HISTÓRIA DA LOUCURA NA IDADE CLÁSSICA (RESUMO)
O que se segue é um resumo do livro História da Loucura na Idade Clássica do filósofo e historiador Michel Foucault. O livro começa mostrando como durante toda a Idade Média, e por muito tempo no decorrer da Renascença, a loucura esteva ligada ao Mal e como a partir da Idade Clássica, loucura e crime passam a estar implicados, em seguida Foucault trata da consciência da loucura e das imagens que se construíram sobre o louco no classismo e, por fim, o livro trata da reforma realizada por Pinel visando um tratamento supostamente mais humanitário do louco. É importante colocar que este
resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem
paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor
original.
PRIMEIRA PARTE
DA EXCLUSÃO DO LOUCO NA IDADE MÉDIA ATÉ A LIGAÇÃO DA LOUCURA COM O CRIME NA IDADE CLÁSSICA
1. O NAVIO DOS LOUCOS
A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a Europa suas cidades malditas. Mas, ao final da Idade Média, a lepra desapareceu do mundo ocidental. Esse estranho desaparecimento não foi o efeito, longamente procurado, de obscuras práticas médicas, mas sim o resultado espontâneo da segregação e a consequência, também, após o fim das Cruzadas, da ruptura com os focos orientais de infecção. A lepra desapareceu, deixando sem utilidade os leprosários que não estavam destinados a suprimir a lepra, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada. Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso; é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado. Se se retiraram os leprosos do mundo e da comunidade visível da Igreja, sua existência, no entanto é sempre uma manifestação de Deus, uma vez que, no conjunto, ela indica sua ira e marca sua bondade.
A lepra foi substituída inicialmente pelas doenças venéreas. Ao final do século XV, esses doentes são recebidos em diversos hospitais de leprosos. Sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constituiu no século XVII, a doença venérea se isolou, numa certa medida, de seu contexto médico e se integrou, ao lado da loucura, num espaço moral de exclusão.
Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença. Um exemplo disso é a figura do navio dos loucos, existiam barcos que levavam sua carga de loucos de uma cidade para outra, os loucos tinham então uma existência facilmente errante, as cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes ou os confiava a grupos de mercadores e peregrinos. Esta circulação de loucos não encontra todo seu sentido apenas ao nível da utilidade social ou da segurança dos cidadãos. Confiar os loucos aos marinheiros é ter a certeza de que ele irá para longe, a água é vista como símbolo de purificação e a navegação entrega o homem à incerteza da sorte. Nesse sentido a nau dos loucos se relacionava com a ideia da morte, da viagem ao além.
Há duas experiências sobre a loucura nesse contexto: (i) a visão cósmica: o elemento trágico que liga a loucura às assombrações e; (ii) os movimentos da reflexão moral: o elemento crítico relacionado a ligação que o homem mantém consigo mesmo. Este confronto entre a consciência crítica e a experiência trágica anima tudo o que pôde ser sentido sobre a loucura e formulado a seu respeito no começo da Renascença. No século XVI, a experiência da loucura se viu finalmente confiscada pelos privilégios da reflexão crítica de tal maneira que no limiar da era clássica todas as imagens trágicas evocadas na época anterior se dissiparam na sombra.
Podemos apresentar os seguintes pontos indispensáveis nessa evolução a fim de compreender a experiência que o classicismo teve da loucura: (i) a loucura torna-se uma forma relativa à razão: a loucura não tem mais uma existência absoluta, ela existe apenas relativamente à razão; (ii) a loucura torna-se uma das próprias formas da razão: a loucura é um momento difícil, porém essencial, na obra da razão; através dela, e mesmo em suas aparentes vitórias, a razão se manifesta e triunfa, a loucura é, para a razão, sua força viva e secreta.
2. A GRANDE INTERNAÇÃO
O século XVII criou vastas casas de internamento, hospitais, prisões e casas de detenção. Essas casas de internação se proporão a hospedar os miseráveis, a loucura só terá hospitalidade doravante entre os muros do hospital, ao lado de todos os pobres. O internamento, cujos indícios são encontrados em toda a Europa do século XVII, é assunto de "polícia". Polícia, no sentido preciso que a era clássica atribui a esse termo, isto é, conjunto das medidas que tornam o trabalho ao mesmo tempo possível e necessário para todos aqueles que não poderiam viver sem ele.
