A FENOMENOLOGIA DE MICHEL HENRY (RESUMO)
O texto a seguir é um resumo do capítulo II do livro Michel Henry: Incarnation, Barbarism and Belief: na introduction to the work of Michel Henry escrito por Michael O'Sullivan. O título do capítulo no original é Henry and phenomenology. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original. Este resumo tem três seções principais: (i) Introdução; (ii) O Fenômeno e a Representação; (iii) Repensando a Diferença: exterioridade, transcendência e imanência; (iv) A Filosofia do Corpo de Maine de Biran; (v) Críticas de Henry a Husserl.
I. INTRODUÇÃO
Michel Henry inicia o
desenvolvimento de sua fenomenologia pela obra “A Essência da Manifestação”,
na qual defende a tese central de que as principais filosofias, incluindo a intencionalidade
husserliana, a alienação hegeliana, o transcendente heideggeriano e a percepção
afetiva scheleriana, falham em alcançar a essência mais íntima do fazer-se
presente do ser. Assim, Henry objetiva buscar essa essência e sua natureza.
Sua escrita pode parecer obscura, mas a razão disso é que ele cria um
vocabulário novo a fim de se distanciar dos erros do pensamento moderno.
Henry também se dedica a criticar
algumas teorias. Ele faz críticas à ideologia da ciência, que ele chama
de barbárie. Sua crítica não é contra a ciência em si mesma, mas contra a ideologia
em torno de sua prática. Ele também critica a fenomenologia husserliana por
sua noção de que todo movimento da consciência é marcado pela intencionalidade.
Henry também critica o Marxismo por uma má interpretação da filosofia de
Marx. Ele acredita que a ideologia marxista não dá atenção à real intuição
fundamental de Marx de que a realidade fundamental é a práxis viva do sujeito e
não as classes sociais e as forças de produção.
Henry entende que a tarefa principal
da fenomenologia é clarificar a essência da manifestação. Para isso,
ele compreende ser necessário superar o monismo ontológico, a pressuposição
de que o mundo é o único horizonte possível de manifestação. Henry também discute
a questão do ego, entendendo que a filosofia deve estar especialmente
preocupada como o ego pode vir à existência e adquirir seu próprio ser. Henry
pontua, ainda, uma diferença entre a intuição dos objetos, a intuição da
essência da experiência sensível, e a intuição do ser, que envolveria um modo
especial de presentificação. Henry propõe uma ontologia
fenomenológica universal que elabora um tipo de receptividade do fenômeno
adequada à essência primordial de todo fenômeno. Essa ontologia busca entrar em
contato com o ser do mundo através da intuição da realidade em si mesma.
O conteúdo dessa intuição opõe de um lado a intenção da consciência e o
conteúdo em si mesmo que é intencionado sem que seu ser já tenha sido dado “em
pessoa”.
Henry entende que a consciência
não pode se realizar plenamente enquanto uma consciência intuitiva, de
modo que seria necessário circunscrever um fenômeno absolutamente original que
é irredutível ao horizonte delimitado pela intuição. Henry propõe como a
condição geral do ser, a revelação ou manifestação original enquanto esfera
de imanência radical. Henry faz uma diferenciação entre o “ego”, a “essência”
ou “realidade fundamental” e a ação enquanto “revelação” ou “manifestação”.
Henry fala desse espaço fundamental de manifestação e essência como uma revelação
imanente que é a presença de si mesma, uma experiência interna entendida
como uma revelação original que se realiza na esfera radical de imanência, que
existe por si mesma, sem contexto, sem ajuda de nada exterior. Embora essa
esfera de imanência possa parecer solipsista, ela é pensada, por Henry, como
relacionada à práxis da existência encarnada.
