TEORIA DO ENDOSSO REFLEXIVO - CHRISTINE KORSGAARD (RESUMO)
O que se segue é um resumo do livro The Sources of Normativity de Christine Korsgaard. O objetivo é apresentar as teses do texto original de forma compactada, sem constituir uma resenha crítica. Assim, o resumo busca refletir as ideias dos autores originais, sintetizando suas principais teses. A leitura deste resumo não substitui a leitura do livro. Ele está estruturado conforme a organização original, dividindo-se nas seguintes partes:
(1) A Questão Normativa (1. The normative Question)
(1.1) Voluntarismo
(1.2) Realismo
(1.3) Teoria do Endosso Reflexivo
(1.4) Teoria da Autonomia
(2) Teóricos do Endosso reflexivo (2. Reflective Endorsement)
(2.1) David Hume
(2.2) Bernard Williams
(2.3) John Stuart Mill
(3) A autoridade da reflexão (3. The authority of reflection)
(4) A origem do valor e o escopo da obrigação (4. The origin of value and the scope of obligation)
(5) Respostas às objeções contra a teoria do endosso reflexivo (9. Reply)
I. A QUESTÃO NORMATIVA
Os filósofos morais modernos têm se envolvido em um debate sobre os “fundamentos da moralidade”. Com frequência se argumenta que precisamos demonstrar que a moralidade é “real” ou “objetiva”. Mas mostrar que algo é uma invenção não é o mesmo que provar que não é real. Pode-se responder que os padrões morais existem da única forma que padrões de conduta podem existir: as pessoas acreditam neles e, por isso, regulam sua conduta de acordo com tais padrões. E esses fatos não são difíceis de explicar. Todos sabemos, de modo geral, como e por que fomos ensinados a seguir regras morais, e que seria impossível convivermos se não fizéssemos algo nesse sentido. Então, o que está faltando aqui, que nos faz buscar um “fundamento filosófico”?
A resposta está no fato de que os padrões éticos são normativos. Eles não apenas descrevem um modo pelo qual regulamos nossa conduta na prática; eles fazem exigências sobre nós: mandam, obrigam, recomendam ou orientam. A maioria dos filósofos morais tentou formular uma teoria que respondesse à questão da normatividade. No entanto, o problema de como a normatividade pode ser estabelecida raramente foi tratado diretamente, como um tema em si mesmo.
É evidente que os seres humanos aplicam conceitos éticos, os conceitos de bondade, dever, obrigação, virtude e justiça, a certos estados de coisas, ações, propriedades de ações e características pessoais. O filósofo, em primeiro lugar, preocupa-se com três aspectos importantes desses conceitos: (i) o que exatamente eles significam, ou contêm: isto é, como podem ser analisados ou definidos; o que queremos dizer quando afirmamos que algo é bom, ou certo, ou um dever; (ii) a que eles se aplicam: quais coisas são boas, quais ações são corretas ou obrigatórias; e (iii) de onde vêm esses conceitos: como chegamos a possuí-los e por que os usamos.
Quando usamos conceitos morais, portanto, falamos de assuntos que para nós são profunda e praticamente importantes. Esse conjunto de fatos pode ser chamado de “os efeitos práticos e psicológicos das ideias morais”. É importante lembrar que uma teoria dos conceitos morais deve ser compatível com esses efeitos, e, mais ainda, deve ser compatível de duas formas distintas.
Primeiro, os efeitos práticos e psicológicos das ideias morais estabelecem um critério de adequação explicativa para qualquer teoria moral. Nossa teoria deve ser capaz de explicar por que e como essas ideias exercem tamanha influência sobre nós. Afinal, tanto a teoria moral quanto a psicológica buscam responder a perguntas sobre como as pessoas são motivadas a agir corretamente e por que se importam tanto com as questões morais. Uma teoria incapaz de explicar os efeitos práticos e psicológicos das ideias morais não poderia sequer pretender justificá-los.
Entretanto, a questão da justificação é diferente: trata-se de uma diferença de perspectiva. Uma teoria pode explicar, de um ponto de vista de terceira pessoa, por que alguém faz o que é certo, e, ainda assim falhar em justificar a ação do ponto de vista da própria pessoa que age, o que significa não sustentar as pretensões normativas da moralidade. A questão normativa é, portanto, uma questão em primeira pessoa: ela surge para o agente moral que deve efetivamente fazer o que a moral exige. Como a moralidade às vezes exige de nós coisas extremamente difíceis, até mesmo o sacrifício da própria vida, uma teoria normativa adequada deve mostrar que, em certos casos, agir errado é tão ruim ou pior que a própria morte.
