ASCENÇÃO E DECLÍNIO DO INDIVÍDUO - MAX HORKHEIMER (RESENHA)

 

O texto a seguir foi construído a partir de anotações de aulas da disciplina de Filosofia Social do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia ministrada pelo professor doutor Rafael Cordeiro Silva em 2023. A partir disso, o texto a seguir consiste em uma resenha do texto “Ascensão e Declínio do Indivíduo” (1947), quarto capítulo do livro “Eclipse da Razão” do filósofo Max Horkheimer.   

O texto “Ascenção e Declínio do Indivíduo” (1947) pertence a uma fase do pensamento de Horkheimer chamada de Crise da Razão, por causa do primeiro capítulo do Declínio da Razão, no qual ele distingue entre razão subjetiva e objetiva. É importante contextualizar historicamente essa fase para entender esse texto. Com a ascenção de Hitler ao poder, inaugurou-se a perseguição a judeus e comunistas. Em razão disso, Horkheimer exilou-se na Suíça (1933) e depois nos Estados Unidos, passando a morar em Nova York (1934). Enquanto permaneceu em Nova York, ele ficou mais preso às funções de direção do instituto, gastando muito tempo preparando aulas que não tinham muito público. Em 1940, Horkheimer muda para as proximidades de Los Angeles, próximo a Hollywood, o que faz com que Horkheimer se interesse por escrever sobre arte, referindo-se ao cinema como cultura de massa e discutindo sobre indústria cultural. 

Em relação às suas discussões, nesse período Horkheimer tem Adorno como seu parceiro e Max Weber como seu interlocutor. Horkheimer também trabalha a noção de Estado autoritário, no sentido de um Estado que controla a economia e que tem uma forma de dominação que transcende as classes sociais, sem a existência de um sujeito dominador. Sua tese é a de que a dominação é inerente à humanidade. No começo, as primeiras sociedades tinham formas mágicas de dominação da natureza e outros seres humanos, mas com a racionalização, passa-se a noções de dominação mais racionalizada, tanto sobre a natureza quanto sobre humanos. Sua influência aparece nas duas principais obras do período: Dialética do Esclarecimento e Eclipse da Razão.  

Com corte de verbas, Horkheimer não teve mais como manter pesquisadores e orientou seus pesquisadores a procurarem vagas em universidades estadunidenses, fazendo que o Instituto de Pesquisa Social com sua proposta de materialismo interdisciplinar perdesse força. O trabalho interdisciplinar não é mais mencionado. Por um lado, com o início da Segunda Guerra Mundial, as verbas de financiamento para a pesquisa do Instituto foram significativamente reduzidas, por outro lado, houve uma divergência quanto à avaliação da nova situação do Capitalismo, o que influiu no desligamento de alguns pesquisadores do Instituto. 

O exílio nos Estados Unidos proporcionou aos integrantes do Instituto contato com duas experiências desconhecidas na Alemanha pré-nazista: a democracia de massas e a cultura de massas. Quanto à democracia de massas, a Alemanha experimentara por pouquíssimo tempo a vida democrática durante a República de Weimar. Antes o país fora uma monarquia, depois uma ditadura de direita. Quanto à cultura de massas, os integrantes do Instituto viveram um processo de formação humanista, proporcionado pela origem burguesa de suas famílias. Esse processo compreendia o estudo das humanidades, artes, música etc. No plano cultural, eles tiveram influência das artes tradicionais: teatro, literatura, música, pintura etc. Assim, a cultura de massas, protagonizada pelos espetáculos de Broadway em Nova York ou pela indústria do cinema de Los Angeles, foi um ingrediente a ser tomado como objeto de reflexão filosófica. 

Houve um choque entre as interpretações do nacional-socialismo de Friedrich Pollock e de Franz Neumann. Neumann, um pouco mais próximo da ortodoxia marxista, sustentou que o nacional-socialismo era um sintoma da crise do capitalismo. Pollock afirmou que o nazismo era expressão do que ele chamou de Capitalismo de Estado. Segundo Pollock, o Capitalismo de Estado consistia em uma situação em que o Estado assumiu o controle da economia substituindo o mercado. 