II. O FENÔMENO E A REPRESENTAÇÃO
Para
Henry, a fenomenologia é a ciência do fenômeno, cuja tarefa consiste em ater-se
exclusivamente ao que se manifesta tal qual se manifesta a partir de si mesmo. Ele
relaciona essa concepção de manifestação à noção de presença. Essa compreensão
de presença precisa ser distinguida daquela de que a presentificação sempre
envolve uma distância fenomenológica. A distância fenomenológica é
pensada, dentro dos pressupostos do monismo ontológico, como a condição de
possibilidade de presentificação dos fenômenos. A distância fenomenológica
pensa o ser como algo cindindo no qual há uma alienação e separação entre o ser
absoluto e sua existência.
Henry
considera a representação como uma ilustração da noção de distância fenomenológica
e de alienação. Para Henry, a representação é uma presentificação que
implica uma duplicação em que o ser se separa de si mesmo a fim de se
representar. Henry considera que a noção de representação é ambígua. Ele faz
uma diferenciação entre consciência filosófica e consciência natural,
a fim de introduzir sua noção de Parusia, ou “automanifestação do ser”.
A Parusia não requer a reversão da consciência filosófica para a natural, que
parece essencial para a representação, porque o autoaparecimento ou
automanifestação pura não se dão na representação. Isso significa que o espaço
da automanifestação é anterior à representação.
III. REPENSANDO A DIFERENÇA: EXTERIORIDADE,
TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA
Os
conceitos de transcendência, imanência e exterioridade são parte integrante da
fenomenologia de Henry. Ele busca não só denunciar a ambiguidade da noção de representação,
mas também mostrar que é possível conceber a exterioridade em termos de não-diferença.
O evento que Henry denomina como a essência da manifestação é anterior à
consciência, à representação e à exterioridade e todos esses conceitos foram
pensados pela filosofia tradicional em termos de diferença primordial. A
tese de Henry, no entanto, aceita uma concepção revisada de representação e
exterioridade como partes da fenomenologia, uma versão de exterioridade e
representação que não privilegie a diferença. Henry fala, assim, de representação
no sentido de que o conteúdo ontológico puro que a essência representa para si
mesma pertence a ela de forma que não seja de forma algum estranho a ela e
chama de exterioridade ao caráter ontológico desse pertencimento, isto
é, o modo segundo o qual ocorre a recepção pela essência desse conteúdo puro
que é ela mesma.
Quanto
às noções de transcendência e imanência, para Henry, a transcendência é
o ato ou orientação da consciência, a fundação e a manifestação da própria
fundação. Já a imanência pode ser concebida como o evento que é a essência
da manifestação. A transcendência relaciona-se com a manifestação, e a
imanência relaciona-se com a essência. Grosso modo, a transcendência diz respeito
ao que é mais abstrato e a imanência ao que é mais concreto. Assim, o sentido
abstrato da transcendência significa que ela não é capaz de constituir a
essência do fundamento. Transcendência, nesse sentido abstrato, diz respeito
não ao ato pelo qual algo vem a ser, mas ao produto final desse ato, isto é, aquilo
que é. A imanência, por sua vez, é a essência original da manifestação.
A imanência
é uma esfera de autoafetação. Autoafetação é um conceito fundamental em
Michel Henry e descreve o evento que é a manifestação da essência a si mesma. A
essência da manifestação tem prioridade porque ela é capaz de se afetar a si
mesma, de se apresentar para si mesma, de entrar em uma relação consigo mesma.
Esse conceito se relaciona à noção de autoimpressionalidade. Henry
descreve a autoimpressão como a afetividade original, que realiza por si mesma
a autorrevelação da vida. A afetividade é a essência concreta da autoafetação, é
o “sentimento de si por si mesmo”, de modo que essência e sentimento são o
mesmo. Essa autoimpressionalidade viva é a carne.
IV. A FILOSOFIA DO CORPO DE MAINE DE BIRAN
Maine de Biran desenvolveu uma
filosofia revolucionária sobre o corpo. Biran se afastou da escola materialista
ao abraçar o que tem sido referido como uma doutrina da apercepção imediata.
