A IMPORTÂNCIA DA NARRATIVA MÍTICA NO FÉDON E O MITO BÍBLICO A RESPEITO DA VIDA APÓS A MORTE
O objetivo deste
ensaio é trabalhar a importância da narrativa mítica no Fédon e associá-la com
o mito bíblico a respeito da vida após a morte. Platão, no Fédon, recorre a
postulados da tradição órfico-pitagórica para dar suporte aos seus argumentos
de que a alma sobrevive à morte do corpo. Os mitos apresentam a morte como uma
libertação para aqueles que levam uma vida virtuosa, de modo que o filósofo anseia
a morte, encarando-a com serenidade (SOBRINHO, 2007). De igual modo, os cristãos,
com base no mito bíblico, creem que os virtuosos, em uma vida futura, gozarão
de felicidade eterna. É assim, pois, que mártires cristãos encararam a sentença
de morte a eles impostas com muita tranquilidade, certos de entrar na glória celestial ao deixarem este corpo.
Podemos
lembrar, por exemplo, de como o reformador Jan Huss (1369-1415) encarou heroicamente
o martírio. Huss, enquanto um reformador, desafiou a Igreja Medieval e foi
condenado à fogueira. Foi lhe dito que ele poderia se livrar da morte renunciando
às crenças que propagou, mas Huss permaneceu firme no que cria não vendo em si
nenhum erro a que se retratar. Ele encarou a morte como uma oportunidade de
confirmar com seu sangue as verdades que pregou. Enquanto o fogo queimava seu
corpo, dizem as testemunhas que dele nenhum grito de dor se ouviu, enquanto as
chamas o consumiam, ele cantava hinos a Deus como o cisne diante da morte. John
Huss se preparou para a morte assim como um noivo se prepara para o casamento (WHITE,
2004).
Assim
como as testemunhas ficaram surpresas ante a serenidade de Huss diante da
morte, aqueles que falaram com Sócrates nos últimos momentos de sua vida estavam
perplexos de como o filósofo demonstrava tranquilidade e anseio por partir. Sócrates
segura o fio de Ariadne da filosofia como seu fiel condutor rumo a um estado
muito melhor do que aquele no qual vive a alma unida ao corpo. Sabia que assim
que morresse, sua alma seria liberta das limitações do corpo e se uniria ao
divino. Poderia, assim, conhecer a verdade em suas formas puras, formas em
relação às quais a alma mais se assemelha (PLATÃO, 1988). Se o discurso
político o condenou à morte, eram seus perseguidores que deveriam temer o juízo
dos deuses contra essa injustiça (PLATÃO, 1999). Assim como Huss, Sócrates não
renunciou ao que ensinou, sabia que sua vida foi inteira pautada pela virtude.
Este ensaio possui duas partes:
I. A IMPORTÂNDIA DA NARRATIVA MÍTICA NO
FÉDON
II. O MITO BÍBLICO A RESPEITO DA VIDA
APÓS A MORTE
I.
A IMPORTÂNICA DA NARRATIVA MÍTICA NO FÉDON
O mito exerce um papel
fundamental no Fédon, sendo um elemento persuasivo quando o raciocínio lógico
encontra seus limites. Assim, o mito não apenas funciona como uma narrativa
constituída por uma série encadeada de ações, mas também pode servir de tipo
para fortalecer persuasivamente um argumento razoável. Desse modo, é conferida
pela narrativa uma significação aos argumentos que os enseja. O encanto
produzido pelo mito ao despertar certos afetos sustenta a investigação
filosófica em seu processo elucidativo. Portanto, não se deve pensar o recurso
mitológico como uma mentira, uma mera ficção ou algo que deveria ser descartado
por contrariar a razão (SOBRINHO, 2007).