Esta nova formação não é socialista nem tampouco capitalista em sua versão clássica. Existiriam duas formas de capitalismo: (i) Capitalismo de Estado autoritário: formação em que o Estado assume o controle integral da economia – exemplo: Alemanha nazista (Horkheimer acrescenta a União Soviética); (ii) Capitalismo de Estado democrático: formação em que o Estado assume o controle da economia, sem que haja desaparecimento da propriedade privada. Os Estados Unidos exemplificam essa denominação. Horkheimer e Adorno aderiram à interpretação de Pollock e Marcuse aderiu à interpretação de Neumann. 

Em 1942 aparecem 2 escritos de Horkheimer: (i) “Razão e autoconservação”: no qual Horkheimer descreve como a noção mais ampla da razão foi cedendo espaço para uma compreensão mais restrita da racionalidade como meio de autoconservação humana; (ii) “o Estado autoritário”: ensaio que contém a recepção filosófica da tese de Pollock do Capitalismo de Estado. Horkheimer remete a consolidação do Estado autoritário à Revolução Francesa, como marco do processo de hegemonia burguesa, ancorada em um Estado forte e centralizado. O Estado autoritário é aquele que tem autoridade sobre a economia e os cidadãos. 

No primeiro capítulo do Eclipse da Razão, intitulada “Meios e Fins”, Horkheimer considera uma dupla face da razão: (i) Razão objetiva: diz respeito à ideia de que a razão é uma força constitutiva da ordem das coisas, sendo intrínseca ao ordenamento da ação e dos valores. Esse tipo de racionalidade está presente nas narrativas míticas desde Platão até Hegel; (ii) Razão subjetiva: diz respeito à ideia de que a razão é a capacidade do sujeito escolher o meio mais racional para atingir um determinado fim. Ela tem uma face formal que se apresenta na ciência e uma face instrumental que funciona como meio de dominação da natureza. 

A razão subjetiva acabou por dominar sobre a razão objetiva. A solução para isso, segundo Horkheimer, não é voltar à razão objetiva, mas buscar uma reconciliação da razão. Ele propõe que, em vez da prevalência de um lado da razão sobre outro, haja a reconciliação inicialmente no plano teórico para que ele possa se realizar no plano prático posteriormente. Horkheimer também se volta à história da filosofia para explicar a ascensão e o declínio do indivíduo nos dias atuais. Horkheimer trabalha com a tese de que o indivíduo que prevalece na sociedade atual é o indivíduo servil que se encontra assujeitado pela indústria cultural. 

Horkheimer também formula a Teoria dos Rackets que substitui a teoria marxiana da luta de classes. Segundo a teoria marxiana de classes, há um antagonismo de interesse entre classes trabalhadora e burguesa que seria superado pela revolução. Horkheimer entende que a teoria da luta de classes explica o capitalismo liberal, mas não o capitalismo avançado. A teoria dos Rackets (grupos que lutam pela hegemonia) sustenta eu a dinâmica social é dada por grupos em competição pelo poder ou hegemonia, de maneira lícita ou ilícita. São grupo de toda espécie: econômicos, industriais, eclesiais, políticos, farmacêuticos, jurídicos, acadêmicos etc. Cada grupo (racket) é estruturado à semelhança de uma pirâmide, com aqueles no topo que lideram e oprimem ao mesmo tempo que protegem os subordinados. 

Horkheimer também desenvolve a noção de “mundo administrado”, influenciado por Max Weber. O termo é empregado para descrever um tipo de sociedade burocratizada em consequência do desencantamento do mundo e do processo de racionalização. As possibilidades de mudança social nesse tipo de sociedade são cada vez mais restritas. O papel do filósofo consiste em denunciar a estrutura racionalizada do mundo administrado, apontando a perda da liberdade causada por este mundo. Contudo, Horkheimer não apresenta alternativas políticas para sair desse tipo de mundo administrado. 

