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TEORIAS DO VALOR - THOMAS CARSON (RESUMO)

 

O que se segue é um resumo dos capítulos 1 ao 5 do livro Value and the Good Life de Thomas Carson, que tratam de Teorias do Valor. O resumo se divide nas seguintes partes: (1) Argumentos a favor do hedonismo (Chapter 1. Arguments for Hedonism); (2) Objeções à teoria hedonista do valor (Chapter 2. Objections to the Hedonistic Theory of Value); (3) Teoria preferencialista do valor (Chapter 3. The Desire/Preference-Satisfaction Theory of Value); (4) Teoria do valor de Nietzsche (Chapter 4. Nietzsche’s Theory of Value and the Good Life: The Ubermensch Ideal); (5) Teoria aristotélica do valor (Chapter 5. Human Purpose and Human Nature: Aristotelian Theories of Value). É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação das teses do texto original de forma compactada, não uma resenha crítica. A ideia é de que o texto permaneça do autor original no sentido de apresentar de modo resumido suas principais teses no livro. Entretanto, este resumo não substitui a leitura do livro original, nem é uma reprodução dele, trata-se apenas de um roteiro para estudo com propósito educacional sem fins lucrativos. A obra usada como referência para este resumo foi: CARSON, Thomas L. Value and the Good Life. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2000.

 

I. ARGUMENTOS A FAVOR DO HEDONISMO 

 

A Teoria Hedonista do Valor (THV) sustenta que o prazer é a única coisa boa por si mesma (ou boa como um fim) e que a dor é a única coisa ruim por si mesma (ou ruim como um fim). De acordo com a THV, o prazer e a ausência de dor são os únicos elementos que, em última análise, constituem uma vida boa; outras coisas contribuem para uma vida boa apenas na medida em que promovem o prazer ou evitam a dor.  

Muitos filósofos descrevem a THV como uma teoria de valor intrínseco, e, ao fazer isso, geralmente consideram que “bom/ruim intrinsecamente” significa “bom/ruim como um fim”. Contudo, há um segundo sentido, presente em George Moore, segundo o qual o valor intrínseco de algo é o valor que ele possui independentemente de suas relações com outras coisas. Para evitar confusões quanto a esse ponto, podemos utilizar os termos “bom/ruim não-instrumentalmente” e “bom/ruim instrumentalmente” para marcar a distinção entre coisas que são boas/ruins como fins em si mesmas e aquelas que são boas/ruins apenas como meios para outras coisas. Por sua vez, podemos reservar o termo “bom/ruim intrinsecamente” para falar do sentido de Moore. 

A THV faz as seguintes quatro afirmações: (i) prazeres ou experiências agradáveis são as únicas coisas que são não-instrumentalmente boas; (ii) dores ou experiências desagradáveis são as únicas coisas que são não-instrumentalmente ruins; (iii) todas as experiências agradáveis são não-instrumentalmente boas; (iv) todas as experiências desagradáveis são não-instrumentalmente ruins. Há dois tipos de hedonismo: (i) hedonismo quantitativo: implica que o valor não-instrumental da vida de uma pessoa é determinado exclusivamente pela quantidade de prazer e dor que ela experimenta; (ii) hedonismo qualitativo: nega que questões sobre o valor não-instrumental da vida de alguém possam ser reduzidas a questões sobre a quantidade de prazer e dor que essa pessoa experimenta (posição adotada por John Stuart Mill).  

Boa parte da discussão sobre a THV vem da questão do que conta como prazer ou dor. Há três teorias sobre em que consiste o prazer/dor: (i) teoria motivacional: entende que o prazer é uma experiência que a pessoa prefere ter do que não ter, enquanto a dor é uma experiência que prefere evitar; (ii) teoria sensacional: afirma que o prazer ou a dor de uma experiência depende exclusivamente de suas qualidades introspectivas ou fenomenológicas; (iii) teoria adverbial: sugere que o prazer é uma forma de aproveitar uma atividade (Gilbert Ryle). A teoria motivacional é melhor que as suas rivais. A teoria sensacional enfrenta o chamado problema da heterogeneidade do prazer, uma vez que as experiências prazerosas variam amplamente em suas características sentidas, não sendo evidente que compartilhem uma propriedade fenomenológica comum. Já a teoria adverbial é falha pois há certos tipos de prazer não envolvem participação ou engajamento em uma atividade específica.  

