A IMPORTÂNCIA DA NARRATIVA MÍTICA NO FÉDON E O MITO BÍBLICO A RESPEITO DA VIDA APÓS A MORTE

 

O objetivo deste ensaio é trabalhar a importância da narrativa mítica no Fédon e associá-la com o mito bíblico a respeito da vida após a morte. Platão, no Fédon, recorre a postulados da tradição órfico-pitagórica para dar suporte aos seus argumentos de que a alma sobrevive à morte do corpo. Os mitos apresentam a morte como uma libertação para aqueles que levam uma vida virtuosa, de modo que o filósofo anseia a morte, encarando-a com serenidade (SOBRINHO, 2007). De igual modo, os cristãos, com base no mito bíblico, creem que os virtuosos, em uma vida futura, gozarão de felicidade eterna. É assim, pois, que mártires cristãos encararam a sentença de morte a eles impostas com muita tranquilidade, certos de entrar na glória celestial ao deixarem este corpo.

            Podemos lembrar, por exemplo, de como o reformador Jan Huss (1369-1415) encarou heroicamente o martírio. Huss, enquanto um reformador, desafiou a Igreja Medieval e foi condenado à fogueira. Foi lhe dito que ele poderia se livrar da morte renunciando às crenças que propagou, mas Huss permaneceu firme no que cria não vendo em si nenhum erro a que se retratar. Ele encarou a morte como uma oportunidade de confirmar com seu sangue as verdades que pregou. Enquanto o fogo queimava seu corpo, dizem as testemunhas que dele nenhum grito de dor se ouviu, enquanto as chamas o consumiam, ele cantava hinos a Deus como o cisne diante da morte. John Huss se preparou para a morte assim como um noivo se prepara para o casamento (WHITE, 2004).

            Assim como as testemunhas ficaram surpresas ante a serenidade de Huss diante da morte, aqueles que falaram com Sócrates nos últimos momentos de sua vida estavam perplexos de como o filósofo demonstrava tranquilidade e anseio por partir. Sócrates segura o fio de Ariadne da filosofia como seu fiel condutor rumo a um estado muito melhor do que aquele no qual vive a alma unida ao corpo. Sabia que assim que morresse, sua alma seria liberta das limitações do corpo e se uniria ao divino. Poderia, assim, conhecer a verdade em suas formas puras, formas em relação às quais a alma mais se assemelha (PLATÃO, 1988). Se o discurso político o condenou à morte, eram seus perseguidores que deveriam temer o juízo dos deuses contra essa injustiça (PLATÃO, 1999). Assim como Huss, Sócrates não renunciou ao que ensinou, sabia que sua vida foi inteira pautada pela virtude.

            Este ensaio possui duas partes:

I. A IMPORTÂNDIA DA NARRATIVA MÍTICA NO FÉDON

II. O MITO BÍBLICO A RESPEITO DA VIDA APÓS A MORTE


I. A IMPORTÂNICA DA NARRATIVA MÍTICA NO FÉDON

 

O mito exerce um papel fundamental no Fédon, sendo um elemento persuasivo quando o raciocínio lógico encontra seus limites. Assim, o mito não apenas funciona como uma narrativa constituída por uma série encadeada de ações, mas também pode servir de tipo para fortalecer persuasivamente um argumento razoável. Desse modo, é conferida pela narrativa uma significação aos argumentos que os enseja. O encanto produzido pelo mito ao despertar certos afetos sustenta a investigação filosófica em seu processo elucidativo. Portanto, não se deve pensar o recurso mitológico como uma mentira, uma mera ficção ou algo que deveria ser descartado por contrariar a razão (SOBRINHO, 2007).

O desprezo pelo mito pode ser compreendido como uma consequência de uma concepção que surge com o Iluminismo. O Iluminismo estabeleceu a racionalidade como parâmetro normativo de toda verdade. A razão seria, portanto, a pedra de toque pela qual se comprova ser um determinado pensamento válido. Todo argumento deveria, pois, ser avaliado pelo critério supremo da razão. O mito, assim, foi desprezado como sendo algo ilusório ou enganador. Haveria, pois, conforme o Iluminismo, uma antítese entre mito e razão. Hokeimer & Adorno (1944/1995), entretanto, criticam o Iluminismo ou Esclarecimento, justamente por promover um “mito da razão”, ocorrendo uma transformação da racionalidade em desrazão que se expressa em uma violência mítica. O irracional, assim, se dissimularia na vontade de razão. Portanto, o Iluminismo, na busca de se livrar de todo elemento mitológico, acaba se tornando, ele mesmo, uma mitologia