O desprezo pelo mito
pode ser compreendido como uma consequência de uma concepção que surge com o
Iluminismo. O Iluminismo estabeleceu a racionalidade como parâmetro normativo
de toda verdade. A razão seria, portanto, a pedra de toque pela qual se
comprova ser um determinado pensamento válido. Todo argumento deveria, pois, ser
avaliado pelo critério supremo da razão. O mito, assim, foi desprezado como
sendo algo ilusório ou enganador. Haveria, pois, conforme o Iluminismo, uma
antítese entre mito e razão. Hokeimer & Adorno (1944/1995), entretanto,
criticam o Iluminismo ou Esclarecimento, justamente por promover um “mito da
razão”, ocorrendo uma transformação da racionalidade em desrazão que se
expressa em uma violência mítica. O irracional, assim, se dissimularia na
vontade de razão. Portanto, o Iluminismo, na busca de se livrar de todo
elemento mitológico, acaba se tornando, ele mesmo, uma mitologia
Essa terminologia, todavia,
é problemática, pois ainda se refere ao mito como algo negativo. Dela, porém,
podemos tirar a constatação de que toda tentativa de banir o irracional em nome
da racionalidade resulta em fracasso. Longe de ver o mito como algo ruim,
devemos enxergá-lo enquanto uma forma de desvelamento da verdade. Para
compreender isso, podemos considerar como Heidegger (1996) trabalhou o conceito
de verdade a partir do Teeteto e da República de Platão em seu ensaio “Da
essência da verdade” (1933-1934). Tradicionalmente, especialmente dentro do
aristotelismo e do tomismo, a verdade foi definida como correspondência entre a
proposição e a realidade, ou entre o enunciado e o objeto. Podemos chamar esse
conceito de “verdade proposicional”, que tange ao argumento regido pela lógica formal.
Quando se considera um
silogismo argumentativo, é essa a noção de verdade que está em operação.
Trata-se de verificar a concordância ou adequação entre o juízo e aquilo a
respeito do qual se discorre. Tal verificação demanda uma averiguação da fidelidade
dessa sentença em relação ao mundo no qual vivemos. O mito, por outro lado, não
pode ter sua verdade entendida nesse sentido, pois aquilo que ele enuncia não
pode ser averiguado empiricamente. É preciso, pois, procurar um sentido de
verdade ainda mais originário do que a acepção proposicional. Heidegger (1996)
buscará esse sentido no termo grego “ἀλήθεια”, constituído pela partícula de
negação (a-) seguida da referência ao rio do esquecimento (lethos).
Verdade significa, pois, retirar algo do esquecimento, descobrir, tirar do encobrimento,
isto é, desvelar.
Assim, na alegoria da
caverna, aquilo que se encontrava dissimulado pelas sombras, é desvelado pelo
Sol (a Ideia do Bem), isto é, posto à luz, enquanto no Teeteto o conhecimento é
apresentado como percepção (αἴσθησις) e visão (νόησις), isto é, como abertura e
fazer-ver (PLATÃO, 1933; PLATÃO, 2005). A essência da verdade é, portanto,
desvelamento. A verdade como desvelamento é ainda mais originária e fundamental
do que a verdade como adequação, pois uma enunciação só pode se conformar ao
real se aquilo do qual se discorre se mostrar, isto é, for desvelado
(HEIDEGGER, 2012). O mito desvela, abre a verdade enquanto um horizonte de
mostração. Não se deve, pois, se prender a um esquema de correspondência entre mito
e realidade verificável, antes é preciso conceber a narrativa mítica como uma
sequência de eventos que abrem um campo de mostração.
O mito, pois, guarda
uma verdade autêntica e originária. Não se trata de uma descrição literal do
real, mas de uma narrativa que atinge nossa afetividade como campo de doação de
um conhecimento que transcende a razão. Podemos considerar, por exemplo, como
Carl Gustav Jung (1921/1991) trabalhou o conceito de “irracional”: irracional
não é aquilo que está em contradição com a razão, mas sim o que a transcende. A
racionalidade é apenas um dos dois tipos de funções psique, estando
ligada ao pensamento e ao sentimento. Todavia, o humano é dotado ainda de duas
funções irracionais: a sensação e a intuição, de modo que a razão não dá conta
da totalidade. A expressão de elementos de nosso inconsciente, especialmente do
coletivo, tais como os arquétipos universais, se dão por meio do mito e do rito.
Nesse sentido, a narrativa mítica expressa verdades que dizem respeito à
dimensão mais profunda de nosso próprio ser (JUNG, 1964).