John Stuart Mill apresentou um argumento a favor do hedonismo a partir do princípio de maior utilidade, a primeira parte do argumento é o seguinte: 

(1) Ser bom como um fim (não-instrumentalmente bom) é ser desejável (digno de desejo) como um fim. 

(2) Cada pessoa deseja sua própria felicidade por ela mesma. 

(3) Algo é não-instrumentalmente bom (desejável) se, e somente se, alguém o deseja por si mesmo.  

(4) Portanto, a felicidade de cada pessoa é boa como um fim (não-instrumentalmente boa). 

A segunda parte do argumento prossegue da seguinte forma:  

(5) A felicidade geral é não-instrumentalmente boa.  

(6) A única coisa que qualquer pessoa deseja por si mesma é a sua própria felicidade ou a felicidade dos outros. (A felicidade é o único objetivo final dos nossos desejos. As outras coisas que desejamos são desejadas apenas como meios para alcançar a felicidade). 

(7) Logo, a felicidade de cada pessoa é não-instrumentalmente boa e nada além da felicidade é não-instrumentalmente bom.  

 

O argumento de John Stuart Mill tenta mostrar uma conexão entre o hedonismo psicológico (cada pessoa deseja sua própria felicidade por ela mesma) e a THV. No entanto, a verdade do hedonismo psicológico não implica na verdade da THV. A maior fraqueza da prova de Mill é, portanto, sua defesa do hedonismo psicológico (HP). Mill não apenas falha em fornecer uma defesa adequada do HP, como também o HP parece ser falso. Algumas pessoas desejam coisas como fama, dinheiro, poder e conhecimento por elas mesmas. Mill concede que algumas pessoas desejam coisas além de prazer/felicidade por si mesmas. No entanto, Mill argumenta que, quando as pessoas desejam coisas além de prazer por si mesmo, essas coisas são "desejadas como parte da felicidade". Esse movimento não salva o HP, porque, ao afirmar que desejamos coisas além do prazer "como parte da felicidade", Mill está abandonando sua definição hedonista anterior de felicidade. 

Henry Sidgwick, por sua vez, apresentou o seguinte argumento a favor do hedonismo: 

(1) Ser (não-instrumentalmente) bom é ser digno de ser desejado por si mesmo. 

(2) O prazer é qualquer sensação que é experimentada como desejável. 

(3) Nenhum estado do universo é não-instrumentalmente bom a menos que inclua a consciência. 

(4) Os sentimentos são os únicos estados de consciência desejáveis (não-instrumentalmente bons). 

(5) Os sentimentos são desejáveis (não-instrumentalmente bons) na medida em que são experimentados como desejáveis. Cada pessoa é a autoridade final sobre a desejabilidade de suas próprias experiências. Ninguém pode estar errado ao perceber uma experiência como desejável ou indesejável. 

(6) Portanto, o prazer é a única coisa que é não-instrumentalmente boa. 

Uma objeção a esse argumento é que nem todo prazer é necessariamente desejável, como ilustrado por casos em que uma pessoa sente prazer em algo que considera inadequado ou vergonhoso, como a desgraça alheia, o que contradiz a ideia de que todo prazer é, por definição, desejável. Além disso, embora Sidgwick defenda que estados de coisas sem conexão com a consciência não possuem valor, isso não implica que o valor de um estado de consciência seja determinado apenas pelos sentimentos que ele inclui, já que, como observou G.E. Moore, fatores como cognição e beleza podem também contribuir para esse valor. Por fim, mesmo que cada pessoa esteja em posição privilegiada para julgar seus próprios sentimentos, esses julgamentos não são necessariamente infalíveis, e certos prazeres, como os maliciosos, podem ser objetivamente ruins, independentemente das crenças de quem os experimenta. 

Sidgwick também propôs o que pode ser denominado como argumento a partir da simplicidade teórica. Esse argumento é o seguinte: 

(1) A THV nos oferece uma explicação sistemática de nossas crenças (defensáveis) de senso comum sobre valor, prudência etc.; 

(2) Nenhuma outra teoria do valor de que temos conhecimento consegue explicar e sistematizar nossas crenças (defensáveis) sobre valor tão bem. 

(3) Somos racionalmente obrigados a tentar fornecer explicações sistemáticas para nossas crenças (defensáveis) sobre questões importantes. Devemos aceitar a melhor teoria disponível que sistematize nossas crenças sobre um conjunto de questões importantes. 
(4) Portanto, devemos aceitar provisoriamente a THV. 