Quando queremos saber qual é a teoria de normatividade de um filósofo, precisamos nos colocar no lugar de alguém sobre quem a moral faz uma exigência difícil. E então perguntar: “Eu realmente devo fazer isso? Por quê?”. A resposta do filósofo a essas perguntas é sua resposta à questão normativa. Para que uma resposta seja bem-sucedida, ela deve atender a três condições: (i) deve realmente falar a alguém nessa posição: e não apenas descrever, de fora, o que podemos dizer sobre quem ignora ou rejeita as exigências morais; (ii) deve ser “transparente”: ou seja, a explicação não pode depender do fato de que a origem ou a natureza de nossas motivações nos sejam ocultas, não pode se basear em ações cegas ou habituais; (3) deve apelar, de modo profundo, ao nosso senso de identidade: ou seja, à nossa compreensão de quem somos.
Costuma-se pensar que a normatividade da ética representa um problema específico para os filósofos morais modernos. A chamada “visão científica moderna do mundo” parece hostil à ética, enquanto as metafísicas teleológicas da Grécia antiga e os sistemas religiosos da Idade Média pareciam mais favoráveis. É difícil formular isso sem dar margem a objeções, mas tanto a visão grega quanto a medieval sustentavam a ideia de que a vida humana tem um propósito, um fim que só pode ser plenamente alcançado por quem vive de acordo com padrões éticos e cumpre as exigências morais. E isso, por si só, era considerado suficiente para justificar a normatividade da ética: suas exigências eram justificadas em nome do propósito da vida.
A visão científica moderna, por outro lado, ao nos privar da ideia de que o mundo tem um propósito, retirou também essa forma de justificação. No entanto, a visão científica do mundo descreve a realidade sob as categorias da explicação e previsão, mas não substitui a vida prática, cuja característica fundamental é a necessidade de decisão e escolha livres.
Independente se a incompatibilidade entre a visão cientifica do mundo e a normatividade ética é verdadeira ou não, a filosofia moral do período moderno pode ser lida como uma busca pela fonte da normatividade, ou seja, pela origem da autoridade moral. Ao longo desse período, os filósofos ofereceram quatro respostas sucessivas à pergunta sobre o que torna a moralidade normativa. Em resumo, são as seguintes:
(1.1) Voluntarismo:
Segundo essa visão, a obrigação moral deriva do comando de alguém que possui autoridade legítima sobre o agente moral e, portanto, pode fazer leis para ele. Você deve fazer o que é certo porque Deus o ordena, ou porque um soberano político, a quem você consentiu obedecer, o determina. A normatividade, portanto, nasce de uma vontade legisladora. Essa é a posição de Pufendorf e Hobbes. Para ambos, o conteúdo da moralidade é dado pela razão natural: o que a moral exige é o que é razoável que façamos, pelo menos em grupo. As regras morais são aquelas que tornam a vida social possível, e a vida social é necessária aos seres humanos.
Pufendorf, em especial, sustenta que, mesmo sem obrigação, ainda agiríamos corretamente porque isso é útil. Assim, o legislador não é invocado para fornecer o conteúdo da moralidade, nem para explicar por que as pessoas frequentemente são motivadas a fazer o bem, mas para tornar a obrigação possível, isto é, para dar à moralidade seu caráter normativo. Clarke, por outro lado, critica Hobbes por tentar derivar a obrigação do contrato social: do acordo de obedecer às leis de um soberano que torna possível a cooperação. Mas, pergunta Clarke, por que estamos obrigados a cumprir o contrato social? Isso é algo que o voluntarista não consegue responder adequadamente.
(1.2). Realismo
De acordo com o realismo moral, as afirmações morais são normativas se forem verdadeiras, e são verdadeiras se existirem fatos ou entidades intrinsecamente normativos que elas descrevem corretamente. Essa visão foi defendida com vigor por Clarke e Price no século XVIII, e mais tarde por Prichard, Moore e Ross no início do século XX. Para esses pensadores, a normatividade é irredutível, um dado básico da realidade. É um erro tentar explicá-la. A obrigação simplesmente existe, faz parte da natureza das coisas. Algumas ações são, em si mesmas, intrinsecamente corretas, e se é assim, é sem sentido perguntar por que estamos obrigados a realizá-las.