O mito tem papel
fundamental no Fédon, e desde já é preciso afastar a interpretação equivocada
de que Platão apresentaria uma dicotomia ou dualismo alma e corpo que situaria
a corporeidade como inferior. O cerne do diálogo está, não em um maniqueísmo entre
corpo e alma, mas em um conflito que tem seu lugar dentro da própria alma. A
alma pode, ela mesma, se degenerar ao dar lugar apenas aos apetites, de modo
que mesmo depois de separada do corpo, ainda pode se encontrar presa à orexia
ao qual se entregou em sua vida terrena. Por seu desejo sensual, mesmo após a
morte, a alma impura permanece sob influência dos apetites do corpo (SOBRINHO,
2007).
A importância do mito
está justamente em mostrar que o destino das almas puras é diferente daquele que
encontrado pelas almas presas a apetites sensuais. Após deixar o corpo, a alma
inicia uma viagem, conforme se constata pela metáfora da segunda navegação, na
qual a morte é apresentada em uma imagem náutica (SOBRINHO, 2007). Para o
filósofo, que cultivou o cuidado da alma e a virtude, essa viagem significa uma
libertação. Daí se explica a tranquilidade de Sócrates diante da morte, similar
àquela encontrada em mártires cristãos. O apóstolo Paulo, por exemplo, escreveu:
“Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Caso continue vivendo no
corpo, terei fruto do meu trabalho. E já não sei o que escolher! Estou
pressionado dos dois lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é muito
melhor” (Filipenses 1:21-23, BÍBLIA, 2001). Do mesmo modo que ocorre com o
cristão, a morte é, para o filósofo, uma libertação.
O fato de a morte ser uma libertação não
significa uma autorização ao suicídio, pois somos responsáveis não só individualmente,
mas coletivamente. Se um homem se entrega à morte pela via do suicídio, isso causaria
sofrimento a amigos e familiares, além de ferir o equilíbrio entre opostos.
Pois, se todos se matassem, a própria vida como contraponto da morte não
poderia subsistir (SOBRINHO, 2007). Portanto, o filósofo, assim como S. Paulo,
se encontra diante do paradoxo desejar morrer, o que é muito melhor, mas estar
obrigado moralmente a obedecer à proibição ao suicídio. S. Paulo conclui seu
dilema dizendo: “contudo, é mais necessário, por causa de vocês, que eu
permaneça no corpo.” (Filipenses 1:24, BÍBLIA, 2001) Vemos, pois, o
reconhecimento da responsabilidade coletiva: embora a morte seja uma
libertação, por causa de seus deveres com os irmãos vivos, para o apóstolo, é
melhor permanecer ligado à vida corpórea.
No Fédon, em termos de mitologia, é muito
forte a presença da tradição do orfismo e do pitagorismo. Para a concepção órfica,
a vida humana é semelhante à morte, da qual a alma precisa se libertar por meio
da purificação em uma existência ascética. Há, assim, na doutrina órfico-pitagórica,
a concepção da metensomatose, que vê a alma em prisão apontando para uma
libertação que está para além do que a racionalidade pode descrever. Trata-se,
pois, de uma realidade misteriosa que requer uma iniciação que envolve o mito.
No entanto, a trajetória indicada pelo caminho órfico-pitagórico não é suficiente
para o alcance do conhecimento, pois o mito, isolado, não chega a ser filosofia
(SOBRINHO, 2007).
De qualquer modo, a prática da filosofia é
similar aos exercícios de purificação realizados nos mistérios
órfico-pitagóricos. Os pressupostos que orientam a reflexão socrática no Fédon
são extraídos da tradição mítica, fundamentados em postulados que são assumidos
ao invés de demonstrados racionalmente. Que a alma existe distinta do corpo, que
ela anseia o divino, que ela é indestrutível, que nela se encontra a sede da
razão e que ela passa por um ciclo purificatório de reencarnações, são premissas
que tem sua origem no mito. Mesmo Simas e Cebes recorrem à tradição pitagórica,
especialmente a Filolau de Crotona, em suas objeções, quando consideram, por
exemplo, a tentativa de pensar a alma em termos de uma harmonia matemática.
Filolau concebia o mundo como tendo no seu centro um fogo central, chamado
Héstia, que funciona como princípio de harmonia. Essa concepção mantém relação
com a visão pitagórica de que a ordem cósmica se organiza em termos de razões numéricas
e escalas musicais (SOBRINHO, 2007).
