HERMENÊUTICA E FATICIDADE- HEIDEGGER (RESUMO)
O que se segue é um resumo da preleção “Ontologia - Hermenêutica e Faticidade” proferida por Martin Heidegger na Universidade de Friburgo no verão de 1923. O texto trata de interpretar a faticidade do ser-aí. O texto se divide em duas partes, a primeira parte define o que se entende por hermenêutica da faticidade e a segunda trata da determinação da significância. Preferi usar o termo enquantaticidade ao invés de "ocasião" para refletir melhor o neologismo heideggeriano jeweiligkeit tendo em mente a tradução awhileness do inglês.
I. CAMINHOS DE INTERPRETAÇÃO DO SER-AÍ NA ENQUANTATICIDADE
Faticidade é a designação para o caráter ontológico de nosso ser-aí próprio. A expressão se refere ao ser-aí em cada enquantaticidade. O ser-aí está aí para si mesmo no como de seu ser mais próprio. O como do ser abre e delimita o aí possível em cada enquantaticidadeenquantaticidade. Por fático chama-se algo que é articulando-se por si mesmo sobre um caráter ontológico, o qual é de determinado modo. A vida fática significa o nosso próprio ser-aí enquanto aí em qualquer expressão aberta no tocante ao seu ser em seu caráter ontológico.
Já hermenêutica indica o modo unitário de abordar, concentrar, acessar, questionar e explicar a faticidade. Está relacionado a Hermes, o deus mensageiro. Em Platão, fala-se do hermeneuta, aquele que comunica, que informa alguém a respeito do que o outro pensa, isto é, aquele que transmite, aquele que reproduz, aquilo que o hermeneuta comunica não é uma concepção teórica, mas vontade, desejo, ser, existência, ou seja, hermenêutica é a notificação do ser de um ente em seu ser em relação a alguém. Para Aristóteles, a linguagem do discurso é a interpretação através do pensamento, a função da fala é tornar acessível algo enquanto tal, a fala tem a possibilidade assinalada do desvelamento (verdade). Filon usa o termo hermeneuta para falar de Moisés como o intérprete da vontade de Deus. No Cristianismo, hermenêutica equivale a comentário, a hermenêutica passa a significar, não a interpretação em si, mas as regras para a interpretação das Escrituras.
A hermenêutica indica que a objetualidade é um ser capacitado para a interpretação e necessitado dela, que é inerente a esse seu ser o ser interpretado de algum modo. A hermenêutica tem como tarefa tornar acessível tornar acessível o ser-aí próprio em cada enquantaticidade em seu caráter ontológico do ser-aí mesmo, de comunicá-lo. Na hermenêutica configura-se ao ser-aí como uma possibilidade de vir a compreender-se e de ser essa compreensão. A interpretação é algo cujo ser é o ser da própria vida fática.
O tema da investigação hermenêutica é o ser-aí próprio em cada enquantaticidade. O ser da vida fática mostra-se no que é no como do ser da possibilidade de ser de si mesmo. A possibilidade mais própria de si mesmo que o ser-aí (a faticidade) é a existência. Os conceitos que tenham sua origem na explicação da existência são chamados de existenciais. O conceito é uma possibilidade de ser, do instante, isto é, constitui este instante, um significado produzido, extraído, um conceito mostra a posição prévia ou concepção prévia, transpõe o ser-aí para a experiência fundamental. A hermenêutica tem por objetivo um conhecer existencial, isto é, um ser. A hermenêutica fala desde o ser interpretado e para o ser interpretado.
Estamos preferindo usar o termo ser-aí ao invés de ser-humano, pois o conceito de humano é dotado de toda uma interpretação histórica. O humano é geralmente definido como “ser racional”, uma interpretação equivocada de Aristóteles que na verdade quis dizer eu o homem é um ser que fala. Na tradição bíblica e teológica o humano é entendido como um ser criado à imagem de Deus, sendo livre e inteligente. Para evitar esse conceito tradicional do humano, usamos o termo ser-aí.
O tema dessa investigação é o ser-aí na enquantaticidadeenquantaticidade e sua tarefa é colcar o ser-aí numa perspectiva compreensiva de modo que possam ser evidenciadas características fundamentais de seu ser. O ser-aí não é algo como um pedaço de madeira ou uma planta, também não é algo composto de vivências, nem muito menos é o sujeito que está diante do objeto, um eu diante do não-eu. O ser-aí é um ente especial que não é objetualidade. O ser-aí fático está aí em sua enquantaticidade. Esta vem pelo hoje enquantacional do ser-aí, O hoje é o hoje hodierno.
O ser-aí move-se num modo determinado de falar de si mesmo que chamamos de falação. A falação é um falar de si mesmo de modo mediano e público, nela reside uma compreensão prévia determinada que o ser-aí possui de si mesmo. Esta falação é o como em que uma determinada interpretação de si mesmo está à disposição do próprio ser-aí. O público da medianidade constitui o modo de ser do a-gente, do impessoal. A falação pertence ao a-gente, ao impessoal, a ninguém. Na História e na Filosofia, o ser-aí fala direta ou indiretamente de si mesmo a partir da compreensão e interpretação que tem de si mesmo. História e filosofia, na medida em que servem de base para a desconstrução enquanto hoje, devem ser vistas exclusivamente relacionadas à questão pelo ser do ser-aí.