O realismo substantivo, porém, enfrenta várias críticas. Alguns argumentam que não há razão para acreditar na existência de entidades ou valores objetivos intrinsecamente normativos, pois eles não se harmonizam com a visão científica moderna do mundo, nem são necessários para explicações científicas. Thomas Nagel tenta responder a essa crítica dizendo que o realismo não precisa postular objetos metafísicos estranhos, como as Formas de Platão ou os valores não naturais de Moore. O que precisamos determinar é se certos interesses humanos naturais, como o prazer e a evitação da dor, têm, de fato, o caráter normativo que parecem ter.
O problema central do realismo substantivo é sua ideia sobre a origem da normatividade. Por que usamos conceitos como “bom”, “certo”, “razão” ou “obrigação”? Para o realista, é porque reconhecemos que existem coisas com propriedades normativas. Elas parecem normativas, e não há motivo para duvidar disso. Temos conceitos normativos porque percebemos entidades normativas, como se as tivéssemos “detectado” no mundo. Dessa forma, o realismo trata a ética como uma disciplina teórica ou epistemológica. Fazer perguntas éticas é tentar descobrir algo sobre o mundo: um domínio de verdades ou entidades normativas que existem objetivamente e que devemos investigar sistematicamente.
Mas a ética não deveria ser prática, um guia para a ação? O realista admite que o objetivo final é aplicar esse conhecimento à prática. Assim, segundo ele, a vida moral é uma aplicação técnica do conhecimento teórico, e a ação humana consiste, em geral, na aplicação de teorias sobre o que é certo ou bom. No entanto, a crença do realista na existência de entidades normativas não se baseia em nenhuma descoberta, mas sim em sua confiança de que suas próprias crenças e desejos são normativos.
(1.3). Teoria do Endosso Reflexivo:
Essa visão é adotada por filósofos que acreditam que a moralidade está enraizada na própria natureza humana. O primeiro passo do filósofo é explicar qual é a origem da moralidade na natureza humana, e por que usamos conceitos morais e nos sentimos obrigados por eles. Argumentos com essa estrutura podem ser encontrados em Hutcheson, Hume e John Stuart Mill, e, na filosofia contemporânea, em Bernard Williams.
(4). Teoria da Autonomia:
Essa linha de pensamento aparece em Kant e nos kantianos construtivistas contemporâneos, especialmente John Rawls. Os kantianos sustentam que a fonte da normatividade das exigências morais deve ser encontrada na própria vontade do agente, isto é, a autoridade moral nasce da autonomia racional, não de algo externo a ela.
II. TEÓRICOS DO ENDOSSO REFLEXIVO
A normatividade é um problema para os seres humanos por causa de nossa natureza reflexiva. Mesmo quando estamos inclinados a acreditar que uma ação é correta, e até motivados por isso, sempre podemos questionar nossas próprias crenças e motivações. É justamente por isso que buscamos uma fundamentação filosófica para a ética: tememos que a explicação verdadeira de por que temos crenças e motivações morais possa não as sustentar. Em outras palavras, a moralidade pode não resistir à reflexão.
A perspectiva do endosso reflexivo passa a desenvolver parte exatamente dessa ideia. Ela aplica um dos melhores princípios do método filosófico: enunciar claramente o problema é já indicar o caminho da solução. Se o problema é que a moralidade talvez não sobreviva à reflexão, então a solução é que ela pode sobreviver a ela. O método do endosso reflexivo surge naturalmente em teorias que rejeitam o realismo e buscam fundar a moralidade na natureza humana. No período moderno, ele aparece pela primeira vez com os sentimentalistas do século XVIII, como Hume.
De acordo com a abordagem de Hume, não desaprovamos uma ação porque ela é viciosa; ela é viciosa porque a desaprovamos. Como a moralidade está enraizada nos sentimentos humanos, a questão normativa não é se suas regras são verdadeiras, mas se temos razão para nos alegrar por possuir tais sentimentos, e para permitir que eles nos governem. A questão, portanto, é se a moralidade é algo bom para nós. Os sentimentalistas, porém, não foram os primeiros a ancorar a moralidade na natureza humana. Alguns filósofos gregos clássicos, especialmente Aristóteles, também o fizeram. Por isso, não surpreende que o método do endosso reflexivo reapareça em pensadores modernos inspirados no aristotelismo, como Bernard Williams.
Assim como Hume, Williams rejeita o realismo e sustenta que a moralidade se fundamenta nas disposições humanas; e, como Hume, ele acredita que a resposta à questão normativa está em determinar se temos razão para endossar essas disposições. Hume e Williams, portanto, veem no endosso reflexivo uma alternativa ao realismo. Já John Stuart Mill, embora seja em certo sentido um realista (por considerar que o prazer ou o desejável têm valor objetivo), também recorre ao método do endosso reflexivo, pois entende que esse tipo de realismo não resolve por si só o problema da normatividade da obrigação.