Outra
metáfora mítica que ajuda a pensar o diálogo do Fédon, é o canto do Cisne. O
discurso filosófico é semelhante ao cisne que morre cantando. Seu cântico, um
dom recebido do deus Apolo, revela a antecipação da felicidade que o aguarda no
pós-morte. Por meio de metáforas como essa, é possível persuadir além do que o argumento
é capaz. Se o encadeamento de sentenças lógicas é incapaz de fornecer a segurança
necessária diante da iminência da morte, o mito toca em nossas emoções por meio
de suas imagens. Por isso, enquanto os argumentos racionais se dirigem à mente,
as imagens míticas se direcionam especialmente aos afetos (SOBRINHO, 2007).
Tendo visto o papel do mito no Fédon, consideremos, agora, como a vida após a morte
é pensada na tradição bíblica.
II. O MITO BÍBLICO A RESPEITO DA VIDA
APÓS A MORTE
É difícil dizer qual é o mito bíblico a
respeito da vida após a morte, pois não há uma única versão na Bíblia sobre
o destino dos mortos, sendo mais apropriado falar de mitos no plural. No Antigo Testamento (AT), ao que
parece, a morte é retratada como um sono e as almas dos mortos descansam no
abismo subterrâneo chamado Seol (שְׁאוֹל). O Seol é a Sepultura comum da humanidade.
Não há no Seol distinção entre justos e injustos, não há castigos ou
recompensas, ali tanto bons quanto maus dormem juntos num estado de
inconsciência (TORRE DE VIGIA, 1992). Esta é uma lista de todas as 66 vezes em
que a palavra Seol aparece na Bíblia (TORRE DE VIGIA, 2006):
Gn37.35; 42.38; 44.29,31;
Nm16.30,33; Dt32.22; 1Sm2.6 ;2Sm22.6;
1Rs2.6,9;Jó7.9;11.8;14.13;17.13,16;21.13;24.19;26.6;SL6.5;9.17;16.10;18.5;30.3;31.17;49.14,15;55.15;86.13;88.3;89.48;116.3;139.8;141.7;Pv1.12;5.5;7.27;9.18;15.11,24;23.14;27.20;30.16;Ec9.10;Ct8.6;Is5.14;7.11;14.9,11,15;28.15,18;38.10,18;57.9;Ez31.15,16,17;
32.21,27;Os13.14;Am9.2;Jn2.2;Hc2.5.
Quanto
à noção de alma no Antigo Testamento, ela é muito diversa da noção que aparece
no Fédon. Alma (נֶפֶשׁ), em geral, significa simplesmente “ser vivo”, podendo
se referir tanto aos animais quanto ao ser humano. O termo “alma” se refere a
qualquer criatura que respira, estando relacionada ao fôlego de vida (espírito –
רוּחַ) ou hálito. A alma não se refere a uma parte separada da pessoa, mas à
própria pessoa como um todo (STRONG, 2002). Para o Velho Testamento, a alma é
mortal e destrutível, como se vê em diversos textos (Gên 12:13; 17:14; 19:19,
20; 37:21; Êx 12:15, 19; 31:14; Le 7:20, 21, 27; 19:8; 22:3; 23:30; 24:17; Núm
9:13; 15:30, 31; 19:13, 20; 23:10; 31:19; 35:11, 15, 30; De 19:6, 11; 22:26;
27:25; Jos 2:13, 14; 10:28, 30, 32, 35, 37, 39; 11:11; 20:3, 9; Jz 5:18; 16:16,
30; 1Rs 19:4; 20:31; Jó 7:15; 11:20; 18:4; 33:22; 36:14; Sal 7:2; 22:29; 66:9;
69:1; 78:50; 94:17; 106:15; 124:4; Pr 28:17; Is 55:3; Je 2:34; 4:10; 18:20;
38:17; 40:14; Ez 13:19; 17:17; 18:4; 22:25, 27; 33:6). O caso é tão curioso,
que o AT usa a expressão “alma morta” para se referir a um cadáver (TORRE DE
VIGIA, 2006):
Lv 19:28; 21:1, 11; 22:4; Núm 5:2; 6:6,
11; 9:6, 7, 10; 19:11, 13; Ag 2:13.