Essa terminologia, todavia, é problemática, pois ainda se refere ao mito como algo negativo. Dela, porém, podemos tirar a constatação de que toda tentativa de banir o irracional em nome da racionalidade resulta em fracasso. Longe de ver o mito como algo ruim, devemos enxergá-lo enquanto uma forma de desvelamento da verdade. Para compreender isso, podemos considerar como Heidegger (1996) trabalhou o conceito de verdade a partir do Teeteto e da República de Platão em seu ensaio “Da essência da verdade” (1933-1934). Tradicionalmente, especialmente dentro do aristotelismo e do tomismo, a verdade foi definida como correspondência entre a proposição e a realidade, ou entre o enunciado e o objeto. Podemos chamar esse conceito de “verdade proposicional”, que tange ao argumento regido pela lógica formal.

Quando se considera um silogismo argumentativo, é essa a noção de verdade que está em operação. Trata-se de verificar a concordância ou adequação entre o juízo e aquilo a respeito do qual se discorre. Tal verificação demanda uma averiguação da fidelidade dessa sentença em relação ao mundo no qual vivemos. O mito, por outro lado, não pode ter sua verdade entendida nesse sentido, pois aquilo que ele enuncia não pode ser averiguado empiricamente. É preciso, pois, procurar um sentido de verdade ainda mais originário do que a acepção proposicional. Heidegger (1996) buscará esse sentido no termo grego “ἀλήθεια”, constituído pela partícula de negação (a-) seguida da referência ao rio do esquecimento (lethos). Verdade significa, pois, retirar algo do esquecimento, descobrir, tirar do encobrimento, isto é, desvelar.

Assim, na alegoria da caverna, aquilo que se encontrava dissimulado pelas sombras, é desvelado pelo Sol (a Ideia do Bem), isto é, posto à luz, enquanto no Teeteto o conhecimento é apresentado como percepção (αἴσθησις) e visão (νόησις), isto é, como abertura e fazer-ver (PLATÃO, 1933; PLATÃO, 2005). A essência da verdade é, portanto, desvelamento. A verdade como desvelamento é ainda mais originária e fundamental do que a verdade como adequação, pois uma enunciação só pode se conformar ao real se aquilo do qual se discorre se mostrar, isto é, for desvelado (HEIDEGGER, 2012). O mito desvela, abre a verdade enquanto um horizonte de mostração. Não se deve, pois, se prender a um esquema de correspondência entre mito e realidade verificável, antes é preciso conceber a narrativa mítica como uma sequência de eventos que abrem um campo de mostração.

O mito, pois, guarda uma verdade autêntica e originária. Não se trata de uma descrição literal do real, mas de uma narrativa que atinge nossa afetividade como campo de doação de um conhecimento que transcende a razão. Podemos considerar, por exemplo, como Carl Gustav Jung (1921/1991) trabalhou o conceito de “irracional”: irracional não é aquilo que está em contradição com a razão, mas sim o que a transcende. A racionalidade é apenas um dos dois tipos de funções psique, estando ligada ao pensamento e ao sentimento. Todavia, o humano é dotado ainda de duas funções irracionais: a sensação e a intuição, de modo que a razão não dá conta da totalidade. A expressão de elementos de nosso inconsciente, especialmente do coletivo, tais como os arquétipos universais, se dão por meio do mito e do rito. Nesse sentido, a narrativa mítica expressa verdades que dizem respeito à dimensão mais profunda de nosso próprio ser (JUNG, 1964).

O mito tem papel fundamental no Fédon, e desde já é preciso afastar a interpretação equivocada de que Platão apresentaria uma dicotomia ou dualismo alma e corpo que situaria a corporeidade como inferior. O cerne do diálogo está, não em um maniqueísmo entre corpo e alma, mas em um conflito que tem seu lugar dentro da própria alma. A alma pode, ela mesma, se degenerar ao dar lugar apenas aos apetites, de modo que mesmo depois de separada do corpo, ainda pode se encontrar presa à orexia ao qual se entregou em sua vida terrena. Por seu desejo sensual, mesmo após a morte, a alma impura permanece sob influência dos apetites do corpo (SOBRINHO, 2007).