O internamento, no entanto, apresenta uma evolução. Os hospitais substituem as medidas de exclusão puramente negativas por uma medida de detenção. Eles surgem como resposta à crise econômica que afeta o mundo ocidental no século, por um bom tempo a casa de correção ou os locais do Hospital Geral servirão para a colocação dos desempregados, dos sem trabalho, e vagabundos. Mas fora dos períodos de crise, o internamento adquire um outro sentido, não se trata mais de prender os sem trabalho, mas de dar trabalho aos que foram presos, fazendo-os servir com isso a prosperidade de todos. Assim, o internato fornece mão-de-obra barata nos tempos de pleno emprego e de altos salários; e em período de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas. No entanto, a criação das casas de internamento foi um fracasso e acaba desaparecendo em quase toda Europa no início do século XIX.
3. O MUNDO CORRECIONAL
Desde os primeiros meses do internamento, os doentes venéreos pertencem de pleno direito ao Hospital Geral. No Hospital poderia se aplicar castigos aos que tinham doenças venéreas, mas esse castigo tinha um sentido moral, pois os castigos só podiam ser aplicados àqueles que contraíram sua doença pelo que era chamado “devassidão”, aqueles que o contraíram pelo casamento não recebiam castigos.
Durante cento e cinquenta anos, os doentes venéreos vão ficar lado a lado com os loucos no espaço de uma mesma prisão; e vão atribuir a estes durante muito tempo um certo estigma onde se trairá, para a consciência moderna, um obscuro parentesco que lhes destina a mesma sorte e os mesmos lugares no mesmo sistema de punição. Forma-se um parentesco entre o tratamento da loucura e as penas da devassidão e foi justamente o racionalismo quem autorizou essa confusão entre o castigo e o remédio, esta quase identidade entre o gesto que pune e o gesto que cura. A razão médica faz o bem ao mesmo tempo que faz o mal, em sua articulação com a moral, ao mesmo tempo que busca o restabelecimento saúde, impõe castigos.
Quando a época clássica internava todos aqueles que, em virtude de uma doença venérea, da homossexualidade, da devassidão ou da prodigalidade, manifestava uma liberdade sexual que a moral dos antepassados condenava, ela estava realizando uma estranha revolução moral: descobria um denominador comum, a loucura, para experiências que durante muito tempo estiveram bastante afastadas umas das outras. Agrupava todo um conjunto de condutas condenadas, formando uma espécie de halo de culpabilidade em torno da loucura. A psicopatologia inutilmente tentará reencontrar essa culpabilidade misturada na doença mental, dado que ela foi posta aí exatamente por esse obscuro trabalho preparatório que se realizou no decorrer do Classicismo. Tanto isso é verdade, que nosso conhecimento científico e médico da loucura repousa implicitamente sobre a constituição anterior de uma experiência ética da loucura.
O suicídio, que era associado com o sacrilégio e até eram punidas com a morte as tentativas de suicídio fracassadas, passa a estar relacionado com a loucura, de modo que o suicídio vai ser conduzido ao domínio da psicologia. O Hospital Geral e as casas de internamento recebem em grande número pessoas que mexeram com feitiçaria, magia, adivinhação, às vezes mesmo alquimia. Passa a existir uma certa tendência para acreditar que os gestos da magia e as condutas profanatórias tornam-se patológicas a partir do momento em que uma cultura deixa de reconhecer sua eficácia. A loucura passa a estar no meio caminho entre o profanatório e o patológico. A libertinagem também passa a ser relacionada com a loucura, passando a designar um estado de servidão no qual a razão se torna escrava dos desejos e servente do coração. A loucura anexa para si um novo domínio: aquele no qual a razão se sujeita aos desejos do coração e seu uso se aparenta aos desregramentos da imoralidade.
Assim, as medidas de internamento são dirigidas aos doentes venéreos, devassos, dissipadores, homossexuais, blasfemadores, alquimistas e libertinos. Assim, durante todo um processo histórico vai se constituindo aquilo que vai ser reconhecido como pertencente ao domínio da loucura. A partir do século XVII, o louco não é mais a grande assombração do mundo; deixa também de ser a dimensão natural das aventuras da razão, assume o aspecto de um fato humano, de uma variedade espontânea no campo das espécies sociais. Os loucos são tipos que a sociedade reconhece e isola: existe o devasso, o dissipador, o homossexual, o mágico, o suicida, o libertino. O louco começa a ser avaliado segundo um certo distanciamento da norma social. A partir do século XVII o louco é um personagem concreto tomado num mundo social real, julgado e condenado pela sociedade de que faz parte.