As premissas desse argumento são altamente controversas. A Premissa 1 pressupõe que há um conjunto coerente e defensável de crenças de senso comum sobre questões de valor, mas isso é problemático, dado que diferentes pessoas têm crenças intuitivas frequentemente inconsistentes sobre valores. Além disso, Sidgwick não fornece critérios claros para distinguir entre crenças defensáveis e indefensáveis, especialmente considerando que muitas crenças comuns entram em conflito com a THV, como exemplificado nos experimentos mentais sobre "máquinas de prazer". Já a Premissa 2 carece de uma defesa robusta, uma vez que Sidgwick não reconhece o grau em que a THV entra em conflito com crenças amplamente compartilhadas e não avalia adequadamente teorias alternativas, como a teoria do valor baseada na satisfação de desejos ou as teorias aristotélicas. 

 

II. OBJEÇÕES À TEORIA HEDONISTA DO VALOR 

 

Nesta seção serão consideradas objeções à THV. De acordo com a objeção do porco satisfeito, presente no Filebo de Platão, pode-se argumentar o seguinte:  

(1) Se a THV fosse verdadeira, então seria melhor ter uma vida sub-humana muito agradável, como a de um porco satisfeito, do que uma vida humana comum. 

(2) Não seria melhor ter uma vida sub-humana muito agradável, como a de um porco satisfeito, do que uma vida humana comum. 
(3) Portanto, A THV é falsa. 

John Stuart Mill reconhece que a THV implica que humanos e porcos compartilham o mesmo fim último: o prazer. No entanto, ele apresenta uma defesa diferente para o hedonismo, a partir de sua versão "qualitativa" do hedonismo, segundo a qual, considerando todos os outros fatores iguais (intensidade e duração), "prazeres superiores" têm maior valor do que os "prazeres inferiores". Segundo Mill, um prazer (x) é "superior" a outro prazer de quantidade igual (y) se "todos ou quase todos que têm experiência de ambos dão uma preferência decidida" a x em relação a y, "independentemente de qualquer sentimento de obrigação moral para preferi-lo".  

No entanto, a teoria hedonista qualitativa de Mill é incoerente quando vista sob a ótica da teoria motivacional do prazer/dor, que é a melhor teoria sobre o prazer. De acordo com a teoria motivacional, afirmar que uma experiência é prazerosa significa dizer que a pessoa que a vivência preferiria experimentá-la ou continuá-la em vez de não o fazer. Assim, por definição, se uma pessoa preferir algo a outra coisa significa que esse algo lhe dá mais prazer que essa outra coisa. Assim, O hedonismo qualitativo de Mill pressupõe a falsidade da teoria motivacional do prazer e da dor. Suponha que dois prazeres tenham a mesma quantidade. Mill define prazeres superiores como aqueles que são preferidos a outros prazeres de igual quantidade. No entanto, dada a teoria motivacional, não é possível que dois prazeres tenham a mesma quantidade e que um seja preferido ao outro, porque preferir um prazer a outro significa que o prazer preferido é o de maior quantidade. 

Outra objeção a THV parte do experimento mental da máquina de prazer, presentre em Robert Nozick. Este argumento pode ser declarado de forma mais formal da seguinte maneira: 

(1) Se a THV fosse verdadeira, então seria melhor viver uma vida conectada a um tipo particular de máquina de prazer, como o cérebro numa simulação, do que viver uma vida humana comum, que seja razoavelmente digna de ser vivida e compartilhada com pessoas reais em um mundo real. 

(2) A vida humana comum em questão é melhor do que a vida de alguém conectado à máquina de prazer em questão. 

(3) Portanto, o THV é falsa. 

 

Wendy Donner buscou fornecer uma defesa do hedonismo contra esse argumento. Primeiro, ela argumenta que o exemplo de Nozick é muito bizarro e muito distante de quaisquer possibilidades reais para ser levado a sério. Existem vários problemas com esse argumento. Contudo, uma teoria do valor não-instrumental é mais do que apenas um guia para a ação "no mundo real"; trata-se de uma teoria sobre o que torna as coisas boas ou ruins. Outro problema é que, devido aos avanços em neurofisiologia e ao desenvolvimento da "realidade virtual", exemplos do tipo que Nozick descreve podem em breve se tornar "possibilidades práticas". 