Mas, se vamos nos perguntar se podemos endossar nossa natureza moral, precisamos de um padrão de julgamento, um ponto de vista a partir do qual possamos avaliar se a moralidade é boa ou má. Esse ponto de vista, por sua vez, também deve ter pretensões normativas, ao menos em potencial.
2.1 David Hume
Segundo Hume, os juízos morais se baseiam em sentimentos de aprovação e desaprovação que experimentamos ao contemplar o caráter de uma pessoa a partir do que ele chama de “ponto de vista geral”. Adotar esse ponto de vista regula nossos sentimentos de duas maneiras:
(1) Passamos a ver a pessoa não a partir de nossos próprios interesses, mas através da simpatia por ela e por aqueles com quem ela convive - amigos, familiares, vizinhos e colegas. Assim, sentimos prazer ou desprazer simpático em relação aos efeitos bons ou maus de seu caráter sobre os que a cercam (o seu “círculo estreito”).
(2) Julgamos as características de alguém segundo os efeitos habituais dessas características, e não apenas conforme seus efeitos particulares em um caso isolado.
A teoria da simpatia de Hume permite afirmar que uma pessoa tende a sentir humildade ao agir injustamente, mesmo que não acredite haver boas razões para desaprovar tal ato, pois, como Hume explica, os sentimentos dos outros são contagiosos. E, sobretudo, os sentimentos que os outros têm sobre nós penetram em nós: a desaprovação alheia desperta autodesaprovação.
Assim, Hume entende que a moralidade oferece prazeres próprios, por exemplo, pela simpatia, sentir-se digno de amor e aprovação aos olhos dos outros faz com que nos sintamos dignos também aos nossos próprios olhos; do mesmo modo, sentir-se detestável perante os outros nos faz sentir-nos detestáveis internamente. Esses efeitos acontecem independentemente de acreditarmos ou não que a moralidade é justificada. Por isso, Hume pode afirmar, sem circularidade, que a virtude é sua própria recompensa. Seus argumentos estabelecem o que ele chama de nossa obrigação interessada de ser moral.
No entanto, duas críticas principais são levantadas pelos realistas contra a perspectiva de Hume:
OBJEÇÃO (1): Hume não explica a normatividade da moralidade, mas apenas nossas motivações para agir moralmente.
RESPOSTA: Hume utiliza o método do endosso reflexivo para mostrar que a moralidade aprova a si mesma quando refletimos sobre nossos próprios princípios. Mesmo que o patife sensato tente agir apenas por interesse próprio, os sentimentos de desaprovação e aprovação dos outros influenciam-no; a moralidade gera prazer em seguí-la e desprazer em violá-la. Assim, a moralidade não depende apenas de motivações externas, mas possui uma força intrínseca que reforça seu próprio valor.
OBJEÇÃO (2): Mesmo admitindo que Hume tenta mostrar que a moralidade é boa, isso provaria apenas que ela é extrinsecamente boa, não intrinsecamente normativa. A verdadeira normatividade exige mostrar que a moralidade é boa em si mesma.
RESPOSTA: Pelo teste do endosso reflexivo, a moralidade resiste ao desafio interno do interesse próprio e ainda se aprova a si mesma. Isso mostra que a moralidade é intrinsecamente normativa dentro da natureza humana: não há ponto de vista normativo inteligível fora da natureza humana do qual a moralidade possa ser desafiada. Portanto, a moralidade tem autoridade e valor por si mesma, independentemente de interesses externos ou utilidade prática.
2.2 Bernard Williams
Bernard Williams argumenta que há um contraste entre o tipo de objetividade que podemos esperar encontrar na ciência e aquela que podemos alcançar na ética. Ele aceita uma forma de realismo no domínio científico, mas o rejeita no domínio moral. Williams formula esse contraste em termos de convergência, ou seja, daquilo que poderia nos levar ao melhor tipo de acordo. Na ciência, o ideal de convergência seria que chegássemos a um consenso porque estamos todos nos aproximando da maneira como o mundo realmente é. Na ética, entretanto, esse tipo de convergência não é possível: não podemos sair de dentro de nossas próprias crenças para verificar se elas correspondem à realidade, se de fato captam “como o mundo realmente é”.
Williams explica o problema dizendo que nós temos um esquema conceitual, uma maneira própria de organizar e conceituar o mundo. Ao falar sobre “como o mundo realmente é”, normalmente não estamos indo além do nosso próprio esquema conceitual; estamos apenas verificando se usamos bem os conceitos que já possuímos. Mas essa formulação erra o alvo da questão normativa. O problema não é se aplicamos corretamente nossos conceitos, e sim se nossos próprios conceitos são adequados.