4. EXPERIÊNCIAS DE LOUCURA
O Hospital interna os devassos, os pais dissipadores, os filhos pródigos, os blasfemadores, os homens que "procuram se desfazer", os libertinos. Quando os séculos XVII e XVIII internam a loucura pela mesma razão que a devassidão ou a libertinagem, o essencial não é que ela seja desconhecida como doença, mas que seja percebida sob outra perspectiva. Seria falso considerar que o internamento dos insanos nos séculos XVII e XVIII seja uma medida de polícia que não se coloca problemas, ou que pelo menos manifesta uma insensibilidade uniforme ao caráter patológico da alienação. Mesmo na prática monótona do internamento, a loucura tem uma função variada. Ela já se encontra sob perigo no interior desse mundo do desatino que a envolve em seus muros e a importuna com sua universalidade. Pois se é fato que, em certos hospitais, os loucos têm lugar reservado, o que lhes assegura uma condição quase médica, a maior parte deles reside em casas de internamento, nelas levando praticamente uma existência de correcionais.
O internamento não é um primeiro esforço na direção da hospitalização da loucura, sob seus variados aspectos mórbidos. Constitui antes uma homologação dos alienados aos outros correcionais. Ser tratado como os outros loucos: não significa submeter-se a tratamento médico, mas sim seguir o regime da correção, praticar seus exercícios e obedecer às leis de sua pedagogia. O internamento destina-se a corrigir. Não é de surpreender, assim, que as casas de internamento tenham o aspecto de prisões.
A loucura, no devir de sua realidade histórica, torna possível, em dado momento, um conhecimento da alienação num estilo de positividade que a delimita como doença mental; mas não é este conhecimento que forma a verdade desta história. Os poderes de decisão são entregues ao juízo médico: apenas ele nos introduz no mundo da loucura. Apenas ele permite que se distingam o normal do insano, o criminoso do alienado irresponsável. A psicopatologia do século XIX (e talvez ainda a nossa) acredita situar-se e tomar suas medidas com referência num homem normal considerado como dado anterior a toda experiência da doença. Na verdade. esse homem normal é uma criação. O louco não é reconhecido como tal pelo fato de a doença tê-lo afastado para as margens do normal, mas sim porque nossa cultura situou-o no ponto de encontro entre o decreto social do internamento e o conhecimento jurídico que discerne a capacidade dos sujeitos de direito.
5. OS INSENSATOS
Apesar do prazer reconfortante que podem ter os historiadores da medicina ao reconhecer no grande livro do internamento o rosto familiar, e para eles eterno, das psicoses alucinatórias, das deficiências intelectuais e das evoluções orgânicas ou dos estados paranoicos, não é possível dividir sobre uma superfície nosográfica coerente as fórmulas em nome das quais os loucos foram presos. As fórmulas de internamento não pressagiam nossas doenças; elas designam uma experiência da loucura que nossas análises patológicas podem atravessar sem nunca a levar em conta na sua totalidade.
Durante toda a Idade Média, e por muito tempo no decorrer da Renascença, a loucura estava ligada ao Mal, mas sob a forma de transcendências imaginárias; de agora adiante, ela se comunica como mal pelas vias mais secretas da escolha individual e das más intenções. Loucura e crime passam a estar unidos e implicados. Para os homens da lei, a loucura atinge essencialmente a razão, com isso alterando a vontade ao mesmo tempo em que a inocenta, quanto mais profunda a loucura for, mais a vontade do indivíduo será considerada inocente.
Na experiência que o Classicismo tem da loucura e na recusa que ele lhe opõe, não se trata apenas de regras morais, mas de toda uma consciência ética. Na era clássica, a razão nasce no espaço da ética e é isso, sem dúvida, que dá ao renascimento da loucura nessa época seu estilo particular, toda loucura oculta uma opção, assim como toda razão oculta uma escolha livremente realizada.
A loucura passa tanto a ser exaltada como lição de Redenção, quanto domada como animalidade. A loucura como lição de redenção é tomada como o ponto mais baixo da humanidade ao qual Deus consentiu em sua encarnação, querendo mostrar com isso que nada existe de inumano no homem que não possa ser resgatado e salvo. Quanto à animalidade, a loucura, em suas formas últimas, é, para o Classicismo, o homem em relacionamento imediato com sua animalidade, sem outra referência qualquer, sem nenhum recurso.
SEGUNDA PARTE
A CONSCIÊNCIA DA LOUCURA
INTRODUÇÃO
A consciência da loucura, pelo menos na cultura europeia, nunca foi um fato maciço, formando um bloco e se metamorfoseando como um conjunto homogêneo. Para a consciência ocidental, a loucura surge simultaneamente em pontos múltiplos, formando uma constelação que aos poucos se desloca e transforma seu projeto, e cuja figura esconde talvez o enigma de uma verdade.