A segunda resposta de Donner é que os hedonistas qualitativos podem sustentar que prazeres verídicos e autênticos são preferíveis a prazeres ilusórios ou alucinatórios. Aqui, Donner se distancia das versões padrão do hedonismo, que defendem que o caráter sentido ou experimentado das experiências de alguém é tudo o que importa. Donner considera que as características causais e intencionais das experiências são relevantes para seu valor, no sentido de que um prazer baseado em uma crença real é melhor do que um prazer baseado em uma crença ilusória. Este princípio tem consequências questionáveis no caso de prazeres maliciosos ou moralmente condenáveis. O prazer que um sádico obtém ao realmente torturar alguém não é melhor do que o prazer que ele obtém ao acreditar falsamente que está torturando alguém. 

O terceiro argumento de Donner é baseado no externalismo em filosofia da mente, que defende que o conteúdo dos estados mentais não pode ser identificado de forma independente do ambiente social ou físico de uma pessoa. Se o externalismo for verdadeiro, então é impossível que uma pessoa conectada a uma máquina de experiências tenha as mesmas experiências que alguém que vive uma vida real. No entanto, mesmo que o externalismo seja verdadeiro, ainda podemos considerar a escolha entre viver uma vida real e estar conectado a uma máquina de experiências que proporcione vivências fenomenologicamente indistinguíveis daquelas que alguém teria em uma vida real. 

A THV implica que todos os prazeres, incluindo prazeres maliciosos ou sádicos, são intrinsecamente bons. Alguns filósofos consideram isso uma consequência inaceitável da teoria. Essa objeção encontra sua expressão mais forte em Franz Brentano. Assim, mais uma objeção ao hedonismo é a seguinte 

(1) A THV implica que todos os prazeres, incluindo prazeres maliciosos ou sádicos, são intrinsecamente bons. 

(2) Emoções, assim como crenças e juízos, podem ser corretas ou incorretas. 

(3) É correto sentir prazer no que é bom, e é incorreto sentir prazer no que é ruim. 

(4) Se é incorreto sentir prazer no que é ruim, logo, sentir prazer no que é ruim é, em si mesmo, ruim. 

(5) Portanto, a THV é falsa, pois prazeres maliciosos não podem ser intrinsicamente bons. 

A resposta hedonista a essa objeção é a de que ela confunde o valor instrumental e o valor intrínseco do prazer. A THV explica por que traços de caráter que geram prazeres maliciosos são instrumentalmente ruins, assim como o próprio prazer malicioso pode ser instrumentalmente ruim. No entanto, isso implicaria que um sádico que não chega a causar dano efetivamente a alguém tem um prazer que não é ruim. Geralmente sentimos uma repulsa intrínseca ao sadismo, independentemente de seus efeitos extrínsecos de modo que é razoável pensar que prazeres maliciosos, como o de um sádico, podem ser intrinsecamente ruins. 

Outra objeção ao hedonismo vem de Friedrich Nietzsche a partir de uma visão sobre a quantidade de dor no universo. A objeção, em uma melhor formulação, é a seguinte: 

 

(1) A THV quantitativa implica que as vidas de pessoas que experimentam mais dor do que prazer são intrinsecamente ruins e não valem a pena ser vividas, independentemente de seus efeitos sobre os outros. 

(2) (Pelo menos) algumas vidas humanas são intrinsecamente boas e valem a pena ser vividas, independentemente de seus efeitos sobre os outros, mesmo que contenham mais dor do que prazer. 

(3) Portanto, a THV quantitativa é falsa. 

 

A Teoria Motivacional do Prazer pode, ao menos em parte, responder à objeção nietzschiana ao hedonismo. De acordo com a teoria motivacional, medimos a quantidade de prazeres e dores em termos de nossas preferências entre diferentes experiências e diferentes grupos de experiências. Se alguém prefere passar pelas experiências que terá caso continue existindo, em vez de não ter nenhuma experiência, então a teoria motivacional implica que o restante de sua vida contém mais prazer do que dor. 

Por fim, uma última objeção ao hedonismo é baseada na preferência durante o tempo. O argumento é o seguinte: 

 

(1) Segundo versões padrão da THV, o valor não instrumental dos prazeres é independente da ordem temporal e da posição na vida de uma pessoa como um todo. 

(2) No entanto, a estrutura narrativa e a ordem temporal dos bens na vida de uma pessoa importam em termos de valor. 

(3) Portanto, as versões padrão da THV contradiz o valor da narrativa e da ordem temporal das experiências da vida de uma pessoa.  

