MODERNIDADE LÍQUIDA - ZYGMUNT BAUMAN (RESUMO)
O que se segue é um resumo do livro Modernidade Líquida do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman. Neste livro, Baumann considera a época em que vivemos como caracterizada por um novo tipo de modernidade, marcado pela fluidez, incerteza e insegurança. O resumo, como o livro, se divide em cinco partes: (i) emancipação; (ii) individualidade; (iii) tempo/espaço; (iv) trabalho e (v) comunidade. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.
I. EMANCIPAÇÃO
Devermos nos emancipar, “libertar-nos da sociedade”. Podemos fazer uma distinção entre duas formas de emancipação: (i) libertação subjetiva: redução dos desejos e/ou da imaginação. (ii) libertação objetiva: ampliação da nossa capacidade de ação. Essa distinção nos permite entender que alguém pode se sentir subjetivamente livre, mas sem possuir uma liberdade objetivamente satisfatória.
Alguns pensadores defendem que a libertação é uma bênção, enquanto outros a veem como uma maldição. Os que entendem a libertação como uma bênção, ressaltam a liberdade do indivíduo de agir conforme suas vontades, por outro lado, os que a veem como uma maldição, destacam o fato de que a liberdade faz recair sobre nós a responsabilidade por nossos atos.
Diante da relutância de alguns em aceitar a liberdade, surgiram duas explicações: (i) a explicação dos que lançam dúvidas sobre a prontidão do "povo comum" para a liberdade: esta explicação inspira ou a compaixão pelo "povo" desorientado ou o desprezo contra a "massa", que não quer assumir as responsabilidades da liberdade; (ii) a explicação dos que se inclinam a aceitar que os homens podem não estar inteiramente equivocados quando questionam os benefícios da liberdade: esta explicação deriva sua credibilidade da suposição de que um ser humano dispensado das limitações sociais coercitivas é uma besta e não um indivíduo livre, segundo essa visão a verdadeira liberdade consiste na dependência e submissão à sociedade.
Os indivíduos vivendo em sociedade creem, assim, não precisar de nenhuma libertação. O que está errado com a sociedade em que vivemos é que ela deixou de se questionar. Isso não significa, entretanto, que nossa sociedade tenha suprimido o pensamento crítico como tal. Ao contrário, nossa sociedade fez da crítica da realidade uma parte inevitável e obrigatória dos afazeres da vida de cada um de seus membros. De alguma maneira, no entanto, essa reflexão não vai longe o suficiente para alcançar os complexos mecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e os determinam, e menos ainda as condições que mantêm esses mecanismos em operação.
A sociedade contemporânea, denominado por alguns como sociedade pós-moderna, mas que podemos chamar de "sociedade da modernidade fluida", é inóspita para a crítica. A sociedade contemporânea deu à "hospitalidade à crítica" um sentido inteiramente novo e inventou um modo de acomodar o pensamento e a ação crítica, permanecendo imune às consequências dessa acomodação. O tipo de modernidade que era alvo da teoria crítica clássica é muito diferente daquele que enquadra a vida das gerações de hoje. A sociedade moderna antes era pesada, sólida, condensada, sistêmica e impregnada da tendência ao totalitarismo da homogeneidade compulsória, imposta e onipresente. Essa modernidade era inimiga jurada da contingência, da variedade, da ambiguidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa a todas essas "anomalias".
A sociedade que entra no século XXI não é menos "moderna" que a que entrou no século XX; o máximo que se pode dizer é que ela é moderna de um modo diferente. O que a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o que distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio humano: a compulsiva e obsessiva, continua, irrefreável e sempre incompleta modernização. Duas características, no entanto, fazem desta sociedade uma forma nova e diferente de modernidade: (i) o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido; (ii) a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes: o que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado ("individualizado").
A "individualização" agora significa algo bem diferente do que significava nos primeiros tempos da modernidade, os tempos da exaltada emancipação do ser humano da vigilância e imposições da comunidade. A "individualização" consiste em transformar a "identidade" humana de um "dado" em uma "tarefa" e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das consequências de sua realização, isto é, consiste em uma autonomia jurídica, independentemente de a autonomia de fato ter sido estabelecido.