O debate sobre a loucura incansavelmente, põe em jogo, sob formas diversas, mas com a mesma dificuldade de conciliação, as mesmas formas de consciência, sempre irredutíveis: (i) uma consciência crítica da loucura: reconhece e designa a loucura sobre um fundo de coisa razoável, refletida, moralmente sábia; consciência que se compromete inteiramente em seu julgamento, antes mesmo da elaboração de seus conceitos; consciência que não define, que denuncia; (ii) uma consciência prática da loucura: consiste na diferença entre loucura e razão a partir da noção de homogeneidade de um determinado grupo considerado como portador das normas da razão e que define aqueles que estão fora do grupo como tendo escolhido isso; (iii) uma consciência enunciativa da loucura: indica a loucura como uma espécie de existência substantiva, simples, imóvel e obstinada; (iv) uma consciência analítica da loucura: consciência que busca um saber objetivo da loucura isolado de suas formas, de seus fenômenos, de seus modos de aparecimento.
6. O LOUCO NO JARDIM DAS ESPÉCIES
É necessário interrogar agora a consciência da loucura que joga, só para si mesma, o jogo da partilha, essa consciência que enuncia o louco e desdobra a loucura. Dois sistemas de interrogações sobre a loucura, que parecem olhar para duas direções diferentes: a questão filosófica, mais crítica que teórica e; a questão médica, que implica todo o movimento de um conhecimento discursivo.
O louco não é manifesto em seu ser: mas se ele é indubitável, é porque é outro. No século XVIII, esta consciência de alteridade oculta, sob uma aparente identidade, uma estrutura bem diferente, que se formula não a partir de uma certeza, mas de uma regra geral: ela implica um relacionamento exterior que vai dos outros a esse outro singular que é o louco, o louco é o outro em relação aos outros: o outro, no sentido da exceção, entre os outros, no sentido do universal, o louco torna-se relativo. Esta nova forma de consciência inaugura um novo relacionamento da loucura com a razão: de um lado, a loucura existe em relação à razão, por outro lado, ela existe para a razão, na medida em que surge ao olhar de uma consciência ideal que a percebe como diferença em relação aos outros. A loucura tem uma dupla maneira de postar-se diante da razão: ela está ao mesmo tempo do outro lado e sob seu olhar e, por outro lado, a loucura é diferença imediata, negatividade pura, aquilo que se denuncia como não-ser, numa evidência irrecusável; é uma ausência total de razão.
Na percepção do louco que se tem no século XVIII, estão inextricavelmente misturados aquilo que existe de mais positivo e de mais negativo. O positivo é a própria razão, mesmo se considerada sob um aspecto aberrador; quanto ao negativo, é constituído pelo fato de que a loucura, no máximo, não é mais que o vão simulacro da razão. O século XVIII percebe o louco, mas deduz a loucura. E no louco o que ele percebe não é a loucura, mas a inextricável presença da razão e da não-razão. E aquilo a partir do que ele reconstrói a loucura não é a múltipla experiência dos loucos, é o domínio lógico e natural da doença, um campo de racionalidade.
No século XVIII, todo um mundo patológico é organizado conforme as novas normas, surge uma grande preocupação em criar classificações, dividindo a loucura em formas e variedades. Assim como a botânica classifica as espécies de plantas de um jardim, o pensamento médico faz surgir as categorias, realmente patológicas, através das quais a doença descobre sua verdade eterna.
7. A TRANSCENDÊNCIA DO DELÍRIO
Se, do ponto de vista médico, a loucura é vista como uma doença do cérebro, surge a questão da natureza da alma. Os problemas da loucura giram ao redor da materialidade da alma. Quem diz loucura nos séculos XVII e XVIII não diz, em sentido estrito, "doença do espírito", mas algo onde o corpo e a alma estão juntos em questão.
As estruturas que passam pertencem a loucura são: (i) o ciclo da causalidade: a causa próxima da loucura é entendida como uma alteração visível do sistema nervoso e, tanto quanto possível, do próprio cérebro enquanto as causas distantes podem ser várias, como os eventos da alma que sejam um pouco violentos ou exageradamente intensos e as variações e excessos do mundo exterior; (ii) o ciclo da paixão e da imagem: a paixão é uma condição de possibilidade da loucura em geral, na loucura a totalidade alma-corpo se fragmenta, tem-se o ciclo da imagem no sentido das quimeras, dos fantasmas e do erro e; (iii) o momento essencial do delírio: a linguagem delirante é a verdade última da loucura na medida em que é sua forma organizadora, o princípio determinante de todas as suas manifestações, o momento do delírio constitui o âmago dessa experiência da loucura, aquilo que pode constituí-la como tal.