Para esclarecer essa diferença, Williams propõe a ideia de uma “concepção absoluta do mundo”, um modelo-limite que representaria a realidade de forma máxima e minimamente dependente de nosso ponto de vista humano. Por exemplo, nossos conceitos de cor poderiam ser explicados por uma teoria física de comprimentos de onda, conceitos menos dependentes da perspectiva perceptiva humana. Assim, quanto mais independente um conceito for de nossa perspectiva particular, mais ele se aproxima dessa concepção absoluta. O melhor caso de convergência na ciência, portanto, seria aquele em que nossas teorias humanas convergissem com as teorias de outros seres racionais (como investigadores alienígenas), indicando que todos estamos nos aproximando de uma descrição verdadeira do mundo.
No entanto, há um problema com essa teoria: por que deveríamos supor que nossas formas humanas de cognição são menos perspectivadas do que nossas formas de percepção? Talvez essa crença venha apenas do fato de resolvermos conflitos perceptivos entre nós mesmos, sem garantia de validade universal. Por isso, o realismo científico de Williams (assim como o realismo ético de Nagel) pode ser visto mais como uma expressão de confiança na ciência do que como uma justificação filosófica capaz de responder ao ceticismo.
Quando passamos à ética, o paralelo com a ciência não se sustenta. Na ética, não existe um equivalente direto às percepções sensoriais: “ver os fatos” é uma coisa, avaliá-los moralmente é outra. O emotivista ou prescritivista tenta separar esses dois aspectos, de um lado o caráter “guiado pelo mundo” das crenças e de outro o caráter “orientado para a ação” das avaliações, mas Williams considera isso implausível. Ele argumenta que conceitos éticos densos (como “cruel”, “corajoso” ou “generoso”) não podem ser aplicados corretamente sem certa compreensão do valor que expressam. Não é possível aplicá-los com “precisão técnica” sem captar, ao menos imaginativamente, o valor que eles envolvem.
Assim, a analogia entre ciência e ética não se sustenta: o tipo de objetividade científica não pode ser transferido para o campo moral. Em vez disso, Williams sugere que uma teoria da natureza humana, que utilize tanto as ciências sociais quanto as naturais, pode nos orientar na reflexão sobre o que constitui o florescimento humano. Essas reflexões permitiriam avaliar se um sistema de valores promove ou não uma vida boa. Se descobríssemos que determinado mundo social favorece a vida humana mais plena e satisfatória, isso justificaria os valores incorporados nesse mundo.
Essa justificativa, porém, tem uma estrutura diferente da que encontramos no realismo científico. Não se trata de afirmar que os valores são “verdadeiros” ou que correspondem a uma realidade moral objetiva, mas de reconhecer que promovem o melhor tipo de vida possível para os seres humanos. Williams chega, portanto, à ideia de que a única crença ética que poderia sobreviver à reflexão filosófica seria a crença de que certo tipo de vida é o melhor para os seres humanos.
Há também, em sua teoria, um elemento de reflexividade: inspirado mais em Aristóteles do que em Hume, Williams entende que a moralidade é uma projeção das disposições humanas, e que essas disposições são boas e justificadas sob todos os pontos de vista práticos possíveis, inclusive sob o seu próprio. Desse modo, a normatividade ética se estabelece reflexivamente, isto é, a moralidade aprova a si mesma como parte essencial da natureza humana e de nossa forma de vida racional.
2.3 John Stuart Mill
John Stuart Mill, diferentemente de Hume e Williams, pode ser interpretado como um tipo de realista moral naturalista, isto é, alguém que acredita que o desejável é o mesmo que o bom, ideia expressa em sua tentativa de provar o princípio de utilidade. Essa prova parte da suposição de que o consequencialismo é verdadeiro; portanto, as questões sobre o que devemos fazer se reduzem a questões sobre o que é bom. Por sua vez, essas questões se traduzem em perguntas sobre o que é desejável. Mill, então, tenta demonstrar que prazer e ausência de dor são as únicas coisas que podem ser consideradas desejáveis.
Entretanto, Mill não acredita que a simples aceitação dessa prova bastaria para motivar alguém a agir segundo o utilitarismo. Ele distingue, em sua teoria, dois tipos de sanções morais: (i) sanções morais externas: são aquelas que envolvem recompensas, punições e o desejo de agradar aos outros (ou a Deus); (ii) sanções morais internas: consistem em um sentimento de dor ou desconforto mental ao violar o dever, um sentimento que, em pessoas moralmente bem formadas, pode chegar ao ponto de torná-las incapazes de agir contra o dever.