A modernidade substitui a determinação heterônoma da posição social pela autodeterminação compulsiva e obrigatória. Os seres humanos não mais "nascem" em suas identidades, não basta, por exemplo, ter nascido burguês, é preciso viver a vida como burguês. e a divisão em classes foi um resultado secundário do acesso desigual aos recursos necessários para tornar a autoafirmação eficaz.
Tanto no estágio leve e fluido da modernidade quanto no sólido e pesado, a individualização é uma fatalidade, não uma escolha. A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes, mas traz junto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as consequências. O abismo que se abre entre o direito à autoafirmação e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa autoafirmação algo factível ou irrealista parece ser a principal contradição da modernidade fluida.
O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a critica compulsiva da realidade. A privatização do impulso significa a compulsiva autocrítica nascida da desafeição perpétua: ser um indivíduo de direito significa não ter ninguém a quem culpar pela própria miséria, significa viver diariamente com o risco da autorreprovação, com a visão voltada para seu próprio desempenho e, portanto, desviada do espaço social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas.
Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas, assim o espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas. Ele deixa de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas. Nessas circunstâncias, a perspectiva de que o indivíduo de direito venha a se tornar algum dia indivíduo de fato parece cada vez mais remota.
Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma. A sociedade e a liberdade têm uma relação paradoxal, de um lado a sociedade é vista como inimiga da autonomia e de outro como protetora das liberdades. O poder político implica uma liberdade individual incompleta, mas sua retirada ou desaparecimento prenuncia a impotência prática da liberdade legalmente vitoriosa. Chamamos de liberdade negativa, a liberdade em relação às imposições da política e, de liberdade positiva, a liberdade para estabelecer a gama de opções e a agenda para a escolha entre elas. A luta atual é em transformar a liberdade negativa em liberdade positiva.
O poder político perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva - mas também perdeu boa parte de sua potência capacitadora. A luta pela emancipação, a verdadeira libertação, requer hoje mais, e não menos, da "esfera pública" e do "poder público". Agora é a esfera pública que precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado, ainda que, paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual. O trabalho do pensamento crítico é trazer à luz os muitos obstáculos que se amontoam no caminho da emancipação.
II. INDIVIDUALIDADE
As distopias preconizavam um mundo com menos liberdade, mais controle, vigilância e opressão, não estavam cientes de que esse controle por parte de administradores da sociedade, era um mero atributo temporário do capitalismo e que outras modalidades da ordem capitalista eram concebíveis e estavam em gestação. O capitalismo pesado, no estilo fordista, era o mundo dos que ditavam as leis, dos projetistas de rotinas e dos supervisores e, por essa razão, era o mundo das autoridades. O capitalismo leve, amigável com o consumidor, não aboliu as autoridades que ditam leis, nem as tornou dispensáveis. Apenas deu lugar e permitiu que coexistissem autoridades em número tão grande que nenhuma poderia se manter por muito tempo e menos ainda atingir a posição de exclusividade.
Ao contrário de uma repartição de controle, o mundo capitalista se tornou uma coleção infinita de possibilidades, há muitíssimo mais possibilidades do que qualquer vida individual pode tentar explorar. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre, melhor que permaneçam líquidas e fluidas. Essa infinidade de possibilidades, no entanto, angustia, gera infelicidade. A ação de escolher é mais importante que a coisa escolhida, e as situações são elogiadas ou censuradas, aproveitadas ou ressentidas, dependendo da gama de escolhas que exibem. Tudo numa sociedade de consumo é uma questão de escolha, exceto a compulsão da escolha, a compulsão que evolui até se tornar um vício e assim não é mais percebida como compulsão é a atividade de comprar, o que é evidenciado pelo consumismo.
O tipo de liberdade que a sociedade dos viciados em compras construiu significa conceber o mundo como um depósito abarrotado de mercadorias. Ter recursos implica a liberdade de escolher, mas também a liberdade em relação às consequências da escolha errada. A mobilidade e a flexibilidade da identificação que caracterizam a vida do "ir às compras" não são tanto veículos de emancipação quanto instrumentos de redistribuição das liberdades. São por isso bênçãos mistas: tanto tentadoras e desejadas quanto repulsivas e temidas, e despertam os sentimentos mais contraditórios. São valores altamente ambivalentes que tendem a gerar reações incoerentes e quase neuróticas.