Ao final desse último ciclo que começara com a liberdade do fantasma e que se encerra agora com o rigor da linguagem delirante, podemos concluir: (i) na loucura clássica, há duas formas de delírio: uma forma particular, sintomática, própria de algumas das doenças do espírito e, de modo especial, da melancolia, e uma outra forma que nem sempre aparece, que não é formulado pelo próprio doente no curso de sua doença, mas que não pode deixar de existir aos olhos daquele que, procurando a doença a partir de suas origens, tenta formular seu enigma e sua verdade; (ii) esse delírio implícito existe em todas as alterações do espírito: para o pensamento clássico, existe continuamente um delírio existe subjacente, ligando cada um dos sinais particulares à essência geral da loucura; (iii) o discurso delirante abarca todo o domínio de extensão da loucura: a loucura é um discurso delirante; (iv) a linguagem é a estrutura primeira e última da loucura: ela é sua forma constituinte, é nela que repousam os ciclos nos quais ela enuncia sua natureza.
8. FIGURAS DA LOUCURA
Podemos falar de três grandes figuras da loucura que se mantiveram ao longo da era clássica: (i) o grupo da demência: a demência é, dentre todas as doenças do espírito, a que permanece mais próxima da essência da loucura, mas da loucura experimentada como negatividade: desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não-razão e não-verdade.; (ii) mania e melancolia: a melancolia é uma “loucura sem febre nem furor, acompanhada pelo temor e pela tristeza”, na medida em que é delírio, isto é, ruptura essencial com a verdade, sua origem reside num movimento desordenado dos espíritos e num estado defeituoso do cérebro, já a mania não se distingue da melancolia a não ser por uma diferença de grau: é a sequência natural desta, surge das mesmas causas e normalmente é curada pelos mesmos remédios; (iii) histeria e hipocondria: a hipocondria nem sempre figura ao lado da demência e da mania; a histeria só muito raramente ocorre, mas elas alcançam lentamente, no decorrer da era clássica, o domínio das doenças do espírito e sempre se buscou por um elemento comum que ligasse a histeria e a hipocondria.
9. MÉDICOS E DOENTES
Nos séculos XVII e XVIII, o pensamento e a prática da medicina não têm a unidade ou pelo menos a coerência que nela agora conhecemos. O mundo da cura se organiza segundo princípios que são, numa certa medida, particulares, e que a teoria médica, a análise fisiológica e a própria observação dos sintomas nem sempre controlam com exatidão. Não só na hospitalização e no internamento, mas na própria medicina, teoria e terapêutica só se comunicam numa imperfeita reciprocidade.
Estas são algumas das ideias terapêuticas que organizaram as curas da loucura: (i) a consolidação: há na loucura todo um componente de fraqueza, assim será procurada uma cura que dê aos espíritos ou às fibras um vigor; (ii) a purificação: a loucura invoca uma série de terapêuticas visando operar a purificação devido ao entupimento das vísceras, ao caldo de ideias falsas, à fermentação de vapores e violências e à corrupção dos líquidos e dos espíritos, essas terapêuticas podem consistir, por exemplo, em substituir o sangue sobrecarregado, grosso e cheio de humores acres do melancólico por um sangue claro e leve cujo movimento novo dissiparia o delírio; em dissolver todas as fermentações que, formadas no corpo, determinaram a loucura; etc; (iii) a imersão: aqui se cruzam dois temas: o da ablução, com tudo que o aparenta aos ritos da pureza e do renascimento, e aquele, bem mais fisiológico, da impregnação, que modifica as qualidades essenciais dos líquidos e dos sólidos; (iv) a regulação do movimento: sendo a loucura, a agitação irregular dos espíritos, movimento desordenado das fibras e das ideias, ou também entupimento do corpo e da alma, estagnação dos humores, imobilização das fibras em sua rigidez, fixação das ideias e da atenção num tema que, aos poucos, prevalece sobre os demais, é preciso devolver ao espírito e aos espíritos, ao corpo e à alma, a mobilidade que constitui suas vidas, isso pode ser feito por exemplo, por meio de passeios a cavalo.
