OS DOIS RELATOS DE CRIAÇÃO EM GÊNESIS: DIFERENÇAS E INTERPRETAÇÃO
O objetivo deste texto é apresentar uma interpretação dos dois relatos criativos de Gênesis. Há duas narrativas diferentes de criação em Gênesis. O primeiro relato vai de Gênesis 1:1 a Gênesis 2:4a e o segundo vai de Gênesis 2:4b-25. Ao ler a Bíblia na ordem que os textos estão, como lemos um relato primeiro, nossa leitura do segundo relato já fica enviesada. Outra questão que enviesa nossa leitura é a ideia de que a Bíblia é um livro sagrado, inerrante e sem contradições. Portanto, ao se deparar com discrepâncias entre os dois relatos, logo fazemos o exercício de “harmonizá-los”. No entanto, se queremos ler os relatos de Gênesis de maneira objetiva precisamos nos libertar dos enviesamentos de ler uma narrativa com base na outra e, também, é necessário fazer o exercício de não buscar harmonizar as discrepâncias entre os relatos. É o que busco fazer aqui. Este artigo é composto de duas partes: (i) o primeiro relato da criação segundo Gênesis; (ii) o segundo relato da criação segundo Gênesis.
I.
O PRIMEIRO RELATO DA CRIAÇÃO SEGUNDO GÊNESIS
O relato de Gênesis 1 começa dizendo
que Elohim (deus no plural) criou os céus e a terra. Estudiosos têm
notado que a tradução correta do texto, ao invés de “No princípio” é “Quando”.
Logo, o texto diz “Quando Deus criou os céus e a terra”. Isso significa que não
devemos ler o texto pensando que ele fala da primeira coisa que aconteceu no
tempo. Antes de Deus começar a criar, já havia auma realidade pré-existente. Além disso, o termo “criar”
(barah) não significa criar a partir do nada (ex nihilo), mas
construir alguma coisa a partir de uma matéria que já existia. Logo, devemos
afastar de nossas mentes a ideia de que no princípio havia o nada e então Deus
trouxe tudo a existência. Essa é uma interpretação posterior que não se
encontra no texto.
Por exemplo, Rodney Whitefield
no livro Genesis 1 and the age of the Earth, observa que o termo hebraico
בְּרֵאשִׁ֖ית,
traduzido erroneamente por “no princípio” não se refere a algo que aconteceu em
algum instante inicial, mas sim a um "período indefinido de tempo". Veja o caso de Jeremias 28:1, nesse texto o termo é usado para se referir a algo que teve lugar no
quarto ano do reinado de Zedequias. Ou seja, a expressão não se refere ao primeiro
instante de seu reinado. Por isso, compreendendo que o termo se refere a um
período de tempo e não a um instante inicial, o texto pode ser melhor compreendido
como “Quando Deus criou o céu e a terra”.
Quanto
ao verbo “בָּרָא” (barah), existe um mito
desenvolvido por teólogos de que ele significaria criar a partir do nada. Isso
não é verdade, em toda a narrativa o termo בָּרָא é usado de maneira intercambiável com o termo עָשָׂה
(assah), ambos significando formar a partir de uma matéria pré-existente.
De acordo com o Dicionário Hebraico do Antigo Testamento de James Strong,
o termo barah, conforme sua raiz, traz a ideia de cortar uma madeira para
fabricar algo. Por exemplo, o termo é usado em Josué 17:15,18 para falar de
cortar árvores de um bosque. Devemos, pois, afastar da mente desde o começo a ideia
de criação ex nihilo, ela não existe em Gênesis.
Outro
ponto fundamental é que, como observa o professor Osvaldo Luiz Ribeiro (aqui)
o termo “céu e terra” não significa Universo. Não existia a noção de Universo
quando o texto foi escrito. Terra era o território conhecido na época e céu se referia à abóboda de metal que cercava a terra. Entendido isso, podemos ler melhor a passagem. O texto começa com o caos,
um mar de águas caóticas cobre a terra, há a imagem de uma forte tempestade: “E
a terra estava desolada e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o
vento tempestuoso de Deus soprava sobre a face das águas.” (Gênesis 1:2). É
importante dizer que não existe Espírito Santo no texto, o termo רוּחַ aqui
deve ser lido como vento, lê-lo como Espírito Santo é anacronismo. A
compreensão é que a criação é a superação do caos pela formação de uma terra em
ordem e harmonia. Quando Deus cria a terra, o que ele faz é formar uma redoma
de metal em torno dela para protegê-la da invasão das águas do caos primordial.