No período pós-exílico da história dos judeus, por influência
do pensamento persa, a noção do pós-morte sofreu modificações em seu sentido, havendo
o desenvolvimento de uma noção de vida após a morte (JÚNIOR, 2018). Até mesmo o
Seol muda de sentido, passando a ser pensado como um lugar de punição ou
purificação em textos apócrifos ou como tendo compartimentos, aproximando-se da
ideia grega de Hades (Ἅιδης) (cf: HARRIS
& CHARLES, 2017). Na literatura posterior ao exílio, desenvolve-se ainda ideias
apocalípticas de um fim dos tempos chamado "Dia de Yahweh", e começa
a se formar a noção de um evento escatológico final de punição dos maus e
recompensa dos justos (CERNÝ, 1948).
No Novo Testamento
(NT), a compreensão a respeito da condição dos mortos parece sofrer alteração.
No tempo de Cristo, existiam duas seitas com opiniões bem divergentes a respeito
do destino dos mortos: os saduceus, talvez mais próximos da visão
veterotestamentária, não criam na imortalidade da alma, diferente dos fariseus
que acreditavam que a alma não morre e que talvez tivessem alguma noção de
reencarnação (KARDEK, 2008). O Novo Testamento é constituído por diversos
autores e é possível, assim, que eles não concordem completamente entre si
sobre o destino dos mortos. Por isso, concentrarei a análise em alguns textos
dos Evangelhos e de S. Paulo.
É difícil saber o que
o próprio Jesus ensinou a respeito da imortalidade da alma, se é que ele
ensinou algo a respeito. Ele narrou uma parábola em que Lázaro, um homem humilde
vai para um lugar de descanso junto a Abraão enquanto um rico avarento desce a
uma região no Hades em que é atormentando no fogo. Trata-se de uma narrativa
que buscava contrastar os fariseus religiosos, representados pelo rico, e os
publicanos, prostitutas e gentios, representados pelo pobre Lázaro (Lucas 16:19-31,
BÍBLIA, 2001). Sendo o texto uma parábola, é difícil concluir que seu objetivo fosse
descrever o além. Cristo também teria dito,
segundo algumas interpretações, que o ladrão da cruz subiria ao céu no mesmo
dia de sua morte: “Jesus lhe respondeu: ‘Eu garanto: Hoje você estará comigo no
paraíso’” (BÍBLIA, 2001). No entanto, a ausência de pontuação no texto original
leva alguns a verter o texto como: “E ele lhe disse: ‘Deveras eu te digo hoje:
Estarás comigo no paraíso” (TORRE DE VIGIA, 2006).
Outro
texto que pode lançar luz sobre o que Cristo pensava a respeito da morte e da
alma está em Mateus 10:28: “Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não
podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma
como o corpo no inferno.” (BÍBLIA, 2001). O texto parece dizer que a alma pode
sobreviver à morte do corpo, ao mesmo tempo que diz que ela pode ser destruída
no inferno. A tradução “inferno” é infeliz, o termo no grego é Geena (γέεννα),
que se refere ao Vale de Hinon a sudoeste de Jerusalém. Geena era um vale que
funcionava como um depósito de lixo. Ali havia um fogo que estava sempre aceso,
incinerando o que se jogava nele. Quando um criminoso era morto, era comum que
seu cadáver fosse lançado nesse lixão, ali o seu corpo era comido por vermes
enquanto era consumido pelas chamas e Cristo pode ter tomado essa imagem como
símbolo do juízo sobre os injustos (TORRE DE VIGIA, 2006). Nos sermões de
Cristo, o Hades também é associado à ideia de juízo, como em Mateus 5:23;16:18;
Lucas10:15 (BÍBLIA, 2001).