Sempre existiu, no curso da era clássica, uma justaposição de dois universos técnicos nas terapêuticas da loucura. Um, que repousa numa mecânica implícita das qualidades e se dirige à loucura em sua qualidade essencial de paixão, outro, que repousa num movimento discursivo da razão raciocinaste consigo própria e se dirige à loucura em sua qualidade de erro, em sua qualidade de delírio. O ciclo estrutural da paixão e do delírio que constitui a experiência clássica da loucura reaparece no mundo das técnicas, estas podem reportar-se a três figuras essenciais: (i) o despertar: uma vez que o delírio é o sonho das pessoas acordadas, é preciso tirar os que deliram desse quase-sono; (ii) a realização teatral: a operação terapêutica desenrola-se no espaço da imaginação; trata-se de uma cumplicidade do irreal consigo mesmo; o imaginário deve entrar em seu próprio jogo, suscitar voluntariamente novas imagens, delirar na linha do delírio e, sem oposição nem confronto, sem mesmo dialética visível, paradoxalmente, curar, a saúde deve investir a doença e vencê-la no próprio nada em que a doença está encerrada; (iii) o retorno ao imediato: a cura da loucura pressupõe uma volta àquilo que é imediato em relação à imaginação, volta que afasta da vida do homem e de seus prazeres tudo o que é artificial, irreal, imaginário.
TERCEIRA PARTE
DA RUÍNA DA INTERNAÇÃO AO SUPOSTO OLHAR HUMANITÁRIO PARA O LOUCO
INTRODUÇÃO
Em sua dúvida metódica, René Descartes encontra a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro. Mas Descartes não evita o perigo da loucura do mesmo modo que faz com a questão do sonho ou do erro, nem o sonho, nem o erro das ilusões dos sentidos podem levar a dúvida ao ponto extremo de sua universalidade, pois seu efeito enganador é limitado, mas na loucura o caso é outro, pois não se pode supor, mesmo através do pensamento, que se é louco. A dúvida de Descartes bane a loucura em nome daquele que duvida raciocinando que seria extravagante acreditar que se é extravagante de modo que a loucura não lhe pode dizer respeito.
Já no livro O Sobrinho de Rameau, de Denis Diderot, a personagem do louco sabe muito bem que está louco. O livro narra um diálogo entre um filósofo e o sobrinho de Rameau, que se considera louco porque os outros lhe acham louco. O sobrinho de Rameau é a última personagem em quem loucura e desatino se reúnem, mas também é, igualmente, aquele no qual o momento da separação é prefigurado. O Sobrinho de Rameau profere no meio do século XVIII, e bem antes de ser plenamente ouvida a palavra de Descartes, uma lição bem mais anticartesiana do que todo Locke, todo Voltaire ou todo Hume. Se a dúvida cartesiana bane a loucura, o sobrinho de Rameau há uma vontade sistemática de delírio, a ponto de efetuar-se em plena consciência. Loucura e desrazão surgem como dois momentos distintos, a questão é questionar por que aqueles que tiveram a coragem de encarar a provação do desatino foram condenados à loucura.
10. O GRANDE MEDO
Antigamente se temia, e ainda se teme, ser internado; ao final do século XVIII, mas agora surge um medo que se formula em termos médicos mas que é animado, no fundo, por todo um mito moral. Na época clássica, a consciência da loucura e a consciência do desatino não se haviam separado uma da outra, mas na inquietude da segunda metade do século XVIII, o medo da loucura cresce ao mesmo tempo que o pavor diante do desatino, e com isso as duas formas de assombro, apoiando-se uma na outra, não param de reforçar-se mutuamente.
Assusta-se com um mal muito misterioso que se espalhava, diz-se, a partir das casas de internamento e logo ameaçaria as cidades. Fala-se em febre de prisão, lembra-se a carroça dos condenados, esses homens acorrentados que atravessam as cidades deixando atrás de si uma esteira do mal. Atribui-se ao escorbuto contágios imaginários, prevê-se que o ar viciado pelo mal corromperá os bairros habitados. E novamente se impõe a grande imagem do horror medieval, fazendo surgir, nas metáforas do assombro, um segundo pânico. A casa de internamento não é mais apenas o leprosário afastado das cidades: é a própria lepra diante da cidade.
Sob o efeito de uma inquietação cada vez maior, da ligação com as constantes ou as grandes circularidades do universo, o tema da loucura aparentada com as estações do mundo desdobra-se aos poucos na ideia de uma dependência em relação a um elemento particular do cosmos. O medo se faz mais urgente; a intensidade afetiva de tudo aquilo que reage à loucura não deixa de aumentar. Essa noção é elaborada paradoxalmente justamente quando o homem parece insuficientemente mantido pelas coações sociais. Tornam-se "forças penetrantes" uma sociedade que não mais reprime os desejos, uma religião que não mais regula o tempo e a imaginação, uma civilização que não mais limita os desvios do pensamento e da sensibilidade.