Esse é o sentido do termo רָקִיעַ (firmamento) que significa abóboda de
metal.
Essa noção de firmamento, bem como
questões de estilo e linguagem do texto, ajuda a ter uma noção de quando o
texto foi escrito. Na medida em que, entre outras coisas, o texto incorpora
elementos da história de criação caldeia, como a noção de uma redoma de
metal, chamada firmamento, que separa as águas acima e abaixo do domo, o texto
parece ter sido escrito no período durante ou logo após o exílio babilônico
(597 e 587/586 a. C.). Assim, Genesis 1 provavelmente é um poema escrito no
período da expectativa ou da efetiva reconstrução de Judá e Jerusalém
logo após o exílio.
O
texto relata a criação de modo a trazer a mensagem da reconstrução de Judá.
Destarte, o texto começa falando de uma terra que se encontrava "deserta e
desolada" (v.2). Assim, ao narrar a criação como Deus transformando uma
terra desolada em uma terra habitada, o texto transmite a mensagem da
restauração de Judá. A ideia é dizer que assim como no tempo em que Deus fez da
terra deserta e desolada uma terra a ser habitada, agora ele criará "um
novo céu e uma nova terra", isto é, ele restaurará a terra de Judá,
reconstruindo Jerusalém e o templo: "Eis que crio novos céus e nova
terra pois eis que crio Jerusalém como regozijo" (Isaías 65:17-18).
Podemos entender, dessa forma, Genesis 1 como um mito cosmogônico que celebra a
reconstrução de Judá, de Jerusalém e do Templo.
O
relato também é, de acordo com a professora Christine Hayes (aqui), uma
releitura do mito babilônico da criação, chamado "Enuma Elish".
Gênesis incorpora elementos desse mito, ao mesmo tempo que o modifica e o
"refuta" a partir de uma outra concepção de mundo. De acordo com o
mito babilônico, no princípio, o que havia eram as águas primordiais.
Essas águas primordiais existiam em duas formas: a água doce, identificada com o deus
Apsu, representando o masculino e a água salgada, identificada com
a deusa Tiamat, representando o feminino. A união entre o
masculino e o feminino, a água salgada e a doce, inicia um processo de criação
por geração.
Primeiro
são criados deuses e demônios, mas esses seres, ao entrarem em guerra
entre si e causarem distúrbios, são condenados à destruição. Apsus decide,
então, destruir suas criaturas. Seu plano é frustrado, no entanto, por Ea,
deus da terra e da água. Tiamat, por sua vez, planeja vingar a morte de Apsu,
mas as criaturas divinas lideradas pelo deus Marduque entram em guerra
contra Tiamat. Marduque mata Tiamat pelo
sopro (vento) de sua boca. Ele mata também Kingu, aliado de
Tiamat. A partir do corpo de Tiamat, Marduque constrói o mundo. Marduque,
então, separa o corpo de Tiamat em dois, com uma parte ele cria a terra e com a
outra o céu (firmamento). O firmamento (a abóbada celeste de metal)
passa a dividir, assim, as águas, havendo separação entre as águas acima do
firmamento e as águas abaixo do firmamento. Em seguida, Marduque cria as
constelações para marcar os meses e a lua para iluminar a noite. Depois,
Marduque cria o homem a partir do sangue de Kingu. Os seres humanos recebem,
então, a incumbência de trabalhar para os deuses. Por fim, Marduque constrói um
templo para os deuses na Babilônia, chamado de Babel.
O
mito bíblico de criação opera uma grande mudança no mito babilônico, não há uma
batalha épica de divindades entre si, nem a ideia de deuses que nascem e
morrem. Gênesis é, de certa forma, até mesmo uma resposta ao mito
babilônico, fazendo inversões na narrativa. O termo pega a natureza
divinizada do mito babilônica, e a des-diviniza, não mais tratando os
elementos naturais como deuses. A criação em Gênesis, é preciso reafirmar, não
é ex nihilo (do nada), antes de Deus criar já há uma terra coberta por
águas primordiais. A criação em Gênesis é na verdade a reorganização de uma
matéria pré-existente, a transformação de um caos e desolação inicial em uma
terra habitada. Isso reflete, como já dito, o propósito do texto: falar aos
judeus sobre Deus restaurando a terra desolada de Judá, transformando-a em uma
terra habitada.