No
Evangelho de João, a morte de Lázaro, amigo de Cristo, é relacionada a um sono:
“Assim falou; e depois disse-lhes: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas vou
despertá-lo do sono.” (João 11:11, BÍBLIA, 2001). “Despertar do sono” significa
ressuscitar. A morte é comparada com um sono no qual a pessoa dorme até o dia
em que será desperta por ocasião da ressurreição. Talvez essa fosse a
perspectiva do apóstolo S. Paulo, embora as epístolas atribuídas ao apóstolo
possam ter informações contraditórias em relação à condição dos mortos. De
qualquer modo, Paulo comparava a morte com um sono e apresentava a ressurreição
corpórea quando Cristo retornasse como a esperança do cristão (1 Tessalonicenses
4:15-17). Ele dizia que se não houvesse a ressurreição, o cristão não poderia
ter nenhuma esperança de vida após a morte: “Se os mortos não ressuscitam, ‘comamos
e bebamos, porque amanhã morreremos’” (1 Coríntios 15:32, BÍBLIA, 2001). Portanto,
em S. Paulo, a esperança do pós-morte não está focada na imortalidade da alma,
mas na ressurreição do corpo.
De
acordo com o teólogo luterano Oscar Cullmann (2011), especialista em Novo
Testamento, a crença de que o NT ensina a imortalidade da alma é uma leitura
equivocada fruto de uma acomodação dos textos à filosofia grega. Para ele, há
uma antítese entre imortalidade da alma e ressurreição dos mortos, sendo a
segunda aquela que caracteriza a esperança neotestamentária. Assim, o ensino do
Novo Testamento (a ressurreição dos mortos) e o ensino de Sócrates e Platão (a imortalidade
da alma) seriam incompatíveis. O Cristianismo, entretanto, posteriormente
desenvolverá a doutrina do “estado intermediário”, segundo o qual, entre a
morte e a ressurreição as almas dos mortos estariam conscientes aguardando serem
ressuscitadas, conciliando, assim, a concepção grega da imortalidade da alma e
a visão neotestamentária da ressurreição dos corpos (cf: SILVA, 2020).
Na
História da Igreja, diferentes concepções serão desenvolvidas a respeito do
destino das almas dos mortos, os cristãos que morreram em pecado venial iriam
para o purgatório, no qual seriam purificados no fogo antes de poderem entrar
no céu. Há, ainda, a crença de que os salvos do Antigo Testamento teriam ido
para o limbo dos patriarcas (limbus patrum), onde ficaram até a ressurreição
de Cristo. Outro local de destino para os mortos, seria o limbo das crianças (limbus
infantum), para o qual desceriam as crianças que morrem antes de serem
batizadas. Por fim, há o céu e o inferno, o primeiro sendo um lugar de
felicidade eterna para os justos e o segundo um local de tormento sem fim para
os ímpios (SOLIMEO, 2002).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
compreensão bíblica de que um paraíso de eterna felicidade aguarda as almas justas pode
ser um estímulo para que o cristão virtuoso encare a morte com tranquilidade e
esperança, enquanto o temor de uma punição escatológica final serviria para
infundir em sua alma o afastamento dos prazeres da carne. O mito bíblico,
portanto, fornece um conjunto de imagens figuradas que podem ter o mesmo papel
das narrativas míticas órfico-pitagóricas evocadas por Sócrates no Fédon. Não
se deve concluir, a menos que um crente admita-o por fé, que os mitos bíblicos
do destino dos mortos sejam descrições literais de um pós-morte, assim como
Sócrates não requeria que seus ouvintes esperassem que a narrativa mítica por
ele apresentada devesse ser tomada como um conjunto de sentenças em
correspondência pormenorizada com a realidade.
Hoje,
com os avanços das neurociências, e a demonstração de que estados mentais são
decorrentes de nossas atividades cerebrais, parece improvável acreditar em uma
consciência que subsista independente do cérebro. A cessação da atividade
cerebral parece indicar a cessação da própria vida consciente. A ideia da
sobrevivência de uma parte imaterial do humano após a morte traz dificuldades
em relação ao problema da identidade, já que nós não somos apenas uma parte de
nós mesmos. Questões como essas tornam a crença em uma alma que sobrevive à
morte do corpo como muito improvável (ROWE, 2011). No entanto, ainda que a
morte seja realmente um fim, embora não possamos saber com certeza, os mitos
que a humanidade e as religiões construíram a respeito de uma vida após a morte
ainda são úteis, tanto como expressão de verdades simbólicas referentes aos
arquétipos de nosso inconsciente coletivo (JUNG, 1964) quanto como meios de trabalhar
os afetos a fim de ensejar uma vida virtuosa (RUBENS, 2007).
REFERÊNCIAS
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