A importância do mito está justamente em mostrar que o destino das almas puras é diferente daquele que encontrado pelas almas presas a apetites sensuais. Após deixar o corpo, a alma inicia uma viagem, conforme se constata pela metáfora da segunda navegação, na qual a morte é apresentada em uma imagem náutica (SOBRINHO, 2007). Para o filósofo, que cultivou o cuidado da alma e a virtude, essa viagem significa uma libertação. Daí se explica a tranquilidade de Sócrates diante da morte, similar àquela encontrada em mártires cristãos. O apóstolo Paulo, por exemplo, escreveu: “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Caso continue vivendo no corpo, terei fruto do meu trabalho. E já não sei o que escolher! Estou pressionado dos dois lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é muito melhor” (Filipenses 1:21-23, BÍBLIA, 2001). Do mesmo modo que ocorre com o cristão, a morte é, para o filósofo, uma libertação.

O fato de a morte ser uma libertação não significa uma autorização ao suicídio, pois somos responsáveis não só individualmente, mas coletivamente. Se um homem se entrega à morte pela via do suicídio, isso causaria sofrimento a amigos e familiares, além de ferir o equilíbrio entre opostos. Pois, se todos se matassem, a própria vida como contraponto da morte não poderia subsistir (SOBRINHO, 2007). Portanto, o filósofo, assim como S. Paulo, se encontra diante do paradoxo desejar morrer, o que é muito melhor, mas estar obrigado moralmente a obedecer à proibição ao suicídio. S. Paulo conclui seu dilema dizendo: “contudo, é mais necessário, por causa de vocês, que eu permaneça no corpo.” (Filipenses 1:24, BÍBLIA, 2001) Vemos, pois, o reconhecimento da responsabilidade coletiva: embora a morte seja uma libertação, por causa de seus deveres com os irmãos vivos, para o apóstolo, é melhor permanecer ligado à vida corpórea.

No Fédon, em termos de mitologia, é muito forte a presença da tradição do orfismo e do pitagorismo. Para a concepção órfica, a vida humana é semelhante à morte, da qual a alma precisa se libertar por meio da purificação em uma existência ascética. Há, assim, na doutrina órfico-pitagórica, a concepção da metensomatose, que vê a alma em prisão apontando para uma libertação que está para além do que a racionalidade pode descrever. Trata-se, pois, de uma realidade misteriosa que requer uma iniciação que envolve o mito. No entanto, a trajetória indicada pelo caminho órfico-pitagórico não é suficiente para o alcance do conhecimento, pois o mito, isolado, não chega a ser filosofia (SOBRINHO, 2007).

De qualquer modo, a prática da filosofia é similar aos exercícios de purificação realizados nos mistérios órfico-pitagóricos. Os pressupostos que orientam a reflexão socrática no Fédon são extraídos da tradição mítica, fundamentados em postulados que são assumidos ao invés de demonstrados racionalmente. Que a alma existe distinta do corpo, que ela anseia o divino, que ela é indestrutível, que nela se encontra a sede da razão e que ela passa por um ciclo purificatório de reencarnações, são premissas que tem sua origem no mito. Mesmo Simas e Cebes recorrem à tradição pitagórica, especialmente a Filolau de Crotona, em suas objeções, quando consideram, por exemplo, a tentativa de pensar a alma em termos de uma harmonia matemática. Filolau concebia o mundo como tendo no seu centro um fogo central, chamado Héstia, que funciona como princípio de harmonia. Essa concepção mantém relação com a visão pitagórica de que a ordem cósmica se organiza em termos de razões numéricas e escalas musicais (SOBRINHO, 2007).

            Outra metáfora mítica que ajuda a pensar o diálogo do Fédon, é o canto do Cisne. O discurso filosófico é semelhante ao cisne que morre cantando. Seu cântico, um dom recebido do deus Apolo, revela a antecipação da felicidade que o aguarda no pós-morte. Por meio de metáforas como essa, é possível persuadir além do que o argumento é capaz. Se o encadeamento de sentenças lógicas é incapaz de fornecer a segurança necessária diante da iminência da morte, o mito toca em nossas emoções por meio de suas imagens. Por isso, enquanto os argumentos racionais se dirigem à mente, as imagens míticas se direcionam especialmente aos afetos (SOBRINHO, 2007). Tendo visto o papel do mito no Fédon, consideremos, agora, como a vida após a morte é pensada na tradição bíblica.