 

Michael Slote, por exemplo, critica o hedonismo e outras teorias de valor que implicam que o lugar temporal e a ordem são irrelevantes para o valor dos bens dentro da vida de uma pessoa. Slote afirma que sucessos ou falhas no “auge da vida” são mais importantes do que sucessos ou falhas em outros momentos. O sucesso ou a boa sorte no auge da vida pode “compensar” o fracasso ou a má sorte na juventude, mas o contrário não é verdadeiro. Slote também afirma que uma vida que progride lentamente para uma grande conquista ou boa sorte é preferível a uma em que o mesmo tipo de conquista ou boa sorte ocorre logo no início da vida e é seguida por um declínio. Franz Brentano e Roderick Chisholm defendem uma visão muito semelhante à de Slote. De fato, parece que nos importamos profundamente com a estrutura narrativa e a ordem temporal de vários bens na nossa vida. Também parece que nossa preocupação é, pelo menos em parte, independente de considerações hedonísticas. 

 

III. TEORIA PREFERENCIALISTA DO VALOR  

 

A Teoria Preferencialista do Valor ou Teoria baseada na Satisfação de Desejos é a teoria que toma os desejos, interesses ou preferências racionais das pessoas como o padrão último para resolver debates sobre questões de valor. Essa teoria foi adotada por muitos utilitaristas, notavelmente Richard Hare, James Patrick Griffin e John Charles Harsanyi, ela é amplamente aceita por economistas e foi adotada por não utilitaristas notáveis, como John Rawls, David Gauthier e Georg Henrik von Wright.  

A teoria preferencialista do valor não deve ser confundida com a teoria preferencialista do bem-estar. A verdade da teoria da satisfação de desejos sobre o bem-estar pessoal não implica, e não é implicada pela verdade da teoria do valor baseada na satisfação de desejos. Seria consistente aceitar a teoria da satisfação de desejos sobre o bem-estar e, ainda assim, sustentar que certos estados de coisas que não constituem o bem-estar de nenhum ser senciente, como a existência de objetos belos não percebidos ou objetos feios não percebidos, são intrinsecamente bons ou maus. Também é possível que certos estados de coisas que constituem o bem-estar das pessoas, como a felicidade de pessoas malignas, não sejam intrinsecamente bons. 

No que diz respeito à teoria preferencialista do bem-estar, ela pode ser distinguida em dois tipos: (i) versão irrestrita da teoria preferencialista do bem-estar: afirma que qualquer estado de coisas pode ser objeto de um desejo cuja satisfação seja relevante para o bem-estar de uma pessoa; (ii) versão restrita da teoria preferencialista do bem-estar: diz que existem restrições quanto aos tipos de desejos cuja satisfação é logicamente relevante para o bem-estar de uma pessoa. Podemos também distinguir entre: (i) teoria preferencialista totalista: defende que o valor instrumental de uma vida ou o bem-estar de uma pessoa é determinado pela soma da satisfação e não satisfação de todos os desejos individuais de uma pessoa; (ii) teoria preferencialista global do valor: afirma que o valor intrínseco da vida de uma pessoa ou seu bem-estar é uma função da satisfação de seus desejos em relação à vida como um todo.  

 É importante considerar que se aceitarmos a teoria da satisfação de desejos sobre o valor, devemos dizer que eventos que ocorrem após a morte de uma pessoa e sua inexistência podem ser logicamente relevantes para o valor de sua vida. Além disso, de acordo com a teoria da satisfação dos desejos sobre o bem-estar, o bem-estar de uma pessoa é determinado pela satisfação ou insatisfação dos seus próprios desejos. O meu bem-estar é determinado pela satisfação ou insatisfação dos meus desejos; o seu bem-estar é determinado pela satisfação ou insatisfação dos seus desejos. A satisfação ou insatisfação dos desejos de outras pessoas não é logicamente relevante para o bem-estar de uma pessoa. 

A teoria preferencialista do valor pode ser interpretada de duas formas: (i) uma teoria sobre o que é intrinsecamente bom e mau: a teoria da satisfação de desejos sustenta que a satisfação dos desejos de uma pessoa é a única coisa (ou estado de coisas) que é intrinsecamente boa; (ii) um critério de valor não instrumental: a teoria da satisfação de desejos não é uma teoria sobre o que é bom ou mau, mas sim um critério de valor, ou seja, uma teoria sobre o que torna as coisas boas ou más. Também se pode distinguir a teoria preferencialista do valor em dois tipos: (i) teoria do valor baseada em desejos reais: afirma que o que torna algo intrinsecamente bom é o fato de alguém desejá-lo por si mesmo; (ii) teoria do valor baseada em desejos ideais ou racionais: sustenta que o que torna algo bom é o que pessoas desejariam por si mesmo se pensassem de forma racional e bem-informada. 