Como no mito babilônico, todavia, há águas primordiais e ao invés de Marduque soprando o vento para destruir Tiamat, a deusa da água salgada, em Gênesis, o "vento" soprado por Deus ("ruach" - erronemante traduzido como Espírito de Deus) sopra sobre as águas primordiais. Aqui há figuradamente uma batalha, não mais entre Marduque e Tiamat, mas entre Deus e o caos primordial. Deus precisa superar o caos primordial para começar a criar. É interessante dizer que o termo "profundezas" em Gênesis, no hebraico é "Tehom" (תְּהוֹם) que está etimologicamente conectado com o termo Tiamat. Tiamat é, assim, substituída, pela noção de um caos primordial, a face das profundezas. Outros textos da Bíblia, no entanto, retratam esse momento como uma batalha entre Javé e Leviatã, o monstro das águas (Jó 41; Salmo 74:12-17; Isaías 51:9-10). Deus luta contra o caos e os monstros que nele habitam para então começar a criar.
Em
Gênesis, assim como no mito babilônico, há a criação do firmamento
(abóboda de metal) que separa as águas, bem como a fixação de estrelas no céu
para demarcar tempos e estações. O firmamento de metal serve como uma proteção
que impede as águas caóticas primordiais de invadirem a criação e prejudicarem
a ordem (algo que ocorrerá no dilúvio). Assim, a criação em Gênesis é de uma
terra plana cercada por uma redoma de metal fechada, protegendo a criação da
invasão das águas caóticas. É importante dizer que a criação de Gênesis, no
entanto, não é uma mera recontagem do mito babilônico em outros termos, há
modificações profundas, há uma intenção clara de des-divinizar a criação e
fornecer uma narrativa de uma criação boa originada em um Deus bom, retirando
relatos de batalhas teogônicas violentas. Há, portanto, nessa releitura, ao
mesmo tempo uma rejeição e uma incorporação dos elementos do mito babilônico.
Outra questão sobre o relato de Gênesis
1 é que a criação dura uma semana. Há uma ordem em que as coisas
são criadas: a luz, a abóboda de metal, a terra seca, as plantas, o sol, lua,
estrelas, os peixes, as aves, os animais e, por fim, o homem. Então, após uma
semana de trabalho, Deus descansa. Esse texto foi escrito com o objetivo de
justificar uma prática judaica antiga: o descanso sabático. Por isso, os
dias devem ser entendidos como dias literais. O autor está dizendo que “nós
guardamos o sábado imitando o que Deus fez na criação”. Por fim, uma última
informação relevante sobre Gênesis 1 é que o texto contém um resquício do passado politeísta dos hebreus,
por exemplo, o texto usa o termo plural “Elohim”, que é o plural do nome do
deus cananeu El e usa o plural “Façamos o homem à nossa imagem” (Gênesis
1:26), remetendo a uma antiga ideia, presente também em outros textos da Bíblia
(Salmos 82:1; Gênesis 3:22; 11:6-7; Isaías 6:8), de um conselho ou concílio de
deuses que se reúne para tomar decisões.
II.
O SEGUNDO RELATO DA CRIAÇÃO SEGUNDO GÊNESIS
Gênesis 2:4b-25 é um relato da criação mais antigo do que o de Gênesis 1, podendo remontar aos séculos VIII a IX
a.C. É importante fazer o exercício de lê-lo como se não existisse Gênesis
1. Podemos fazer de conta que nossas Bíblias começam no verso 4 de Gênesis 2 e
poderemos assim fazer uma leitura menos enviesada do texto. Algum editor ao compilar
textos bíblicos decidiu abrir a Bíblia com o relato da criação de uma semana e
logo em seguida com este outro relato da criação, considerando os dois relatos complementares.
No entanto, se queremos ler o texto por si mesmo é preciso fazer o trabalho de
lê-lo sem os enviesamentos do primeiro relato.
Então, vamos supor que ao abrirmos a
nossa Bíblia, ela começa exatamente aqui em Gênesis 2:4b: “No dia em que Javé
Deus fez a terra e os céus...”. Já encontramos algo interessante, o termo “dia”
(יוֹם – yom), mesma palavra para os dias de Gênesis 1, está no singular,
de modo que está aqui ausente a ideia de uma criação que durou “dias” no
plural. No entanto, o termo também poderia ser entendido como um “período
indefinido de tempo”, podendo ser traduzido como “quando”. Desse modo
teríamos um relato que se inicia numa linguagem semelhante a Gênesis 1. Vimos
que Gênesis 1:1 pode ser compreendido como “Quando Deus criou os céus e a
terra”, aqui teríamos em Gênesis 2:4 a seguinte abertura, como aparece na Nova
Tradução na Linguagem de Hoje: “Quando o Senhor Deus fez os céus e a
terra”.
