TEORIA DO MANDAMENTO DIVINO - ROBERT ADAMS (RESUMO)


O que se segue é um resumo da parte III do livro The Virtue of Faith and Other Essays in Philosophical Theology, intitulada God and Ethics e que reúne os seguintes ensaios do autor: (1) Uma Teoria do Comando Divino Modificada sobre o erro ético (A Modified Divine Command Theory of Ethical Wrongness); (2) Autonomia e Ética teológica (Autonomy and Theological Ethics); (3) Nova versão da Teoria do Comando Divino Modificada (Divine Command Metaethics Modified Again); (4) Argumentos morais a favor da crença teísta (Moral Arguments for Theistic Belief); (5) Santos (Saints); (6) Amor puro (Pure Love). É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original. 

 

I. UMA TEORIA DO COMANDO DIVINO MODIFICADA SOBRE O ERRO ÉTICO 

 

A Teoria simples e não modificada do Comando Divino sobre o erro ético sustenta que a errância moral consiste em ser contrária aos mandamentos de Deus. Ou seja, a palavra 'errado' em contextos éticos significa 'contrário aos mandamentos de Deus'. Isso implica que as seguintes duas formas de afirmação são logicamente equivalentes: (1) É errado (para A) fazer X; (2) É contrário aos mandamentos de Deus (para A) fazer X. Assim, a Teoria do Comando Divino pode ser expressa como uma teoria sobre o significado do termo “errado”. A objeção mais evidente à teoria é que a palavra "errado" é usada em contextos éticos por muitas pessoas que não podem significar com ela o que a teoria afirma que elas devem significar, uma vez que não acreditam na existência de Deus. Essa objeção parece suficiente para refutar a teoria se ela for apresentada como uma análise do que todos querem dizer com "errado" em contextos éticos. A teoria só pode ser razoavelmente proposta como uma explicação do que a palavra "errado" significa para algumas, mas não todas as pessoas, em contextos éticos, como no caso do contexto da ética judaico-cristã.  

Uma questão que é levantada contra a Teoria do Comando Divino é a seguinte: se Deus comandasse a crueldade como algo correto, isso tornaria a crueldade algo correto? A isso pode ser oferecida três respostas: (i) é logicamente impossível que Deus comande a crueldade: na Teoria do Comando Divino simples, no entanto, não há razão para pensar que é logicamente impossível para Deus comandar a crueldade; (ii) é sim logicamente possível para Deus comandar a crueldade como algo correto: essa posição, defendida por exemplo por Guilherme de Ockham, parece repulsiva; (iii) Deus não comandaria a crueldade, não por uma impossibilidade lógica, mas porque isso contraria o seu caráter: essa terceira resposta é o que podemos considerar como uma Teoria do Comando Divino modificada.  

De acordo com a Teoria do Comando Divino modificada, quando digo "É errado fazer X", o que estou expressando (pelo menos em parte) é que fazer X é contrário aos mandamentos de Deus. Assim, "É errado fazer X" implica que "É contrário aos mandamentos de Deus fazer X". No entanto, a afirmação de que "É contrário aos mandamentos de Deus fazer X" só implica que "É errado fazer X" se certas condições forem assumidas—especificamente, se assumirmos que Deus possui o caráter de amar suas criaturas humanas. Se Deus realmente nos ordenasse a fazer da crueldade nosso objetivo, isso indicaria que Ele não teria esse caráter amoroso, e, nesse caso, não seria errado desobedecê-lo.  

Poderia se assumir, em uma Teoria do Comando Divino modificada que, “X é errado” significa algo como “X é proibido por um Deus amoroso”. No entanto, uma segunda possibilidade é considerar que a afirmação de que algo é eticamente errado (ou permitido) diz respeito à vontade ou aos mandamentos de Deus, mas não necessariamente ao seu amor. No entanto, cada uma dessas afirmações pressupõe que certas condições para a aplicabilidade dos conceitos de certo e errado, conforme compreendidos pelo crente, sejam satisfeitas. Uma dessas condições é que Deus não comande a crueldade por si mesma. Não é necessário, entretanto, assumir que o amor de Deus seja a única dessas condições. Um cristão pode argumentar, assim, que, na tradição judaico-cristã, não faz sentido falar de Deus comandando a crueldade.  