11. A NOVA DIVISÃO
No decorrer do século XVIII uma mudança está em curso, a loucura está emergindo novamente, sob a forma de uma presença confusa, mas que questiona a abstração do internamento. Na segunda metade do século XVIII, ocorre um resvalar espontâneo que determina e isola asilos especialmente destinados aos loucos de modo que se vê que a loucura não rompeu o círculo do internamento, mas se desloca e começa a tomar suas distâncias. Primeiro tem-se o internamento, do qual procedem os primeiros asilos de loucos; daí nasce uma curiosidade que logo é transformada em piedade, depois em humanitarismo e solicitude social de modo que haverá, já no século XIX, uma indignação pelo o fato de não serem os loucos melhor tratados do que os prisioneiros.
12. DO BOM USO DA LIBERDADE
O que desapareceu, no decorrer do século XVIII, não é o rigor desumano com o qual se tratam os loucos, mas a evidência do internamento. Isso se deu em passos, o primeiro passo consistiu em reduzir o mais possível a prática do internamento no que diz respeito às faltas morais, aos conflitos familiares, aos aspectos mais benignos da libertinagem, mas permitir que ele prevaleça em seu princípio, e com uma de suas significações maiores: o internamento dos loucos. O segundo passo consistiu no encerramento do internamento em cumprimento da a Declaração dos Direitos do Homem de que ninguém deve ser preso a não ser que seja um criminoso condenado. O terceiro passo se deu com a grande série de decretos baixados entre 12 e 16 março de 1790 em que a Declaração dos Direitos do Homem recebe uma aplicação concreta.
Um pouco abaixo das medidas jurídicas, na parte inferior das instituições se comprometem e se reconhecem enfim o louco e o não-louco, formaram-se algumas figuras que se relacionam com três estruturas determinantes: (i) numa se vieram a confundir o espaço do internamento com o espaço médico; (ii) em outra se estabelece entre a loucura e quem a vigia um novo relacionamento purificado de toda cumplicidade, e que pertence à esfera do olhar objetivo; (iii) em outra o louco se vê confrontado com o criminoso.
Com a ruína da internação, mudam definitivamente as condições da experiência clássica da loucura, ocorre um duplo movimento de liberação e sujeição constitui as bases secretas sobre as quais repousa a experiência moderna da loucura. A loucura vai deixando de ser algo que se teme para se tornar um objeto de conhecimento, do conhecimento positivo. O estatuto de objeto será imposto desde logo a todo indivíduo reconhecido como alienado; a alienação será depositada como uma verdade secreta no âmago de todo conhecimento objetivo do homem.
13. NASCIMENTO DO ASILO
O nascimento do asilo pode ser retomado tendo em conta o Bicêtre, a casa de enfermos que foi transformada em asilo por Phillipe Pinel. Com Pinel, está nascendo uma psiquiatria que pela primeira vez pretende tratar o louco como um ser humano, assim Pinel inaugura a nova psiquiatria com a libertação dos loucos. Essa libertação, no entanto, é uma suposta libertação, um suposto tratamento mais humanitário do louco, o tratamento de Pinel, por exemplo, incluía métodos como banho de água fria e camisa de força.
O que Pinel e seus contemporâneos sentirão como uma descoberta ao mesmo tempo da filantropia e da ciência é, no fundo, apenas a reconciliação da consciência dividida do século XVIII. O internamento do homem social preparado pela interdição do sujeito jurídico significa que pela primeira vez o homem alienado é reconhecido como incapaz e como louco; sua extravagância, de imediato percebida pela sociedade, limita sua existência jurídica. Com isso, os dois usos da medicina são reconciliados: o que tenta definir as estruturas mais apuradas da responsabilidade e da capacidade, e o que apenas ajuda a pôr em movimento o decreto social do internamento. Tudo isso é de extrema importância para o desenvolvimento ulterior da medicina do espírito. Esta, em sua forma "positiva", é no fundo apenas a superposição de duas experiências que o Classicismo justapôs sem nunca reuni-las definitivamente: uma experiência social, normativa e dicotômica da loucura, que gira ao redor do imperativo do internamento; e uma experiência jurídica, qualitativa, finamente diferenciada, sensível às questões de limites e gradações e que procura em todos os setores da atividade do sujeito os rostos polimorfos que a alienação pode assumir.