Podemos, entretanto, considerar algumas objeções à teoria preferencialista do valor: (i) objeção das preferências subhumanas: algumas pessoas podem preferir viver vidas subhumanas a vidas nas quais elas desenvolvem suas capacidades superiores; (ii) objeção do apelo à nossa experiência de valor: é uma característica óbvia de nossa experiência moral e axiológica que nós desejamos as coisas porque elas são boas e não que as coisas são boas porque as desejamos; (iii) objeção da mudança de desejo: uma pessoa pode ter um desejo sabendo que se esse desejo for realizado seu desejo mudará no futuro como escolher agora algo bom a curto prazo que ela se arrependerá no futuro de ter escolhido; (iv) objeção dos bens sociais irredutíveis: Certos bens, como o prazer de rir de uma piada ou de assistir a um concerto musical juntos, que as pessoas valorizam, pressupõem a existência de contextos sociais ou culturais complexos e não podem existir de forma isolada, sem esses contextos, esses bens não são decomponíveis em estados dos indivíduos; (v) objeção do desejo de autopunição: quando uma pessoa deseja se autopunir ela deseja justamente o que é contrário ao que é bom para ela; (vi) objeção do relativismo: teorias preferencialistas trariam como consequência o relativismo já que as preferências (racionais) das pessoas podem entrar em conflito. 

A melhor versão parece ser uma teoria preferencialista global do valor baseada em desejos racionais e interpretada como um critério de valor não-instrumental. Em nível intuitivo, ela parece muito mais plausível do que a THV. Para lidar com as objeções acima, é importante considerar que teoria da satisfação de desejos de valor implica a falsidade do realismo, tese de que o valor tem realidade objetiva independente de desejos, preferências ou crenças de qualquer sujeito, até mesmo Deus. Portanto, o caso a favor ou contra a teoria da satisfação de desejos depende do caso a favor ou contra o realismo e algumas das objeções acima dependem do realismo. A teoria preferencialista pode superar muitas dessas objeções se adotarmos uma teoria da racionalidade de preferências divinas. 

 

 

IV. A TEORIA DO VALOR DE NIETZSCHE  

 

Nietzsche defende que a força e o poder são o padrão último do valor, pessoas fortes levam vidas boas e pessoas fracas levam vidas ruins. Para Nietzche, uma pessoa forte (Übermensch): autocontrole, paixões fortes, bons instintos, independência de mente, autoestima, independência de autoestima, alegria, amor pelo seu destino (amor fati), gentileza, generosidade e gênio criativo. A teoria do valor de Nietzsche está relacionada com sua tese da vontade de poder como o princípio de toda ação humana, no entanto, assim como o hedonismo psicológico não implica em hedonismo ético, a teoria da vontade de poder não implica na teoria do valor de Nietzsche. 

Há três interpretações plausíveis da teoria do valor de Nietzsche: (i) teoria do poder criativo: o padrão último de valor é o "poder" criativo artístico e intelectual; (ii) teoria do poder da saúde: a saúde psicológica é o único padrão do valor; (iii) teoria pluralista do valor: o valor não instrumental consiste tanto na criatividade artística e intelectual quanto nas características constitutivas da saúde psicológica, como paixões fortes e harmoniosas e autoestima. Assim, Nietzsche, embora seja um niilista moral, não é um niilista axiológico, ao contrário, ele possui uma teoria do valor. Além disso, a teoria de valor de Nietzsche é consistente com a rejeição de seu imoralismo. A teoria de valor de Nietzsche e seu "imoralismo" são separáveis. 

A teoria do Nietzsche enfrenta o problema de parecer propor um padrão inalcançável, muito poucas pessoas são capazes de ser um Übermensch. No entanto, Nietzsche poderia responder que a maioria das vidas humanas são ruins e não vale a pena ser vivida, o que revela seu pessimismo, mas ele também poderia afirmar que o Übermensch é um ideal da melhor vida e que as pessoas comuns devem avaliar suas vidas pela semelhança com esse ideal. A teoria de Nietzsche também é criticada por supostamente dar base para que a maioria fosse sacrificada em nome de uma minoria de pessoas fortes. Contudo, Thomas Hurka contesta a ideia de que teorias morais "perfeccionistas", como a de Nietzsche, levam a visões políticas anti-igualitaristas. Hurka defende uma teoria perfeccionista combinada com uma teoria consequencialista neutra, na qual o estado deve maximizar a perfeição total dos seres humanos, tratando todos igualmente. 