No capítulo IV do Eclipse da Razão, Horkheimer discute o declínio do indivíduo. Em capítulos anteriores, Horkheimer pontuou, como considerado, que se pode distinguir entre razão objetiva e a razão subjetiva. Pode-se distinguir também entre indivíduo servil e indivíduo autônomo. No capítulo IV, o autor considera o surgimento do conceito de indivíduo e seu declínio.  

A crise da razão é manifesta na crise do indivíduo. A crise da razão consiste na prevalência do lado subjetivo sobre o lado objetivo. O indivíduo é o agente da razão. Aqui Horkheimer tem como interlocutor Kant, especialmente em relação ao texto “Resposta à pergunta ‘o que é o esclarecimento?’” em que Kant considera a maioridade como se referindo ao uso da razão. O indivíduo que atinge a maioridade é aquele que sabe agir e dar as razões de seu agir sem depender da tutela de outro. Por isso, se a razão está em crise o indivíduo racional também está. 

Horkheimer usa como metáfora para a crise do indivíduo a imagem de uma máquina que não precisa de um piloto ou operador. A máquina representa a sociedade e o piloto representa os indivíduos. A sociedade é o que o autor também denomina como mundo administrado. A sociedade administrada é uma sociedade que não precisa de indivíduos. Diante dessa constatação, o autor se dedica a refletir sobre o conceito de indivíduo. O indivíduo não é uma mera unidade numérica. O indivíduo é, além da unidade, a consciência de identidade. Essa consciência está em certo sentido acabada no adulto e ainda em formação na criança, que ainda não separa realidade de fantasia. A consciência de individualidade depende da faixa etária, da classe econômica, da região geográfica etc. 

A consciência de individualidade é mais clara se há uma base econômica que lhe dá mais recursos para o sujeito perceber a si mesmo como indivíduo. O mesmo pode se verificar, por exemplo, na situação entre brancos e negros, massas e elite. A construção da individualidade pressupõe o sacrifício da satisfação imediata em nome da segurança e da preservação material e espiritual (processo civilizatório), isto é, do prazer mediato. Embora a construção da individualidade seja mais perceptível na elite econômica, aquele que possui mais capacidade aquisitiva acaba se tornando mais refém das mercadorias, perdendo a sua autonomia. Trata-se, portanto, paradoxalmente da perda da individualidade. Aqueles que poderiam ter sua individualidade afirmada se tornam refém da sociedade de consumo.  

Em seguida, o autor faz um resgate da história do indivíduo, retomando à Grécia Antiga, na qual o primeiro modelo de indivíduo era a figura do herói. O herói é aquele que tem autoconfiança e fortaleza, triunfando na luta pela sobrevivência. O herói grego é um eu sem restrições, sendo a encarnação de um egoísmo desenfreado e ingênuo. O ato heroico não resulta de uma maldade por parte do herói, mas pelo desejo de fazer a expiação por um crime cometido. Assim, embora o herói seja o primeiro modelo de indivíduo, não corresponde, assim, ao que se conhece por indivíduo, já que o indivíduo envolve restrição. Entre os heróis gregos, aquele que mais se aproxima do modelo de indivíduo é Ulisses, personagem que utiliza a astúcia como uma forma de autopreservação e que é capaz de tomar decisões. 

O típico indivíduo grego floresceu com a cidade-estado grega (pólis). Isso revela que indivíduo e sociedade são inseparáveis. A existência da cidade favorece a ascensão do indivíduo. O indivíduo se realiza em um meio social, a pólis é o âmbito coletivo (universal) no qual o indivíduo (singular) se realiza. Aristóteles caracteriza o indivíduo como aquele que combina a autopreservação e a autorreflexão. Somente a espécie humana é capaz de fazer essa junção, as demais espécies existentes utilizam diversas formas de autopreservação, mas não fazem uso da reflexão. No entanto, essa combinação entre autorreflexão e autopreservação se perdeu no mundo administrado, no qual os indivíduos simplesmente se adaptam ao seu meio. 