 

II. O MITO BÍBLICO A RESPEITO DA VIDA APÓS A MORTE

 

É difícil dizer qual é o mito bíblico a respeito da vida após a morte, pois não há uma única versão na Bíblia sobre o destino dos mortos, sendo mais apropriado falar de mitos no plural. No Antigo Testamento (AT), ao que parece, a morte é retratada como um sono e as almas dos mortos descansam no abismo subterrâneo chamado Seol (שְׁאוֹל). O Seol é a Sepultura comum da humanidade. Não há no Seol distinção entre justos e injustos, não há castigos ou recompensas, ali tanto bons quanto maus dormem juntos num estado de inconsciência (TORRE DE VIGIA, 1992). Esta é uma lista de todas as 66 vezes em que a palavra Seol aparece na Bíblia (TORRE DE VIGIA, 2006):

 Gn37.35; 42.38; 44.29,31; Nm16.30,33; Dt32.22; 1Sm2.6 ;2Sm22.6; 1Rs2.6,9;Jó7.9;11.8;14.13;17.13,16;21.13;24.19;26.6;SL6.5;9.17;16.10;18.5;30.3;31.17;49.14,15;55.15;86.13;88.3;89.48;116.3;139.8;141.7;Pv1.12;5.5;7.27;9.18;15.11,24;23.14;27.20;30.16;Ec9.10;Ct8.6;Is5.14;7.11;14.9,11,15;28.15,18;38.10,18;57.9;Ez31.15,16,17; 32.21,27;Os13.14;Am9.2;Jn2.2;Hc2.5. 

            Quanto à noção de alma no Antigo Testamento, ela é muito diversa da noção que aparece no Fédon. Alma (נֶפֶשׁ), em geral, significa simplesmente “ser vivo”, podendo se referir tanto aos animais quanto ao ser humano. O termo “alma” se refere a qualquer criatura que respira, estando relacionada ao fôlego de vida (espírito – רוּחַ) ou hálito. A alma não se refere a uma parte separada da pessoa, mas à própria pessoa como um todo (STRONG, 2002). Para o Velho Testamento, a alma é mortal e destrutível, como se vê em diversos textos (Gên 12:13; 17:14; 19:19, 20; 37:21; Êx 12:15, 19; 31:14; Le 7:20, 21, 27; 19:8; 22:3; 23:30; 24:17; Núm 9:13; 15:30, 31; 19:13, 20; 23:10; 31:19; 35:11, 15, 30; De 19:6, 11; 22:26; 27:25; Jos 2:13, 14; 10:28, 30, 32, 35, 37, 39; 11:11; 20:3, 9; Jz 5:18; 16:16, 30; 1Rs 19:4; 20:31; Jó 7:15; 11:20; 18:4; 33:22; 36:14; Sal 7:2; 22:29; 66:9; 69:1; 78:50; 94:17; 106:15; 124:4; Pr 28:17; Is 55:3; Je 2:34; 4:10; 18:20; 38:17; 40:14; Ez 13:19; 17:17; 18:4; 22:25, 27; 33:6). O caso é tão curioso, que o AT usa a expressão “alma morta” para se referir a um cadáver (TORRE DE VIGIA, 2006):

Lv 19:28; 21:1, 11; 22:4; Núm 5:2; 6:6, 11; 9:6, 7, 10; 19:11, 13; Ag 2:13.

             No período pós-exílico da história dos judeus, por influência do pensamento persa, a noção do pós-morte sofreu modificações em seu sentido, havendo o desenvolvimento de uma noção de vida após a morte (JÚNIOR, 2018). Até mesmo o Seol muda de sentido, passando a ser pensado como um lugar de punição ou purificação em textos apócrifos ou como tendo compartimentos, aproximando-se da ideia grega de Hades (Ἅιδης) (cf: HARRIS & CHARLES, 2017). Na literatura posterior ao exílio, desenvolve-se ainda ideias apocalípticas de um fim dos tempos chamado "Dia de Yahweh", e começa a se formar a noção de um evento escatológico final de punição dos maus e recompensa dos justos (CERNÝ, 1948). 

No Novo Testamento (NT), a compreensão a respeito da condição dos mortos parece sofrer alteração. No tempo de Cristo, existiam duas seitas com opiniões bem divergentes a respeito do destino dos mortos: os saduceus, talvez mais próximos da visão veterotestamentária, não criam na imortalidade da alma, diferente dos fariseus que acreditavam que a alma não morre e que talvez tivessem alguma noção de reencarnação (KARDEK, 2008). O Novo Testamento é constituído por diversos autores e é possível, assim, que eles não concordem completamente entre si sobre o destino dos mortos. Por isso, concentrarei a análise em alguns textos dos Evangelhos e de S. Paulo.