Henry encontra no trabalho de Biran uma expressão da reformulação da relação
dialética e contingente entre a consciência e o corpo. Henry apresenta o corpo
descrito por Biran como um corpo encarnado, um fato original a partir do
qual sua fenomenologia pode começar. Esse corpo encarnado pode ainda ser
denominado como “corpo subjetivo”. Henry faz uma diferenciação entre três
concepções de corpo: (i) o corpo biológico: aquele que é constituído
por determinações científicas; (ii) o corpo vivo: aquele que é
essencialmente uma estrutura transcendental e cujos caracteres fenomenológicos
são os mesmos caracteres da percepção que o dá a nós; (iii) o corpo humano:
que também é uma estrutura transcendental de nossa experiência, mas cujas
características não podem ser reduzidas pura e simplesmente às de todos os
corpos vivos.
Para Biran, há dois tipos
de conhecimento: (i) o conhecimento exterior: é aquele que é dado
por um ser transcendente através da mediação da distância fenomenológica; (ii)
a reflexão: é aquele no qual o ser é dado a nós de maneira imediata. O transcendente,
em Biran, é aquilo que não tem dimensão interior e que pode ser conotado pelo
termo “imagem”. Desse modo, há uma relação entre a noção de transcendente
de Biran e a noção de representação que Henry discute criticamente. Henry é
também influenciado pela principal questão da filosofia de Biran: “há uma apercepção
interna imediata?” Henry parece fortemente influenciado por Biran em pensar
os meios pelos quais o ato de aparecer e a afetividade são eles próprios
experimentados e vividos de forma imediata pelo indivíduo.
Biran examina o corpo do ponto de vista do movimento.
Para ele, esse movimento pertence à esfera de absoluta imanência da
subjetividade. Dois conceitos importantes para Biran são os de resistência
e esforço. A resistência ao esforço não deve ser entendida apenas em termos
de 'algo que resiste', mas como uma força que nos faz reconhecer aqui o papel
da categoria da substância na determinação daquele elemento que se supõe
constituir o fundamento do mundo real. Assim, há a busca por uma ontologia
dinâmica, ao invés de uma metafísica imóvel e inerte.
Biran
distingue três aspectos centrais de sua compreensão de movimento: (i)
o movimento é conhecido através de si mesmo: assim o conhecimento do
movimento não se dá por meio de outra coisa, como a reflexão ou a intencionalidade;
(ii) o movimento é nossa possessão: estamos de posse do acesso imediato ao
conhecimento primordial do movimento de nosso corpo; (iii) o movimento não é
um instrumento: o movimento e o corpo não são intermediários entre o ego e
o mundo.
V. CRÍTICAS DE HENRY A HUSSERL
Para
Henry, o problema da fenomenologia de Husserl é não ter dado devida atenção à substância
patética da vida. Esse problema não se restringe a Husserl, antes perpassa
toda a história da filosofia ocidental desde sua origem na Grécia antiga. A fenomenologia
hilética de Husserl difere da fenomenologia material de Henry no que
diz respeito a três pontos: (i) o problema do tempo: o problema do tempo
levanta a questão de como a consciência se manifesta a si mesma para si mesma, Henry
critica Husserl por pensar a consciência como intencional, tornando a
consciência incapaz de uma autorrevelação; (ii) o problema da metodologia:
Henry também faz críticas metodológicas a Husserl, mostrando que a
fenomenologia clássica tem de lidar com a impossibilidade de produzir um conhecimento
teórico da subjetividade absoluta, o que mostra que a vida transcendental
escapa a qualquer abordagem intencional; (iii) o problema da
intersubjetividade: para Henry, a intencionalidade é incapaz de descrever o
tipo de “comunidade patética” e vida que se refere a nada além de si mesma e
que constitui o meio que por si mesmo realiza toda intersubjetividade possível.