III. TEMPO/ESPAÇO
"Comunidade" é, hoje, a última relíquia das utopias da boa sociedade de outrora; é o que sobra dos sonhos de uma vida melhor, compartilhada com vizinhos melhores, todos seguindo melhores regras de convívio. A comunidade definida por suas fronteiras vigiadas de perto e não mais por seu conteúdo; a "defesa da comunidade" traduzida como o emprego de guardiões armados para controlar a entrada; assaltante e vagabundo promovidos à posição de inimigo número um; compartimentação das áreas públicas em enclaves "defensáveis" com acesso seletivo; separação no lugar da vida em comum: essas são as principais dimensões da evolução corrente da vida urbana.
A vida urbana requer um tipo de atividade muito especial e sofisticada, de fato um grupo de habilidades que pode ser chamada de civilidade. A civilidade não pode ser “privada”, antes de se tornar a arte individualmente aprendida e privadamente praticada, a civilidade deve ser uma característica da situação social. É o entorno urbano que deve ser "civil'. Dizer que o meio urbano é civil significa a disponibilidade de espaços que as pessoas possam compartilhar como pessoas públicas, sem que precisem revelar seu verdadeiro “eu”.
Há muitos lugares nas cidades contemporâneas a que cabe o nome de “espaços públicos”. Os espaços públicos urbanos, que, no entanto, não são civis, podem ser classificados em duas categorias: (i) espaços urbanos de vastidão: como as praças com edifícios fantásticos que inspiram respeito, mas não hospitalidade; (ii) espaços públicos para os consumidores: espaços físicos de consumo, como salas de concertos ou exibições, pontos turísticos, áreas de esportes, shopping centers e cafés, sem ter qualquer interação social real.
Os dois tipos de espaços urbanos "públicos-mas-não-civis" derivam da evidente falta de habilidades da civilidade. É preciso acrescentar um terceiro espaço, que podemos chamar de “não-lugar”, um não-lugar é um espaço em que todos devem sentir-se como se estivessem em casa, mas ninguém deve se comportar como se verdadeiramente em casa. Um não-lugar é um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história: exemplos incluem aeroportos, autoestradas, anônimos quartos de hotel e transporte público. Os não-lugares não requerem domínio da sofisticada e difícil arte da civilidade, uma vez que reduzem o comportamento em público a preceitos simples e fáceis de aprender.
Também podemos falar dos “espaços vazios”. Os espaços vazios são lugares a que não se atribui significado. Não precisam ser delimitados fisicamente por cercas ou barreiras. Não são lugares proibidos, mas espaços vazios, inacessíveis porque invisíveis. Os espaços vazios são antes de mais nada vazios de significado. A cidade, como outras cidades, tem muitos habitantes, cada um com um mapa da cidade em sua cabeça. Cada mapa tem seus espaços vazios, ainda que em mapas diferentes eles se localizem em lugares diferentes.
A questão do espaço está interrelacionada com a questão do tempo. A história do tempo começou com a modernidade. A modernidade é o tempo em que o tempo tem uma história. O tempo se tornou um fator independente das dimensões inertes e imutáveis das massas de terra e dos mares. O tempo é diferente do espaço porque, ao contrário deste, pode ser mudado e manipulado. O tempo se tornou dinheiro depois de se ter tornado uma arma voltada principalmente a vencer a resistência do espaço: encurtar as distâncias, tornar exequível a superação de obstáculos e limites à ambição humana.
A manipulação do tempo para conquista do espaço significou a passagem da modernidade pesada à modernidade leve. A modernidade pesada foi a era da conquista territorial. Na versão pesada da modernidade, o progresso significava tamanho crescente e expansão espacial. Na conquista do espaço, o tempo tinha que ser flexível e maleável, e acima de tudo tinha que poder encolher pela crescente capacidade de "devorar espaço" de cada unidade, a fábrica fordista era o modelo de racionalidade planejada do tempo.