Mesmo autores que parecem ter alguma crítica à cidade, como Rousseau com a ideia de bom-selvagem, escrevem a partir do referencial da cidade, pois indivíduo e cidade se constroem mutuamente e em tensão. É na tensão do universal com o singular que se constrói o indivíduo. Platão, por sua vez, busca um equilíbrio entre os interesses individuais e sociais, práticos e teóricos. Platão é, pois, o filósofo da harmonia. No domínio prático a harmonia é alcançada pela atribuição de funções e direitos a diversas pessoas, já no domínio teórico ela é alcançada por meio de uma cadeia eterna do ser na qual o valor de cada ser é estimado à luz de uma teleologia pré-existente. No sistema harmonioso de Platão, o lugar do indivíduo está pré-determinado. Tal ontologia se aproxima das cosmogonias arcaicas nas quais os indivíduos estão sujeitos a um destino inflexível em relação ao qual ele não pode resistir 

Aristóteles, discípulo de Platão, sob muitos aspectos mantém elementos do sistema de Platão. A exemplo, ele mantém uma teoria do lugar natural, em que a mulher e o escravo, por exemplo, possuem o seu lugar natural dentro de uma certa hierarquia. Ambos os autores partem de uma sociedade escravista como dada, entendendo que somente os homens livres (cidadãos) podem aspirar a harmonia. O sistema de ambos os autores foi construído conforme um tipo de racionalidade que é a razão objetiva, que pressupõe que a racionalidade está na ordem das coisas. Trata-se, pois, da pressuposição de que há um ordenamento racional da realidade. Esse sistema de razão objetiva só existe de Platão até Hegel, nas mitologias e nas grandes religiões monoteístas. 

Sócrates, por sua vez, é mais importante que Platão e Aristóteles, pois nele aparece a ideia de uma consciência moral, entendendo que a autonomia pressupõe autorreflexão. Sócrates colocou em questão os valores da ordem social por meio da consciência moral, o que o levou a ser condenado pela cidade. Horkheimer também fala do estoicismo que é uma filosofia da resignação. Platão e Aristóteles são filósofos afirmativos que corroboram a hierarquia social enquanto Sócrates é mais negativo, já o estoicismo é uma filosofia da resignação. Há uma dissociação entre indivíduo e sociedade na filosofia pós-socrático. 

Quanto à filosofia medieval, Horkheimer se volta a dois autores: Agostinho e Tomás de Aquino. Horkheimer considera dois aspectos da filosofia medieval, de um lado ela foi uma exaltação do indivíduo enquanto criatura divina enquanto por outro lado nega a individualidade dada a renúncia ao prazer. Era de se esperar que a filosofia medieval torna o indivíduo infinitamente pequeno diante da infinidade divina, contudo, o Cristianismo reforçou o valor da alma ao considerar esta vida um muro interlúdio, compreendendo o humano como criatura divina e ensinando que Cristo morreu para salvar o indivíduo. O próprio conceito de alma como lugar de habitação divina e luz interior surgiu com o Cristianismo, algo que não foi pensado pela tradição helênica. Os próprios Evangelhos ressaltam a figura do indivíduo, por meio das narrativas que falam da vida dos homens comuns e que faz emudecer todas as narrativas gregas. 

No Cristianismo, a finitude humana não é contrastada com o monoteísmo hebraico. Diferente do judaísmo, o Cristianismo tem a figura de Jesus que é ao mesmo tempo homem e Deus. A tradição agostiniana que trabalha o conceito de alma, mas ensina a renúncia à sua natureza foi logo substituída pelo tomismo de influência aristotélica. O Cristianismo associa a renúncia (domesticação dos impulsos naturais da alma) à ideia de amor (ágape) universal a todos os humanos. O Cristianismo é uma espécie de desvalorização do ego empírico pela exalação da alma e do amor universal. 