A
fenomenologia hilética de Husserl faz uma dissociação entre momento
real/sensível e momento irreal/intencional de modo que, para Henry,
a filosofia husserliana falha em mostrar a unidade entre a camada hilética
e a camada intencional da consciência. A razão disso estaria no
privilégio que Husserl confere à intencionalidade, reduzindo o elemento
impressional e afetivo a dados sensíveis da percepção que fornecem o
conteúdo do ato intencional que os lança para fora de si na objetividade. Husserl também faz uma distinção entre o elemento
material e o elemento noético. A fenomenologia hilética lidaria
com o elemento material e a fenomenologia noética com o elemento noético.
Husserl privilegia a fenomenologia noética. Henry chega ao ponto de dizer que a
fenomenologia noética nem sequer é de fato uma fenomenologia, pois só existe para
fornecer material para as formações intencionais. Henry também critica a fenomenologia
transcendental de Husserl dizendo que ela não é de fato transcendental
porque a noese intencional não é a condição a priori de
possibilidade da experiência, pois essa condição requer o que é justamente oposto
a noese, a saber, o elemento impressional.
Em
relação ao problema do tempo, Henry compreende que a constituição do
tempo fenomenológico imanente é a constituição original que constitui todos
os elementos subjetivos que constituem o mundo e o tempo aos quais pertence.
Henry chama essa constituição de “Arquiconstituição” que realiza uma “Arquidoação”,
o que também pode ser descrito como “Arquiekstase do tempo”. Henry
critica Husserl por colocar a “Arqui-intencionalidade” no coração da
Arquidoação, fazendo com que essa doação não seja uma autodoação. Desse modo,
em Husserl, a autodoação impressional não é privilegiada, mas sim a consciência
do aqui e agora, uma consciência primordial e original que Husserl considera intencional.
Henry critica Husserl em relação à temporalidade pois, ao ignorar a
impressionalidade, Husserl reduzir o contínuo do tempo fenomenológico à estrutura
formal de passado-presente-futuro sem dar a devida atenção ao fluxo real
concreto. Diante dos problemas da fenomenologia hilética de Husserl, Henry
propõe sua própria fenomenologia material. A fenomenologia material
considera de forma radical a concepção de matéria entendida como conteúdo
impressional primário distinto da noese intencional.
Em
relação aos aspectos metodológicos, Henry critica o método
fenomenológico de Husserl por conceber a si mesmo como nada mais do que o modo
de acesso a um objeto. Henry acredita que o método de Husserl é obstinado por
pressuposições que presumem que o método apropriado para acessar o objeto
encontra suas regras de operação em certas qualidades intrínsecas do próprio
objeto. Henry também considera que um erro central da fenomenologia de Husserl
consiste em tomar o processo de pensamento como realidade, considerando o
aparecimento da cogitatio à "visão pura" do pensamento como
a essência da cogitatio. Henry não entende o cogitatio apenas em
termos de tal "visão pura". Ele descreve a cogitatio reformulando-a em
termos da “subjetividade absoluta que se realiza”.
Henry
também critica Husserl por descrever a transcendência como imanência, o
que seria uma perversão completa dos conceitos fundamentais da fenomenologia. A
confusão de imanência e transcendência ocorre, para Henry, quando Husserl descreve
a doação da imanência como encontrando-se lançada para fora da realidade
interior da cogitatio como o conteúdo transcendente da visão ekstática,
de modo que a doação é transferida da imanência da cogitatio para a
transcendência da visão pura.
A fenomenologia
material de Henry, em última análise, busca dissociar o objeto da
fenomenologia de seu método, o que ele acredita estar totalmente identificado
um com o outro na fenomenologia de Husserl. O foco de Husserl na
intencionalidade e na objetividade conduz a uma filosofia cujo método sempre
permanecerá tão evasivo quanto seu objeto. A fenomenologia material de Henry
oferece uma nova compreensão do aparecimento. Ele postula a “vida” como o
aparecimento primordial na imediatidade patética de seu autoaparecimento como
aquela que funda todos os aparecimentos possíveis e, portanto, todos os fenômenos.
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