É difícil saber o que o próprio Jesus ensinou a respeito da imortalidade da alma, se é que ele ensinou algo a respeito. Ele narrou uma parábola em que Lázaro, um homem humilde vai para um lugar de descanso junto a Abraão enquanto um rico avarento desce a uma região no Hades em que é atormentando no fogo. Trata-se de uma narrativa que buscava contrastar os fariseus religiosos, representados pelo rico, e os publicanos, prostitutas e gentios, representados pelo pobre Lázaro (Lucas 16:19-31, BÍBLIA, 2001). Sendo o texto uma parábola, é difícil concluir que seu objetivo fosse descrever o além.  Cristo também teria dito, segundo algumas interpretações, que o ladrão da cruz subiria ao céu no mesmo dia de sua morte: “Jesus lhe respondeu: ‘Eu garanto: Hoje você estará comigo no paraíso’” (BÍBLIA, 2001). No entanto, a ausência de pontuação no texto original leva alguns a verter o texto como: “E ele lhe disse: ‘Deveras eu te digo hoje: Estarás comigo no paraíso” (TORRE DE VIGIA, 2006).

            Outro texto que pode lançar luz sobre o que Cristo pensava a respeito da morte e da alma está em Mateus 10:28: “Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno.” (BÍBLIA, 2001). O texto parece dizer que a alma pode sobreviver à morte do corpo, ao mesmo tempo que diz que ela pode ser destruída no inferno. A tradução “inferno” é infeliz, o termo no grego é Geena (γέεννα), que se refere ao Vale de Hinon a sudoeste de Jerusalém. Geena era um vale que funcionava como um depósito de lixo. Ali havia um fogo que estava sempre aceso, incinerando o que se jogava nele. Quando um criminoso era morto, era comum que seu cadáver fosse lançado nesse lixão, ali o seu corpo era comido por vermes enquanto era consumido pelas chamas e Cristo pode ter tomado essa imagem como símbolo do juízo sobre os injustos (TORRE DE VIGIA, 2006). Nos sermões de Cristo, o Hades também é associado à ideia de juízo, como em Mateus 5:23;16:18; Lucas10:15 (BÍBLIA, 2001).

            No Evangelho de João, a morte de Lázaro, amigo de Cristo, é relacionada a um sono: “Assim falou; e depois disse-lhes: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo do sono.” (João 11:11, BÍBLIA, 2001). “Despertar do sono” significa ressuscitar. A morte é comparada com um sono no qual a pessoa dorme até o dia em que será desperta por ocasião da ressurreição. Talvez essa fosse a perspectiva do apóstolo S. Paulo, embora as epístolas atribuídas ao apóstolo possam ter informações contraditórias em relação à condição dos mortos. De qualquer modo, Paulo comparava a morte com um sono e apresentava a ressurreição corpórea quando Cristo retornasse como a esperança do cristão (1 Tessalonicenses 4:15-17). Ele dizia que se não houvesse a ressurreição, o cristão não poderia ter nenhuma esperança de vida após a morte: “Se os mortos não ressuscitam, ‘comamos e bebamos, porque amanhã morreremos’” (1 Coríntios 15:32, BÍBLIA, 2001). Portanto, em S. Paulo, a esperança do pós-morte não está focada na imortalidade da alma, mas na ressurreição do corpo.

            De acordo com o teólogo luterano Oscar Cullmann (2011), especialista em Novo Testamento, a crença de que o NT ensina a imortalidade da alma é uma leitura equivocada fruto de uma acomodação dos textos à filosofia grega. Para ele, há uma antítese entre imortalidade da alma e ressurreição dos mortos, sendo a segunda aquela que caracteriza a esperança neotestamentária. Assim, o ensino do Novo Testamento (a ressurreição dos mortos) e o ensino de Sócrates e Platão (a imortalidade da alma) seriam incompatíveis. O Cristianismo, entretanto, posteriormente desenvolverá a doutrina do “estado intermediário”, segundo o qual, entre a morte e a ressurreição as almas dos mortos estariam conscientes aguardando serem ressuscitadas, conciliando, assim, a concepção grega da imortalidade da alma e a visão neotestamentária da ressurreição dos corpos (cf: SILVA, 2020).