Essa separação entre a prova do princípio da utilidade e as sanções morais sugere que Mill é um externalista: para ele, as motivações morais não derivam do simples conhecimento moral, nem acompanham necessariamente a aplicação correta dos conceitos morais, em vez disso, elas provêm da educação e do desenvolvimento moral que nos formam com certas disposições internas. Para Mill, o senso de obrigação utilitarista, sendo compatível com nossa natureza social e empática, pode ser reforçado pela reflexão, e é isso que o torna normativo. Mill também acredita que a moralidade do senso comum é, no fundo, baseada no princípio de utilidade, pois entende as regras morais como generalizações indutivas de muitas experiências particulares de cálculo utilitário.
Assim, de acordo com Mill, a moralidade cotidiana é implicitamente utilitarista. Contudo, ele perde um ponto crucial: a questão normativa precisa ser respondida de modo que faça sentido para o próprio agente que a coloca. E, de acordo com a própria teoria de Mill, isso não acontece, pois na visão dele nossas preferências e motivações são moldadas pela educação que recebemos desde a infância. Se alguém não é utilitarista, não faz diferença saber que o utilitarismo pareceria normativo para quem foi educado dentro dele. Por isso, no fim das contas, Mill não atinge o seu objetivo, sua justificativa não consegue realmente falar ao agente moral que ela pretende convencer.
III. A AUTORIDADE DA REFLEXÃO
A teoria do endosso reflexivo tenta responder à questão normativa sustentando que a moralidade tem fundamento na natureza humana. As obrigações e os valores morais são, nessa perspectiva, projeções de nossos próprios sentimentos e disposições morais. Dizer que esses sentimentos são “justificados” não significa que correspondam a uma verdade objetiva, mas que são bons, bons porque aperfeiçoam nossa natureza social e contribuem para o nosso florescimento.
De um ponto de vista kantiano, é possível defender duas teses importantes: (i) a autonomia é a fonte da obrigação, especialmente da capacidade que temos de obrigar a nós mesmos; (ii) possuímos obrigações morais, entendidas como deveres dirigidos à humanidade como tal. No entanto, isso não significa que todas as obrigações sejam morais, nem que nunca possam entrar em conflito.
A mente humana é autoconsciente não no sentido de ser transparente a si mesma, mas por ser essencialmente reflexiva. Podemos voltar a atenção sobre nossos próprios estados mentais, avaliando e questionando-os. Essa reflexividade, contudo, cria um problema: se nossas percepções e desejos podem ser questionados, precisamos de razões que resistam ao escrutínio reflexivo. Ter uma razão, portanto, é ter um motivo que resiste a essa reflexão, e “razão” é justamente o nome que damos a esse êxito reflexivo.
Termos normativos como “bom” e “correto” também designam esse tipo de êxito. O ceticismo moral, então, não é dúvida sobre a existência de entidades normativas, mas o temor de que nenhuma resposta possa satisfazer a razão reflexiva, de que o “incondicionado” kantiano seja inatingível. A mesma estrutura reflexiva da mente explica por que agimos, como diria Kant, sob a ideia de liberdade.
Dizer que a razão é “êxito reflexivo” implica que, ao considerar um desejo como razão para agir, devo endossar reflexivamente esse desejo. Mas surge então o problema: como decidir se o endosso é legítimo? Kant oferece a resposta por meio do imperativo categórico, expresso na Fórmula da Lei Universal: devemos agir apenas segundo máximas que possamos querer que se tornem leis universais. Essa é, para Kant, a lei da vontade livre.
O imperativo categórico, como lei de uma vontade livre, se torna lei moral quando se aplica ao conjunto de todos os seres racionais: o Reino dos Fins. Nele, cada agente deve agir apenas por máximas que todos os racionais poderiam adotar conjuntamente num sistema cooperativo de ação. Contudo, o argumento kantiano que demonstra que estamos sujeitos ao imperativo categórico não mostra, por si só, que estamos sujeitos à lei moral: é preciso um passo adicional, o de pensar-se como cidadão do Reino dos Fins.
A reflexividade da mente nos obriga, então, a formar uma concepção prática de identidade, uma descrição sob a qual valorizamos a nós mesmos e consideramos nossa vida digna de ser vivida. Quando uma ação ameaça destruir um aspecto essencial dessa identidade, o agente sente uma obrigação incondicional de evitá-la. Assim, a obrigação moral nasce da rejeição reflexiva de ações que comprometeriam o próprio eu.