A teoria de Nietzsche pode ser avaliada a partir da teoria preferencialista do valor. Se uma pessoa desejaria ter certas características do Übermensch se fosse racional, então possuir essas características seria não instrumentalmente bom. Por outro lado, se uma pessoa não desejaria possuir essas características de forma racional, então essas características não são constitutivas de seu próprio bem. Muitos de nós têm desejos fundamentais pela existência da bondade moral, que parecem persistir mesmo se fôssemos totalmente racionais, o que sugeriria que a bondade moral (ou pelo menos certos aspectos dela) seria boa de forma não instrumental. Isso entra em conflito com a visão de Nietzsche, que não atribui valor intrínseco à bondade moral. No entanto, ideais como o Übermensch têm um papel importante: para sermos totalmente informados, devemos conhecer esses ideais. Isso pode mudar nossos desejos, como no caso de alguém que inicialmente não desejaria desenvolver suas capacidades artísticas ou intelectuais, mas mudaria de opinião ao entender o ideal do Übermensch.  

 

V. TEORIA ARISTOTÉLICA DO VALOR 

 

Aristóteles e outros na tradição aristotélica utilizam a noção de propósito humano ou natureza humana como fundamento para teorias de valor. Eles sustentam a teoria funcionalista do valor, segundo a qual, ter uma vida boa é cumprir o propósito, função ou a essência da própria natureza como ser humano. Os defensores de teorias de valor baseadas na ideia de propósito humano ou essência humana não forneceram razões adequadas para aceitarmos essas teorias. No entanto, a análise dos ideais de vida boa defendidos por Aristóteles e outros na tradição aristotélica é importante, considerando a teoria preferencialista de valor. Para que nossas preferências sejam totalmente informadas, elas devem se basear em uma compreensão vívida de como seria viver os tipos de vida considerados ideais por essas teorias. É muito provável que nossos desejos racionais fossem alterados por esse conhecimento; se estivéssemos plenamente informados e racionais, muitos de nós desejaríamos que nossas vidas possuíssem algumas das características descritas nesses ideais. 

O conceito de "propósito ou função dos seres humanos" pode ter diferentes significados, nem todos adequados como base para teorias normativas: (i) função como papel social: refere-se a funções determinadas socialmente, como os papéis sociais, como os de pais, professores ou policiais, no entanto, esses papéis não podem fundamentar teorias de valor, já que não há garantia de que cumprir esses papéis seja sempre algo bom, ao longo da história, convenções sociais criaram muitos papéis ruins ou moralmente questionáveis; (ii) função biológica: poderíamos dizer que os seres humanos têm um propósito como órgãos biológicos, como o coração, que circula o sangue, ou o fígado, que remove toxinas, no entanto, essa analogia falha, pois seres humanos não são partes de um organismo maior; (iii) propósito individual: Pode-se entender o propósito de alguém como os objetivos ou metas que dão a ele razões para continuar vivendo, entretanto, essa terceira visão resultaria, na verdade, uma forma de teoria preferencialista do valor. 

Peter Geach propôs um argumento a favor do funcionalismo, ele argumenta que o uso de certos adjetivos, como "bom" e "mau", deve ser entendido como essencialmente atributivo, e não predicativo. Ele distingue entre adjetivos predicativos, cujo significado é independente do substantivo ao qual se aplica, como em "esta é uma caneta vermelha" (equivalente a "isto é vermelho e isto é uma caneta"), e adjetivos atributivos, cujo significado depende do substantivo, como em "Mickey é um rato grande" (não equivalente a "Mickey é grande e Mickey é um rato"). Geach afirma que "bom" é sempre usado de forma atributiva, como quando dizemos que algo é um "bom relógio" ou uma "boa faca", o que significa que serve bem à função para a qual foi criado (marca bem as horas ou corta bem). Assim, não faz sentido falar em algo sendo simplesmente "bom" ou "mau" de maneira isolada; esses termos só fazem sentido em relação ao tipo específico de coisa a que se referem, sempre vinculados a uma função ou propósito.  