Na ética judaico-cristã e em conjunto com a Teoria do Comando Divino modificada, o termo “erro ético” pode ser entendido nos seguintes sentidos:  

(1) 'Errado' e 'contrário aos mandamentos de Deus' implicam-se mutuamente: um crente judeu ou cristão sincero aceitará a afirmação 'é errado fazer X' se e somente se ele aceitar 'é contrário aos mandamentos de Deus fazer X';  

(2) Em contextos éticos, a afirmação de que uma determinada ação é errada normalmente expressa certas atitudes volitivas e emocionais em relação a essa ação: isso ocorre, em especial, quando, ao considerar algo errado, o crente expressa a intenção, ou ao menos uma inclinação, de não realizar a ação e se a realiza, ele sente culpa e esses sentimentos são coerentes com a atitude de que errar é fazer algo contra a vontade de Deus 

(3) As atitudes expressas por uma afirmação de que algo é errado são normalmente bastante influenciadas e coloridas por sentimentos e interesses especificamente religiosos: os sentimentos religiosos tendem a ser motivados, em diferentes graus, por sentimentos como amor, devoção e lealdade a Deus e/ou temor a Deus, misturados em várias proporções 

(4) Quando um crente judeu-cristão está tentando decidir, de forma ética, se seria errado fazer determinada coisa, ele geralmente pensa em si mesmo como alguém tentando determinar se essa ação estaria contrária à vontade de Deus: o crente pode tentar encontrar a vontade de Deus, por exemplo, por meio de textos sagrados ou da oração.  

(5) Tipicamente, o crente judeu-cristão é um objetivista não-naturalista sobre o erro ético: quando o crente afirma que algo é (eticamente) errado, ele pretende declarar o que acredita ser um fato de um certo tipo, um fato objetivo não-natural 

(6) O teórico da Teoria do Comando Divino modificada não pode afirmar de forma consistente que "errado" e "contrário aos comandos de Deus" têm exatamente o mesmo significado para ele: isso ocorre porque ele admite que existe uma situação logicamente possível que ele descreveria dizendo "Deus ordena a crueldade", mas não diria que "seria errado não praticar a crueldade". 

Uma objeção que pode ser levantada contra a Teoria do Comando Divino modificada, que é a de que se o crente valoriza elementos do caráter de Deus, como o amor, a fim de valorizar os mandamentos de Deus, então esse caráter é valorizado de modo independente do mandamento de Deus e isso significaria que, consequentemente, algo é valorizado eticamente sem que seja baseado no mandamento divino. No entanto, o erro desse argumento consiste em achar que se valorizamos algo, então valorizamos isso eticamente ou em termos de pressupor noções como certo e errado. 

A Teoria do Comando Divino ainda tem a dificuldade de explicar o que queremos dizer quando falamos que Deus é bom. Se “bom” quer dizer “comandado por Deus dado certas condições”, então em que sentido Deus seria bom, já que ele não está submetido a uma lei moral nem faz sentido dizer que Deus é bom porque ele faz o que ele comanda. No entanto, no contexto da Teoria do Comando Divino modificada, dizer que “Deus é bom” pode ser compreendido considerando os seguintes pontos:  

(1) Ao dizer "Deus é bom", normalmente se está expressando uma atitude emocional favorável em relação a Deus: geralmente o crente expressa uma atitude de gratidão quando diz que Deus é bom;  

(2) Quando Deus é chamado de "bom", muitas vezes isso significa que Ele é bom para nós ou para quem está falando: "Bom" é, em certas ocasiões, praticamente um sinônimo de "amável";  