A obrigação é, portanto, sempre incondicional, embora varie em profundidade conforme o grau de ameaça à nossa identidade. E quanto mais amamos nossos valores, mais estável é essa estrutura normativa. Em última análise, a reflexão exige que nos identifiquemos com alguma lei ou princípio, isto é, que sejamos uma lei para nós mesmos, e é aí que reside a fonte da normatividade.
Uma máxima boa é boa por sua estrutura interna, porque sua forma a torna apta a ser universalizada; por isso, ela é uma entidade intrinsecamente normativa. Nesse sentido, um tipo de realismo moral se confirma: as máximas, enquanto dotadas de forma racional universalizável, possuem uma normatividade intrínseca. Contudo, isso não implica um realismo substantivo no sentido metafísico tradicional, mas apenas que a obrigação é uma realidade constitutiva da vida humana, uma exigência que emerge da própria estrutura reflexiva da razão prática.
IV. A ORIGEM DO VALOR E O ESCOPO DA OBRIGAÇÃO
Devemos valorizar nossa própria humanidade, tratando-a como uma forma de identidade prática e normativa. Esse reconhecimento implica que estamos submetidos a obrigações morais, pois valorizar a humanidade é o mesmo que possuir uma identidade moral. Entretanto, se as razões fossem essencialmente privadas, a coerência racional não nos obrigaria a considerar as razões dos outros, e, mesmo que o fizesse, o faria de modo equivocado. Razões privadas também não podem se tornar “públicas”, pois haveria sempre um abismo entre o mundo privado e o mundo público. Razões privadas que nos levassem a considerar razões dos outros apenas mostrariam que temos deveres “com respeito a” outras pessoas, mas não deveres para com elas.
No entanto, algumas obrigações são genuinamente devidas a outros sujeitos; podemos ser obrigados por outros do mesmo modo como podemos nos obrigar a nós mesmos. Isso só pode ser possível porque as razões não são privadas, mas públicas por natureza. Há duas maneiras de compreender essa publicidade: (i) publicidade como objetividade: essa posição, de caráter realista substancial, entende que as razões são públicas porque derivam de propriedades objetivas do mundo, que seriam os valores objetivos; (ii) publicidade como compartilhabilidade: as razões são públicas porque nascem do intercâmbio recíproco das razões entre indivíduos, do fato de podermos compartilhar reflexivamente nossos motivos.
É aqui que entra a contribuição de Wittgenstein. Ele mostrou que não pode haver linguagem privada, porque o significado é normativo e relacional: dizer que “X significa Y” é afirmar que se deve tomar X por Y, e isso pressupõe uma relação entre quem estabelece a regra (o legislador) e quem a segue (o cidadão). Assim, a ideia de uma linguagem privada é incompatível com a normatividade do significado. Por analogia, não pode haver razões privadas, pois a própria noção de razão é normativa e relacional. Dizer que “R é uma razão para fazer A” é dizer que deve-se fazer A por causa de R, o que também requer uma estrutura dual: uma autoridade que legisla e um sujeito que obedece.
A ilusão de que razões são “entidades mentais” é, portanto, idêntica à ilusão de que significados são entidades mentais. Falar em valores ou significados não é falar de entidades, mentais ou platônicas, mas de relações normativas entre nós e os outros. Nesse sentido, o valor é um fato da vida e se o valor é um fato da vida, negar todo valor equivale a rejeitar a própria vida. O ceticismo prático-normativo completo se expressa, então, como uma forma de suicídio existencial, em que o indivíduo considera a si mesmo e sua vida como destituídos de valor. Por isso, a moralidade é condição de toda forma de valor e de toda obrigação: negar que a humanidade tenha valor é mergulhar no ceticismo moral absoluto.
Adicionalmente, a reflexão, enquanto faculdade normativa, tem poder de obrigar-nos e punir-nos, e, por isso, deve governar-nos por leis boas. Daqui se segue que a relação entre o eu pensante e o eu agente é uma relação de autoridade legítima. Agir à luz da reflexão é exercer autoridade sobre si mesmo; e na medida em que temos autoridade sobre nós, podemos legislar para nós mesmos, tornando-nos, assim, autônomos. É nesse sentido que Kant estava certo: a autonomia é a fonte da obrigação.
V. RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES CONTRA A TEORIA DO ENDOSSO REFLEXIVO
(1) OBJEÇÃO: A autonomia não pode gerar obrigação verdadeira, pois quem faz a lei pode também desfazê-la.
