Beza se empenharam na condenação do médico espanhol, Castellion foi uma voz dissonante no clima persecutório de então, propondo reflexões sobre a punição aos chamados ‘hereges’ que estão entre as mais lúcidas contribuições ao debate sobre liberdade de expressão.” (Notas sobre a estratégia argumentativa de Sébastien Castellion no caso Miguel Servet). É importante lembrar que ainda hoje há grupos calvinistas que defendem pena de morte contra o que eles consideram “hereges”. Rousas Rushdoony, autor reconstrucuionista, escreve que “propagação de falsas doutrinas” é uma falta que requer pena de morte (Institutes of Biblical Law).
            O poeta italiano Camilo Renato protestou contra a decisão de Calvino: “Nem Deus nem seu espírito orientaram essa decisão. Cristo não tratou desse modo os que o negaram.” O próprio Serveto entendia que ninguém deveria ser morto por suas crenças religiosas, ele escreveu: “Considero um assunto sério matar pessoas por crermos que estão erradas em alguma questão de interpretação bíblica quando sabemos que até mesmo os escolhidos podem se equivocar.” Que jamais esqueçamos do caso Serveto, que ele nos sirva sempre de exemplo para que possamos defender as liberdades religiosas e condenar o fundamentalismo religioso.



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