            Na História da Igreja, diferentes concepções serão desenvolvidas a respeito do destino das almas dos mortos, os cristãos que morreram em pecado venial iriam para o purgatório, no qual seriam purificados no fogo antes de poderem entrar no céu. Há, ainda, a crença de que os salvos do Antigo Testamento teriam ido para o limbo dos patriarcas (limbus patrum), onde ficaram até a ressurreição de Cristo. Outro local de destino para os mortos, seria o limbo das crianças (limbus infantum), para o qual desceriam as crianças que morrem antes de serem batizadas. Por fim, há o céu e o inferno, o primeiro sendo um lugar de felicidade eterna para os justos e o segundo um local de tormento sem fim para os ímpios (SOLIMEO, 2002).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            A compreensão bíblica de que um paraíso de eterna felicidade aguarda as almas justas pode ser um estímulo para que o cristão virtuoso encare a morte com tranquilidade e esperança, enquanto o temor de uma punição escatológica final serviria para infundir em sua alma o afastamento dos prazeres da carne. O mito bíblico, portanto, fornece um conjunto de imagens figuradas que podem ter o mesmo papel das narrativas míticas órfico-pitagóricas evocadas por Sócrates no Fédon. Não se deve concluir, a menos que um crente admita-o por fé, que os mitos bíblicos do destino dos mortos sejam descrições literais de um pós-morte, assim como Sócrates não requeria que seus ouvintes esperassem que a narrativa mítica por ele apresentada devesse ser tomada como um conjunto de sentenças em correspondência pormenorizada com a realidade.

            Hoje, com os avanços das neurociências, e a demonstração de que estados mentais são decorrentes de nossas atividades cerebrais, parece improvável acreditar em uma consciência que subsista independente do cérebro. A cessação da atividade cerebral parece indicar a cessação da própria vida consciente. A ideia da sobrevivência de uma parte imaterial do humano após a morte traz dificuldades em relação ao problema da identidade, já que nós não somos apenas uma parte de nós mesmos. Questões como essas tornam a crença em uma alma que sobrevive à morte do corpo como muito improvável (ROWE, 2011). No entanto, ainda que a morte seja realmente um fim, embora não possamos saber com certeza, os mitos que a humanidade e as religiões construíram a respeito de uma vida após a morte ainda são úteis, tanto como expressão de verdades simbólicas referentes aos arquétipos de nosso inconsciente coletivo (JUNG, 1964) quanto como meios de trabalhar os afetos a fim de ensejar uma vida virtuosa (RUBENS, 2007).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ADORNO, Theodor W, HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento (1944). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

 

BÍBLIA. Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2001.

 

CERNÝ, Ladislav. The Day of Yahweh and Some Relevant Problems. Prague: Nakladam Filosofike Fakulty University Karlovy, 1948.

 

CULLMAN, Oscar. Imortalidade da alma ou ressureição dos mortos. Mentes Bereanas, 2011.

 

HARRIS, J. Rendel & CHARLES, R. H. Psalms of Solomon & Odes of Solomon: With Introductions by the Translators. CrossReach Publications, 2017.

 

HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. In M. Heidegger, Heidegger: conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

 

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. RJ: Vozes, 2012.

 

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, [1921] 1991. (Obras completas de C. G. Jung v. VI)

 

JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

 

JUNIOR, Geraldo Batista de Araújo. Vida após a morte. No período pós-exílico da história dos judeus, por influência do pensamento persa, a noção do pós-morte sofreu modificações em seu sentido, designando um lugar de punição ou purificação espiritual. Dissertação de Mestrado Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2018.

 

KARDEK. Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. São Paulo: Editora Ide, 2008.

 

PLATÃO. A República. 7. ed. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

 

PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

 

PLATÃO. Fédon. Tradução, introdução e notas de Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Coimbra: Minerva, 1988.

 

PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana M. Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

 

ROWE, William Leonard. Introdução à filosofia da religião. São Paulo: Editora Verbo, 2011.

 

SILVA, Gil Monteiro. O significado da morte na perspectiva cristã, israelita e secular. Rio de Janeiro: Casa Publicado das Assembleias de Deus, 2020.

 

SOBRINHO, Rubens Garcia. Platão e a Imortalidade: mito e argumentação no Fédon. Uberlândia: EDUFU, 2007.

 

SOLIMEO, Luiz Sérgio. A vida após a morte à luz da doutrina católica. São Paulo: Petrus Editora, 2002.

 

STRONG, James. Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong. Sociedade Bíblica do Brasil, 2002.

 

TORRE DE VIGIA, Sociedade. Estudo Perspicaz das Escrituras. Cesário Lange: Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1992.

 

TORRE DE VIGIA, Sociedade. Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas com referências. Cesário Lange: Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 2006.

 

WHITE, Ellen Gold. O Grande Conflito. Tatuaí: Casa Publicadora Brasileira, 2004.

 


Comentários

Postagens mais visitadas