Em seguida Horkheimer considera a figura de Hamlet e enxerga nele uma posição de um indivíduo pós-medieval, mas ainda não suficientemente moderno. Até o final da Idade Média, o Cristianismo cumpria o papel de conferir coesão social porque a Igreja instituiu uma tradição que se universalizou na Europa cristã. A Igreja Romana conseguiu impor uma visão de mundo, uma cultura, uma ciência e uma teologia que garantiu uma unidade social. Essa visão de mundo desmoronou quando o Cristianismo começou a ser abalado, o que trouxe consequências para o indivíduo, algo exemplificado em Hamlet. 

Hamlet é um personagem que teme a morte porque não tem mais a garantia da vida eterna. Uma série de fatores como a expansão marítima, o fim do feudalismo, as reformas protestantes, a arte e as descobertas científicas abalaram a hegemonia da Igreja, afetando a visão do indivíduo. A ideia medieval de indivíduo forte, imagem e semelhança de Deus, dotado de uma alma com luz interior e cuja vida na terra era uma propedêutica da vida eterna foi colocada em xeque por uma astronomia que revelou a pequenez do homem diante da infinitude do universo. Ele representa o indivíduo renascentista ainda mantém a crença em Deus, mas sem a mesma segurança. 

Já o Humanismo renascentista mantém o valor do indivíduo absolutizando-o, mas preparando o caminho para sua anulação. A ideia cristã de valor infinito do homem foi preservada mesmo em sistemas de pensamento não-cristãos. O Cristianismo não reduz o indivíduo a mera autopreservação. A Igreja estendeu seu domínio até abarcar a vida interior, o poderio da Igreja foi capaz de conquistar a alma das pessoas, algo que a cultura helênica não fez. Há um traço comum entre o Cristianismo medieval e a Indústria cultural: dominar a alma do indivíduo. O fim da coesão cultural impostas pela Igreja não significou um caos, já que a indústria cultural passou a ocupar o papel da Igreja, agora em uma nova ordem. 

Em seguida, a Reforma e a Ilustração (Iluminismo) foram dois fatos históricos que abalaram a visão hegemônica medieval. Além deles, fatores econômicos, como a expansão marítima, a revolução tecnológica e indústria, bem como as descobertas científicas, contribuíram para o declínio do indivíduo. A passagem do feudalismo para o Capitalismo incipiente, o liberalismo burguês, foi um momento em que a individualidade esteve subordinada à razão de autoconservação.  

Horkheimer já havia trabalhado a noção de razão de autoconservação considerando como os antigos humanos não distinguiam autoconservação de autorreflexão, já que ao se conservar o ser humano não meramente se adaptava ao meio. Com o tempo, no entanto, a autoconservação humana foi perdendo seu caráter reflexivo, assemelhando o humano aos animais. Com o Capitalismo incipiente, a noção de individualidade se desprende de uma visão metafísica e religiosa de mundo e a individualidade se reduziu aos interesses materiais. Trata-se de uma época de afirmação do indivíduo burguês como perseguidor de seu interesse próprio em uma sociedade de livre-mercado.  

A ideologia burguesa considera que é no conflito de interesses dos indivíduos burgueses que se alcançar a harmonia entre essas divergências. O liberalismo reforçou as qualidades das individualidades forjadas pela disciplina ascética dos indivíduos, algo ilustrado pela teologia calvinista e sua ênfase no trabalho. O trabalho disciplinado e a prosperidade são vistos como sinais da eleição e da benção divinas.  

O indivíduo burguês não se via necessariamente como oposto à coletividade, mas acreditava que uma sociedade de concorrência livre de interesses individuais levaria a uma sociedade mais harmônica. Nasce, assim, a ideia de progresso, exemplificada pelo desenvolvimento das artes, dos avanços científicos e da revolução industrial. A tese do progresso, surgida na Modernidade, fazia os europeus se verem como mais avançados e superiores do que aqueles que os antecederam. O liberalismo é o palco do progresso social e humanitário. Tal concepção enseja a ideia de história como progresso linear presente na filosofia da História.  