Em Gênesis 1:2, como vimos, o próximo
passo foi dizer que a terra se encontrava vazia, desolada e coberta por águas.
Aqui a terra está também deserta, mas a razão disso é que “não haviam brotado
nem capim nem plantas, pois Javé não tinha mandado chuvas, e não havia ninguém
para cultivar a terra” (Gênesis 2:5). Note novamente o nome “Javé”,
enquanto em Gênesis 1 prevalece o nome Elohim, em Gênesis 2 prevalece o
nome Javé. Outro detalhe é que segundo o texto, para as plantas existirem,
primeiro deve existir um homem para cultivar a terra. Portanto, enquanto
em Gênesis 1, a terra produz vegetação antes da criação do homem, em Gênesis 2
só pode haver vegetação após a criação do homem.
O texto continua dizendo que Deus
cria o homem do pó da terra e planta um jardim para ele habitar.
Nesse Jardim é colocada duas árvores, uma que dá vida e outra proibida,
que gera a morte. Isso é um teste para o ser humano, que posteriormente,
tentado por uma serpente cairá em pecado. Aqui o homem é criado sozinho,
diferente de Gênesis 1 onde aparentemente Deus cria “homem e mulher” de uma só
vez. Em Gênesis 2, ao que parece, não
era o plano original de Deus criar a mulher, ele o faz quando percebe que o
homem estava se sentindo sozinho. É interessante que para acabar com a solidão
do homem, a primeira coisa que Deus faz é criar animais. No entanto,
nenhum animal é capaz de ser um parceiro para o homem. Constatando isso, Deus
realiza sua última criação, a mulher. Perceba que em Gênesis 2 a ordem da criação
é bem diferente da de Gênesis 1. Primeiro o homem é criado, depois as plantas,
em seguida os animais e, por fim, a mulher.
Enquanto Gênesis 1 é inspirado no Enuma
Elish, o segundo relato da criação é inspirado na Epopeia de Gilgamés.
Essa epopeia relata a história de Gilgamés, rei de Uruque. Ele foi um rei
impopular, famoso por sua tirania. Diante disso, o deus Aruru cria um
homem primitivo chamado Enquidu, formado a partir do pó da terra e
designado a enfrentar o rei Gilgamés. Enquidu era um homem primitivo inocente e
puro, que caminhava nu e vivia em liberdade e harmonia com a natureza e os
animais. No entanto, antes de poder entrar no reino e conhecer Gilgamés,
Enquidu precisou passar por um teste. Uma prostituta aproxima-se
dos seus ouvidos e diz; "Tu és sábio, oh Enquidu, e poderás se tornar
semelhante a deus".
Tendo uma experiência sexual com a prostituta, Enquidu tem suas habilidades mentais e espirituais aumentadas, tornando-se como um deus. Todavia, no mesmo momento ele perde sua inocência e sua harmonia com a natureza é quebrada. Posteriormente, Enquidu se torna amigo próximo de Gilgamés, mas acaba morrendo depois. Diante da morte do amigo, Gilgamés busca encontrar uma forma de se tornar imortal, ouve falar de uma planta que confere eterna juventude. No entanto, uma serpente rouba a planta que poderia conferir imortalidade ao rei.
É preciso dizer que o escritor
do mito de Adão e Eva modificou a história, não sendo, pois, uma cópia,
mas uma readaptação. Por exemplo, elas diferem em um ponto fundamental:
o pecado do primeiro homem não foi o sexo, mas um ato de desobediência (comer o
fruto proibido). No entanto, as duas histórias refletem como ponto central a
problemática do fato de que somos mortais e da perda da inocência humana.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Como considerado neste texto, nos dois
primeiros capítulos de Gênesis temos dois relatos de criação. O primeiro
provavelmente foi escrito no período do exílio e pós-exílio com o objetivo de retratar
a restauração da terra de Judá e justificar a observância do sábado. Esse
relato tem como inspiração o Enuma Elish, trabalha a ideia da criação de
uma redoma de metal que protege a terra do caos e coloca o homem como o último
ser criado. Já o segundo relato é provavelmente mais antigo, ele tem como inspiração
o mito de Gilgamés, nele o homem é criado primeiro, só depois Deus cria as
plantas e os animais, finalizando sua obra com a criação da mulher. Desse modo,
ambos os textos buscam relatar como Deus criou a terra a partir de abordagens
diferentes.
Comentários