A mudança da modernidade líquida significou uma irrelevância do espaço. O tempo se apresenta agora na instantaneidade, "instantaneidade" significa realização imediata, "no ato", mas também exaustão e desaparecimento do interesse. A modernidade "fluida" é a época do desengajamento, da fuga fácil e da perseguição inútil. Na modernidade "líquida" mandam os mais escapadiços, os que são livres para se mover de modo impercetível. O próprio capital se tornou volátil e inconstante a partir da descorporificação do trabalho.
IV. TRABALHO
No estágio da modernidade "fluida" ou do capitalismo "leve", o progresso não é mais uma medida temporária, uma questão transitória, que leva eventualmente a um estado de perfeição, mas um desafio e uma necessidade perpétua e talvez sem fim, o verdadeiro significado de "permanecer vivo e bem”. Vivemos em um mundo de flexibilidade universal, sob condições de incerteza aguda e sem perspectivas, que penetra todos os aspectos da vida individual.
Quanto ao trabalho, sua capacidade de dar forma ao informe e duração ao transitório fizeram ele ser elevado ao posto de principal valor dos tempos modernos. Ao trabalho foram atribuídas muitas virtudes, como, por exemplo, o aumento da riqueza e a eliminação da miséria; a sua suposta contribuição para o estabelecimento da ordem, para o ato histórico de colocar a espécie humana no comando de seu próprio destino.
Com o capitalismo leve, o trabalho perdeu a centralidade que se lhe atribuía entre os valores dominantes na era da modernidade sólida e do capitalismo pesado. Com a modernidade líquida, o trabalho adquiriu uma significação principalmente estética. Espera-se que seja satisfatório por si mesmo e em si mesmo, e não pelos seus efeitos, o que importa é atender às necessidades e desejos estéticos do consumidor, que procura sensações e coleciona experiências.
A modernidade sólida era, de fato, também o tempo do capitalismo pesado, do engajamento entre capital e trabalho fortificado pela mutualidade de sua dependência. Os trabalhadores dependiam do emprego para sua sobrevivência; o capital dependia de empregá-los para sua reprodução e crescimento. Com a modernidade líquida, o trabalho foi despido de perspectiva firmes, se tornando de curto prazo. A presente versão "liquefeita' "fluida' dispersa, espalhada e desregulada da modernidade anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho.
V. A COMUNIDADE
Os liberais criam que o ser humano racional seria dotado da capacidade de tomar o caminho certo que, uma vez escolhido, seria o mesmo para todos. Os comunitaristas, por outro lado, criticaram essa crença, partindo da defesa da comunidade, da coletividade. No entanto, não se pode ser de fato comunitarista sem admitir numa ocasião a liberdade da escolha individual que se nega em outra. Em termos sociológicos, o comunitarismo é uma reação esperável à acelerada "liquefação" da vida moderna, uma reação ao crescente desequilíbrio entre a liberdade e as garantias individuais.
Na modernidade pesada, o sucesso da comunidade apareceu no nacionalismo e no patriotismo. Por mais que se tente distinguir o nacionalismo do patriotismo, considerando o primeiro negativo e o segundo positivo, há razões para concluir que há pouco que distinga nacionalismo de patriotismo. Nem o credo patriótico nem o nacionalista admitem a possibilidade de que as pessoas possam se unir mantendo-se ligadas às suas diferenças, estimando-as e cultivando-as. O nacionalismo e o patriotismo não podem admitir um tipo de unidade que supõe que a sociedade civilizada seja inerentemente pluralista. Essa é a unidade do modelo republicano, uma unidade emergente que é uma realização conjunta de agentes engajados na busca de autoidentificação.
A comunidade depende da escolha feita pelo indivíduo ao buscar segurança num mundo de incertezas. O indivíduo é o átomo da sociedade do consumo e seu corpo é a única coisa que pode controlar, o isolamento de corpo e comunidade são efeitos de características fundamentais da liquidez moderna: a privatização dos cuidados com a segurança existencial, com a provisão de certeza que era feita pelo Estado, em conjunto com qualquer aspiração de segurança que seus cidadãos precisavam.
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