RESPOSTA: A fonte da obrigação moral não é simplesmente o fato de fazermos leis para nós mesmos, mas o modo como a reflexividade da consciência humana nos obriga a agir sob a ideia de liberdade. Nossa mente é reflexiva: podemos questionar nossos próprios desejos e impulsos, e isso exige que atuemos apenas segundo princípios que podemos endossar reflexivamente. Assim, ser autônomo é submeter-se à própria razão, não ao capricho. Mesmo que possamos “refazer” nossas leis, a autoridade da lei moral vem da estrutura da razão prática, da necessidade de identificar-nos com princípios universais que possam valer para todo ser racional. Por isso, a autonomia não destrói, mas fundamenta a normatividade.
(2) OBJEÇÃO: Se a moralidade é fundada na natureza humana, ela perde sua força obrigatória universal e se torna apenas uma expressão contingente.
RESPOSTA: A normatividade não deriva de fatos empíricos sobre nossa natureza, mas da estrutura racional e reflexiva da consciência humana. A moralidade é “humana” não por depender de impulsos ou sentimentos particulares, mas porque apenas um ser racional, autoconsciente e reflexivo pode reconhecer obrigações. Portanto, mesmo que o ponto de partida seja humano, a exigência moral é necessária e universal, pois decorre da própria forma da razão, exatamente como em Kant, mas agora interpretada de modo mais fenomenológico e prático.
(3) OBJEÇÃO: A teoria da “identidade prática” é circular e subjetiva, ela reduz a obrigação a manter coerência consigo mesmo.
RESPOSTA: A identidade prática não é um mero estado psicológico, mas a maneira pela qual o agente se reconhece como um legislador racional. Perder essa identidade não é apenas perder coerência, mas perder a própria humanidade como agente moral. Assim, agir moralmente é preservar as condições de ser um agente livre e racional, não por subjetivismo, mas porque a razão prática exige que nos vejamos como membros de uma comunidade de seres racionais (Reino dos Fins).
(4) OBJEÇÃO: A reflexão pode justificar qualquer código, até o de um mafioso coerente com sua identidade, e, portanto, não explica a moralidade.
RESPOSTA: A mera coerência interna não é suficiente. A reflexão genuinamente normativa não é apenas psicológica, mas crítica: ela exige que a máxima possa ser universalizada. O mafioso que endossa racionalmente sua “lei” privada não passa no teste da universalização. O verdadeiro sucesso reflexivo é aquele que sobrevive à pergunta: “Posso querer que essa máxima valha como lei para todos?”, isto é, o critério kantiano de validade moral. Por isso, a teoria ddo endosso reflexivo não legitima qualquer identidade, mas apenas aquelas compatíveis com a humanidade racional em geral.
(5) OBJEÇÃO: A reflexão é uma atividade privada, logo as razões morais são subjetivas e não podem ser compartilhadas.
RESPOSTA: Seguindo Wittgenstein, pode-se afirmar que não há linguagem privada, e, do mesmo modo, não há razões privadas. O significado e a normatividade são essencialmente relacionais: requerem um legislador e um cidadão, alguém que dá a lei e alguém que a reconhece. Assim, as razões são públicas porque são compartilháveis entre agentes racionais; a moralidade surge da reciprocidade reflexiva entre eu e o outro. Reconhecer a humanidade do outro é reconhecer o mesmo princípio racional que me obriga.
(6) OBJEÇÃO: O fundamento moral em “valorar a humanidade” é insuficiente, ele apenas mostra que eu devo respeitar minha própria humanidade, não a dos outros.
RESPOSTA: Valorizar a própria humanidade implica reconhecer que a razão que me obriga é a mesma que obriga todos os seres racionais. Negar valor à humanidade do outro é contradizer a forma mesma da minha agência. Logo, as obrigações morais são intersubjetivas: o respeito à minha humanidade exige o respeito à humanidade em geral. A normatividade moral surge dessa identidade compartilhada da razão, não de sentimentos ou convenções.
(7) OBJEÇÃO: O apelo à “identidade prática” é demasiado frágil para fundar obrigações incondicionais, afinal, podemos mudar de identidade.
RESPOSTA: Embora possamos mudar aspectos contingentes de quem somos (profissão, cultura, crenças), há um núcleo de identidade que não podemos abandonar sem deixar de ser agentes: nossa identidade como seres racionais autônomos. É ela que fundamenta as obrigações incondicionais. Assim, a normatividade não depende de papéis sociais ou escolhas arbitrárias, mas da estrutura reflexiva da agência: para agir, devo reconhecer a validade universal de certas leis.

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