14. O CÍRCULO ANTROPOLÓGICO
A liberdade do louco que Pinel pensava ter dado ao louco, já pertencia há muito tempo ao domínio de sua existência. A loucura, no fundo, só era possível na medida em que, à sua volta, havia um espaço de jogo que permitia ao sujeito falar, ele mesmo, a linguagem de sua própria loucura e constituir-se como louco.
Na experiência clássica na qual se insere Pinel, a liberdade do louco se recolhe na ironia das contradições: (i) permite-se que a liberdade do louco atue, mas num espaço mais fechado, mais rígido, menos livre que aquele do internamento; (ii) o louco é liberado de seu parentesco com o crime e o mal, mas para ser fechado nos mecanismos rigorosos de um determinismo; (iii) retiram-se as correntes do louco que impediam o uso de sua livre vontade, mas para despojá-lo dessa mesma vontade, transferida e alienada no querer do médico. O louco doravante está livre, e excluído da liberdade.
A loucura clássica pertencia às regiões do silêncio. Existem sem dúvida inúmeros textos dos séculos XVII e XVIII onde se aborda a loucura: mas neles ela é citada como exemplo, a título de espécie médica ou porque ela ilustra a verdade abafada do erro. Seu sentido só pode aparecer diante do médico e do filósofo, isto é, daqueles que são capazes de conhecer sua natureza profunda, dominá-la em seu não-ser e de ultrapassá-la na direção da verdade. Em si mesma, é coisa muda: não existe, na era clássica da literatura da loucura, no sentido em que não há para a loucura uma linguagem autônoma, uma possibilidade de que ela pudesse manter uma linguagem que fosse verdadeira.
Aquilo que O Sobrinho Rameau já indicava, e depois dele todo um modo literário, é o reaparecimento da loucura no domínio da linguagem. A loucura fala a linguagem do grande retorno lírico. Para além do longo silêncio clássico, a loucura reencontra assim sua linguagem. O lirismo é a linguagem na qual transparecem as verdades secretas do homem, mas que se apresentam em antinomias que acompanharão, durante todo o século XIX, a reflexão sobre a loucura:
(i) O louco desvenda a verdade elementar do homem: esta o reduz a seus desejos primitivos; X o louco desvenda a verdade terminal do homem: ele mostra até onde puderam levá-lo as paixões.
(ii) A loucura pratica no homem uma espécie de corte intemporal: ela secciona, não só tempo, mas o espaço; ela não sobe nem desce pelo curso da liberdade humana, mostra sua interrupção, o mergulho no determinismo do copo; X a loucura se distingue das doenças do corpo pelo fato de que manifesta uma verdade que não aparece nestas: ela faz surgir um mundo interior de maus instintos, de perversidade, de sofrimentos e violência que até então estivera adormecido.
(iii) A inocência do louco é garantida pela intensidade e pela força de sua loucura: acorrentado pela força de suas paixões, o louco se torna irresponsável; e sua irresponsabilidade é assunto de apreciação médica, na medida mesma em que resulta de um determinismo objetivo; X a loucura de um ato é julgada precisamente pelo fato de que nenhuma razão jamais chega a esgotá-la: a verdade da loucura está num automatismo sem cadeias.
(iv) é a partir da verdade do homem e do fundo mesmo de sua loucura que uma cura é possível: se, na objetividade infeliz em que se perde o louco, ainda permanece um segredo, esse segredo é aquele que torna possível a cura; X a verdade humana que descobre a loucura é a imediata contradição daquilo que é a verdade moral e social do homem: O momento inicial de todo tratamento será portanto a repressão dessa verdade inadmissível, a abolição do mal que ali impera, o esquecimento dessas violências e desses desejos.
O campo da experiência psiquiátrica na primeira metade do século XIX teve seu início, em ampla medida com a paralisia geral, tida como “boa loucura”; a loucura moral, que explode na objetividade como violência, desencadeamento dos gestos e até assassinato e; a molomania, o escândalo que representa um indivíduo que se mostra louco num ponto mas permanece razoável em todos os outros. O louco também vai passar a ser entendido, não mais como desatino, mas como alienado. O louco surge agora numa dialética, sempre recomeçada, entre o Mesmo e o Outro, o homem aparece na loucura como sendo outro que não ele próprio. Ao longo do século XIX, o louco não será mais conhecido e reconhecido a não ser sobre um fundo de uma antropologia implícita que fala da mesma culpabilidade, da mesma verdade, da mesma alienação.
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