(3) A força descritiva de "bom", quando aplicada a Deus, é esgotada pela noção de bondade ou amabilidade: em muitos contextos, "Deus é bom" deve ser entendido como atribuindo a Deus, de forma geral, qualidades de caráter que o crente considera virtudes nos seres humanos; 

(4) Não se pensa que Deus possui todas as qualidades que são virtudes nos seres humanos: algumas dessas qualidades são logicamente inaplicáveis a um ser como Deus é suposto ser, seria, por exemplo, logicamente inadequado falar de Deus como controlando seus desejos sexuais; 

(5) Se aceitarmos uma teoria do comando divino sobre a correção e incorreção ética, teremos que admitir que a noção de dever é uma virtude humana que, assim como a castidade sexual, é logicamente inaplicável a Deus: Deus não pode nem cumprir nem deixar de cumprir um dever, pois Ele não tem deveres. 

(6) O defensor da Teoria do Comando Divino modificada deve negar que, ao chamar Deus de "bom", se está pressupondo um padrão de correção e incorreção moral que seja superior à vontade de Deus: quando o crente diz "tal ser humano x é bom", ele implica que x segue um padrão ético aprovado por Deus. Já ao dizer "Deus é bom", o crente não está referindo-se a um padrão ético superior à vontade de Deus, apenas que Deus possui qualidades como bondade ou benevolência. 

Apesar da Teoria do Comando Divino fundamentar a moralidade em Deus, crentes e descrentes possuem pontos de concordância que permitem o discurso moral comum: Resumindo as observações sobre o que torna possível o discurso moral comum entre crentes e não crentes: (1) ambos utilizam os mesmos termos éticos, como “certo” e "errado"; (2) ambos tratam esses termos com o mesmo status gramatical e lógico básico, compartilhando muitas conexões lógicas com outras expressões; (3) ambos concordam em grande parte sobre quais tipos de ações são chamadas de "erradas"; (4) as atitudes emocionais e volitivas expressas ao dizer que algo é "errado" são semelhantes; (5) dizer que algo é "errado" desempenha funções sociais semelhantes para ambos. 

 

II. AUTONOMIA E ÉTICA TEOLÓGICA 

 

Na teoria ética moderna, tornou-se quase um axioma que devemos ser autônomos em nossas ações morais. Dois motivos são apresentados em defesa da autonomia: (i) Responsabilidade: A autonomia envolve ser responsável pelas próprias ações ao invés de simplesmente assumir o que Deus determina como sendo certo e errado; (ii) Motivos: a autonomia envolve agir eticamente simplesmente porque isso é o certo ao se fazer, e não porque assim se obedecerá a vontade de Deus. 

Na ética teológica, no entanto, há sim espaço para a reponsabilidade, a autonomia e a motivação moral adequada. Aqui pode ser útil emprestar o termoteônomo de Paul Tillich. Vamos dizer que uma pessoa é teônoma na medida em que ela considera seus princípios morais como dados por Deus, e os segue parcialmente por amor ou lealdade a Deus. Contudo, ela também valoriza esses princípios por si mesmos, de forma que seriam os princípios que ela escolheria para si mesma se estivesse criando sua própria lei moral. O agente teônomo, ao agir corretamente, age moralmente porque ama a Deus, mas também porque ama aquilo que Deus ama. Assim, ele possui tanto a motivação da obediência quanto a da autonomia. 

 

III.NOVA VERSÃO DA TEORIA DO COMANDO DIVINO MODIFICADA 

 

De acordo com uma antiga versão da Teoria do Comando Divino modificada, tal teoria seria uma análise do significado de termos morais no contexto judaico-cristão. Conforme a teoria antiga, para alguns crentes, a expressão "(eticamente) errado" implica duas coisas:  

(1). (Para qualquer ação X), X é eticamente errado se, e somente se, X for contrário aos mandamentos de Deus. 

(2). A afirmação "X é errado" normalmente expressa oposição ou outras atitudes negativas em relação a X.  

(3). Deus é amoroso e, portanto, não ordena nem ordenará práticas como, por exemplo, a crueldade por si mesma. 