Em relação à História, a consciência história situa-se sobre o fundamento da predeterminação objetual do passado enquanto ser expressão, diante de toda a multiplicidade do que é ente dessa maneira. Isso quer dizer que a compreensão e a determinação do caráter histórico exigem por si mesmas, seguindo sua tendência mais própria, a referência, que não se fuja dessa atitude de seguimento visual. O exame de observação significa um determinado demorar-se ocupado em algo. O que no demorar aparece enquanto possibilidade de expressão universal é o passado, é ente no como do ter-sido e isso quer dizer que para o demorar-se contemplando está já-aí. Chamamos de curiosidade, atraída e dirigida à objetualidade, ao fenômeno de não estar em nenhum lugar por ter que vê-lo todo, em particular o que faz ao passado histórico. A consciência histórica está aí, expondo-se no caráter público sobre uma determinada interpretação de si mesma, em tal interpretação de si mesma ela o traz à linguagem aquilo que é para ela importante com vistas ao próprio ser-aí da vida. A consciência histórica, em seu distanciamento objetivo em relação ao passado, possui também objetivamente o presente do ser-aí, ou seja, mas isso se, com o caráter objetual se lhe tiver atribuído ao histórico: ele já possui seu porvir (futuro).
Quanto à Filosofia, pela interpretação que a consciência filosófica faz de si mesma no público apresenta-se o interesse pela formação segundo quatro aspectos: (i) enquanto filosofia objetiva, científica: nela se exibem verdades puras como fortaleza em que o ser-aí se encontra a salvo do relativismo sem fundo; (ii) enquanto filosofia objetiva que oferece a possibilidade de uma concordância mais objetiva: a concordância apresenta ao ser-aí uma segurança contra o ceticismo imperante; (iii) esta filosofia objetiva, científica se encontra presa à vida: essa filosofia possui justamente o que no ser-aí hodierno se exige dela, o que se costuma chamar proximidade da vida; (iv) é uma filosofia universal e concreta: ela oferece justamente aquilo de que em geral se tem necessidade, sem especialização e questionamentos triviais. Assim, a filosofia oferece ao ser-aí a proteção objetiva, a segurança da concordância, a proximidade da vida e a superação de um questionar detalhado que desiste das grandes respostas. E, assim, como diria Hegel, foi alcançada a absoluta falta de necessidade em que o Espírito alcança a certeza de si mesmo, e se retira para sua verdadeira liberdade.
II. O CAMINHO FENOMENOLÓGICO DA HERMENÊUTICA DA FATICIDADE
A palavra fenômeno designa aquilo que se mostra tal. Fenômeno designa um modo privilegiado de ser objetual. A Fenomenologia toma as objetualidades como elas em si mesmas se mostram, ou seja, tal como aparecem numa determinada perspectiva. Tal perspectiva surge de um estar orientado ou estar familiarizado com o ente que se mostra. Não se deve pretender uma observação do fenômeno livre de perspectiva, pois ninguém é um ser quimérico fora de uma posição prévia.
O mostrar-se do ente pode ser que resulte num aspecto tão sedimentado pela tradição que nem sequer seja possível reconhecer o que se tem de impróprio, o que se tem de encoberto. Por isso, é necessário trazer à luz a história do encobrimento de modo a se realizar uma desconstrução da tradição. Essa desconstrução significa realizar um retorno à filosofia grega aristotélica para ver como decai e fica encoberto o que era originário para ver como nós mesmos nos encontramos nessa decadência. Ser ao modo do encobrir-se é inerente ao caráter ontológico do ser e a hermenêutica da faticidade segue o caminho da interpretação do ser.
No fenômeno fundamental do ser interpretado, aparece o fenômeno da curiosidade no sentido de um deter-se que consiste em estar voltado para uma enquantaticidade no sentido de determiná-la e conhecê-la. A possibilidade da explicação concreta do fenômeno da curiosidade se enraíza naquilo em que o ser-aí tiver sido disposto por meio de uma posição prévia. Essa posição prévia na qual o ser-aí se encontra pode ser formulada dizendo que o ser-aí enquanto vida fática é ser-no-mundo, que não deve ser confundida com uma relação sujeito-objeto.
O decisivo para a configuração de uma posição prévia está em ver o ser-aí em sua cotidianidade. A cotidianidade caracteriza a temporalidade do ser-aí, o a-gente em que se mantêm encobertas a singularidade e a possível propriedade do ser-aí. Ser-aí enquanto vida fática significa ser-no-mundo, mundo é o que vir ao encontro, o mundo é oferecido enquanto aquilo que é ocupado. Enquanto algo que é ocupado o mundo é um mundo circundante, o que está na cercania. O que vem ao encontro é entendido como significância, enquanto é interpretado a partir da significância, o circuncidante abre a compreensão da espacialidade fática. O ser é no mundo no modo fundamental da pre-ocupação.
A significância se refere ao ser-aí no como de uma significação determinada Os três fenômenos pelos quais a significância se manifesta são: (i) abertura: se mostra tanto no caráter do ser simplesmente dado (ente à mão) e na manifestação prévia do mundo compartilhado; (ii)familiaridade: ser-em em relação a uma rede de referências e; (iii) a imprevisibilidade e o comparativo: é o aparecimento do inoportuno, daquilo que não é familiar.
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