A teoria de Geach, no entanto, é incompleta. Ela não fornece critérios para distinguir entre ações humanas boas e más. Além disso, a teoria não oferece uma resposta convincente para a pergunta: "Por que é bom cumprir o propósito ou a natureza essencial de um ser humano?" Essa teoria poderia ganhar a forma de dizer que ter uma vida (não instrumentalmente) boa significa cumprir o propósito para o qual se foi projetado e/ou criado. A melhor versão dessa tese é a seguinte: Se existir um Deus amoroso que projetou e criou os seres humanos com um propósito, então (i) ter uma vida boa é cumprir (a maioria) dos propósitos para os quais um Deus amoroso projetou e criou cada indivíduo; (ii) ter uma vida ruim é falhar em cumprir os propósitos para os quais um Deus amoroso os projetou e criou. Caso não exista um Deus amoroso que projetou e criou os seres humanos com um propósito, a bondade ou maldade das vidas humanas será determinada pela teoria alternativa de valor mais plausível. 

Aristóteles propôs uma teoria funcionalista do valor segundo a qual o maior bem para seres humanos é a eudaimonia (boa vida). Aristóteles define a boa vida como uma vida de atividade excelente ou virtuosa, distinguindo entre virtudes práticas ou morais e virtudes teóricas ou intelectuais. No entanto, ele afirma (ou aparenta afirmar) que a eudaimonia consiste exclusivamente na contemplação ou na atividade teórica excelente, considerando a vida de virtude prática como eudaimônica apenas em um sentido secundário. Esse ponto gera considerável debate entre os estudiosos. Alguns comentaristas defendem que Aristóteles entende a eudaimonia como um "bem inclusivo", que abrange tanto a contemplação excelente quanto a atividade prática excelente (interpretação inclusivista da eudaimonia). Outros sustentam que, no sentido primário, a eudaimonia se restringe exclusivamente à contemplação (interpretação exclusivista da eudaimonia). Além disso, não está claro o que exatamente Aristóteles quer dizer por contemplação (theoria). Ele parece limitar a atividade teórica à matemática, à teologia e às ciências naturais, atribuindo menor valor a outros campos de estudo, como a política.  

Aristóteles apresenta o seguinte argumento a favor da ideia de que a vida boa consiste na vida de contemplação: 

(1) Os deuses são os seres mais eudaimônicos. 

(2) A eudaimonia dos deuses consiste na contemplação. 

(3) A eudaimonia humana é fortemente análoga à dos deuses, de modo que tudo o que constitui a eudaimonia dos deuses também constitui a eudaimonia humana. 

(4) Portanto, a eudaimonia humana consiste na contemplação. 

 duas interpretações da teoria funcionalista de Aristóteles: (i) qualquer ação que demonstre a excelência dessas capacidades exclusivamente humanas é constitutiva de eudaimonia. (iinem todas as características exclusivamente humanas fazem parte dessa função própria, a eudaimonia é constituída por ações que demonstram a excelência de certas capacidades humanas únicas, mas não todas. No entanto, ambas as interpretações criam problemas. Uma coisa não é boa simplesmente por ser única do ser humano, por exemplo, planejar guerras é uma capacidade especificamente humana, nem por isso é boa. No entanto, poderia haver uma qualificação de que uma coisa é boa se é uma capacidade humana apropriada, no entanto, Aristóteles não fornece um critério independente para distinguir uma capacidade apropriada de uma não apropriada. 

A visão de que uma vida boa consiste no desenvolvimento das características essenciais para ser humano merece consideração especial. Essa perspectiva é mais plausível por si só do que muitas das outras comumente atribuídas a Aristóteles. Essa posição encontra sua formulação mais clara e bem elaborada em Perfectionismo de Thomas Hurka. Hurka argumenta que uma vida boa é aquela que desenvolve em alto grau as propriedades essenciais para ser humano. Na medida em que a racionalidade, ou o potencial para ser racional, é essencial para a humanidade, a perfeição de nossas capacidades racionais seria um elemento muito importante da boa vida humana. No entanto, não é claro que ser racional seja essencial para ser humano. Um ser humano normal que tenha sofrido um grave dano cerebral ou uma criança profundamente retardada, mas nascida de pais humanos normais, não seria nem racional nem potencialmente racional. Um problema ainda mais sério para a posição de Hurka é que ele não explica por que deveríamos desenvolver aquelas capacidades essenciais para sermos humanos. Por que deveríamos nos preocupar em desenvolver nossa humanidade em vez de qualquer outra das muitas naturezas das quais participamos? Portanto, mais uma vez a teoria funcionalista do valor se mostra uma teoria incompleta. 

 

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Bruno dos Santos Queiroz

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