O liberalismo concebe o indivíduo como uma mônoda atomizada que basta a si mesma, que é o que caracteriza o individualismo burguês. O princípio do liberalismo nivela o indivíduo burguês. Entendia-se que havia se alcançado a sociedade do progresso e que as contradições sociais seriam arestas que seriam aparadas com o tempo dentro do próprio Capitalismo. O comércio e a troca burguesa passa a igualar os indivíduos burgueses. Todas as mônodas, apesar dos seus próprios interesses, acabavam por se uniformizar justamente pelos seus autointeresses.  

Essa uniformidade pode ser contrastada pela uniformidade da sociedade de massas garantida pela indústria cultural que não disfarça essa uniformidade por meio do individualismo.  A uniformidade moderna se baseava na ideia de que todos entram no mercado iguais, com seus próprios interesses e por meio da livre concorrência alcançava-se a harmonia social.  

O liberalismo inicial caracterizou-se pelo burguês empreendedor que faz plano sobre seus próprios negócios e empreendimentos, como o plano de que os filhos herdem a empresa da família. Assim, os planos se estendiam para além do fundador da empresa, transcendendo os interesses do burguês aos seus herdeiros. Na sociedade de burgueses empreendedores aparece o traço de um pensamento independente. A base econômica é decisiva para a construção da noção de individualidade, todavia aqueles que dispõem de poder econômico se tornam, na sociedade contemporânea, reféns da mercadoria. Na Idade Moderna, no entanto, a base econômica é garantidora da individualidade, já que só quem tem uma base econômica forte pode fazer planos para o futuro seu e de seus herdeiros. 

Na época atual da indústria em escala maior, o empresário independente já não é o caso típico do burguês empreendedor moderno. Com o Capitalismo monopolista, nos maiores centros prevalecem as grandes empresas, não as empresas familiares. O indivíduo contemporâneo pode ter mais oportunidades que seus ancestrais, mas suas perspectivas concretas são mais temporárias. Não há mais uma projeção para o futuro em que o empresário planeja a vida dos seus herdeiros. O futuro não entra mais nas transações, o indivíduo conterrâneo se caracteriza em sua eficiência de cumprir metas.  

Trata-se de um indivíduo encolhido, de um eu fraco. Na contemporaneidade não faz mais sentido trabalhar com as categorias de burguês e proletário. O indivíduo contemporâneo não é mais identificável nessas categorias, mas é parte da massa. Um dos traços da contemporaneidade consiste em que vivemos em uma sociedade massificada. A individualidade na contemporaneidade perde cada vez mais sua base econômica, o futuro do indivíduo depende cada vez menos de sua própria prudência e cada vez mais da luta entre os blocos de nações, algo que se explicitou depois com a Guerra Fria. 

Diante dessa situação em que a sociedade de massas massacra o indivíduo, há forças de resistência que estão no indivíduo. Grupos sociais, como a igreja, as agremiações etc, se tornam abrigos para indivíduos fracos e servis. Os grupos sociais servem de base para a Teoria dos Rackets, pois funcionam como grupos com uma certa hierarquia interna de comando e obediência e que externamente competem um com os outros. Todo indivíduo fraco encontra-se no interior de um racket. O indivíduo fraco não consegue opor resistência ao constructo que é a sociedade, pois não a percebe como construção sua. Esse indivíduo encolhido se limita a imitar e se adaptar, sendo um indivíduo mimético que emula e se conforma às características do grupo social que faz parte. O grupo é o lugar do indivíduo conformado. O mimetismo é um processo de uniformização em que o indivíduo se adapta ao meio. Não se trata de uma introjeção, mas de um processo ativo em que o indivíduo se faz igual ao meio como estratégia adaptativa de sobrevivência. 

Nesse contexto, a Indústria Cultural impõe valores e esquemas de conduta que visam nivelar e igualar as pessoas e aqueles que caem nesses esquemas enquanto egos fracos e encolhidos. A indústria cultural é geradora de modelos de comportamento estereotipados e uniformes. Trata-se de uma invenção que tem como objetivo enganar as pessoas, ofuscando a consciência. Isso nada tem a ver com a arte verdadeira que é crítica da realidade, já que a indústria cultural reitera a realidade. A arte engajada é uma arte comprometida com a transformação social, tendo um conteúdo de protesto. Para Horkheimer, no entanto, mesmo a arte engajada é problemática, pois a crítica deve estar na forma, não no conteúdo, já que o conteúdo de protesto, mas na mesma forma pode ser incorporado pela indústria cultural. 

Nesse contexto, o pensamento religioso, ao invés de ser uma instância de oposição à realidade social, se torna um espaço em que o indivíduo encontra alívio do massacre que sofre durante a semana e sai confortado para continuar reproduzindo a uniformidade da sociedade de massas. Isso é exemplificado pelos grandes pregadores protestantes estadunidenses. Horkheimer menciona o Sermão da Montanha que serve de edificação religiosa para o indivíduo que foi massacrado durante a semana. A religião perde seu caráter sério e se torna uma ferramenta de controle. O mesmo ocorre com a ideia de verdade que, na filosofia analítica, é reduzida aos enunciados científicos. A noção de verdade deixa de significar a realização das possibilidades da essência humana é reduzida a uma discussão sobre os critérios de verdade de um juízo científico. 

O evangelho do mundo contemporâneo administrado é o evangelho da utilidade, enquanto há um avanço técnico ainda há pessoas na miséria.  O declínio da individualidade, no entanto, afeta a todos, desde pessoas em níveis sócias mais baixos até níveis mais atos, desde o trabalhador até o homem de negócios.  

Uma das características do indivíduo autônomo é a ação espontânea, de ser capaz de agir por iniciativa própria, algo que caracterizou tanto o empreendedor como a classe operária por meio do movimento sindical que através do seu protagonismo realizou várias conquistas. No entanto, no mundo contemporâneo, essa ação espontânea entrou em declínio. Mesmo os sindicatos, ao invés de se opor ao Capitalismo, se tornaram instâncias que se limitaram a lutar por melhores condições dentro do próprio sistema capitalista, rendendo-se aos poderes vigentes. No entanto, esse rendimento não é completo, há ainda um anseio que não foi integrado. O mundo administrado não foi capaz de integrar completamente o indivíduo. Há um ressentimento no indivíduo, que se não fosse reprimido, se voltaria contra a ordem vigente. 

Por fim, Horkheimer tece críticas à idolatria do progresso tecnológico. Embora alguns acusem Horkheimer de ser tecnofóbico por sua visão pessimista da tecnologia, é incorreto designá-lo como um tecnofóbico. Ele não recusa a tecnologia, nem tem uma crítica romântica à tecnologia nem vê a tecnologia como a raiz de todos os males. Para ele, não é a tecnologia que é a causa do declínio do homem, mas as relações que o progresso técnico opera nos seres humanos. Os humanos tendem a transformar as tecnologias em uma espécie de ídolo. Aqueles que endeusam a tecnologia tendem a ser menos críticos aos efeitos da tecnologia. A idolatria do progresso tecnológico leva ao oposto do progresso humanitário, a tecnologia se torna um fim em si mesmo ao invés de servir ao ideal de humanidade. 

O problema da decadência do indivíduo não deve ser atribuído ao progresso técnico por si só, mas à estrutura atual e à forma do espírito objetivo, isto é, à mentalidade da era atual. A excessiva idolatria do progresso técnico pode ser vista, por exemplo, na filosofia analítica e seu apreço exagerada pela ciência e tecnologia. A idolatria do progresso técnico também é reforçada pelos meios de comunicação de massa. A indústria cultural promove distorções nos modelos de pensar e agir das pessoas. A ideia de progresso deixa de estar vinculada ao que dá sentido à vida.  

O progresso técnico ao invés de visar o bem comum, é utilizado como uma forma de legitimação de poder. Outra consequência da idolatria do progresso técnico é o culto da eficiência, que faz com que o indivíduo seja medido, não pelo que ele e, mas pela sua utilidade, pelo ideal de produtividade. Desde Saint Simon, um dos representantes do socialismo utópico, a mentalidade tecnocrática influencia os pensadores e até mesmo aos críticos contemporâneos da tecnologia, como o tecnofóbico Thorstein Veblen 


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