Isso reflete a crença de que, por causa do caráter amoroso de Deus, Ele não poderia ordenar algo que fosse moral, ou seja, além da noção de contrário à vontade divina, a noção de algo eticamente errado na antiga teoria também carrega um componente emocional ou volitivo que reflete a desaprovação do ato. Quanto ao terceiro ponto, Deus nunca ordenaria a crueldade em si mesma porque Deus é amor, contudo, (3) é uma verdade contingente, já que Deus ordenar a crueldade em si não é uma impossibilidade lógica. Contudo, a antiga teoria também está comprometida com algumas verdades necessárias:  

(4) Se X é errado, então X é contrário aos comandos de Deus.   

(5) Se X é obrigatório, então X é exigido pelos comandos de Deus.   

(6) Se X é eticamente permitido, então X é permitido pelos comandos de Deus.   

(7) Se não há um Deus amoroso, então nada é eticamente errado, obrigatório ou permitido. 

Diante da versão antiga da Teoria do Comando Divino modificada, segundo a qual, o significado de “errado” depende, para os crentes, de (3) que, por sua vez, depende de um fato contingente, Georg Stout sugeriu o que ele chama de holismo. Stout sugere que o significado de uma expressão é determinado por seu papel no "jogo de evidência-inferência-ação", que é um sistema de relações entre "situações de observação", inferências, "crenças, desejos, intenções" e ações, além das sentenças usadas no pensamento ou na fala. A expressão adquire seu significado a partir de sua relação com o sistema como um todo. O sistema de crenças de uma pessoa precisa ser constantemente revisado para mantê-lo em harmonia com a experiência, mas não há um conjunto de crenças puramente a priori ou analíticas que não possam ser revisadas. Algumas sentenças são mais sujeitas a revisões do que outas, de modo que se pode falar de sentenças de leis firmemente estabelecidas 

O holismo é derivado da crítica de Quine faz da distinção à noção de analiticidade e ao verificacionismo presentes como dogmas do Empirismo. Stout interpreta que as teses metaéticas da antiga Teoria do Comando Divino modificada em termos de "sentenças de leis firmemente estabelecidas", que seria a aproximação mais próxima que temos da analiticidade e da necessidade lógica ampla. Stout sugere que o grau de “estabelecimento” de uma sentença reflete o quanto um indivíduo ou comunidade está disposto a resistir a pressões epistemológicas para abandonar uma crença. Para Stout, uma sentença profundamente estabelecida é considerada quase indubitável pelos crentes. 

No entanto, autores como Keith Donnellan, Saul Kripke e Hilary Putnam, realizaram um caso persuasivo em defesa da existência de verdades necessárias que não são analíticas nem conhecidas a priori. Por exemplo, a afirmação de que água é H2O é metafisicamente necessária, mas não é a priori. Nem todo aquele que usa a palavra "errado" no sentido ético precisa saber qual é a natureza do caráter errado de uma ação. A palavra é usada com o mesmo significado por pessoas que têm visões diferentes, ou que não possuem nenhuma sobre o assunto. O que todo aquele que usa a palavra "errado" deve saber é, em primeiro lugar, que o caráter de ser errado é uma propriedade de ações (talvez também de intenções e atitudes, mas certamente de ações), e, em segundo lugar, que as pessoas geralmente se opõem às ações que consideram erradas. Além disso, quem usa a palavra errado deve ter algumas opiniões sobre quais ações possuem essa propriedade e disposições relativamente estáveis sobre o que ele considera como razões para julgar uma ação como errada.  

 Analisar o significado de “errado” não é suficiente para determinar a natureza da propriedade de ser errado. Uma nova versão da Teoria do Comando Divino modificada pode assumir que é uma verdade metafisicamente necessária que “errado” é aquilo que um Deus amoroso proíbe ao mesmo tempo que mantém que essa verdade não é nem a priori nem analítica. Pode-se considerar os seguintes elementos envolvidos em ser a propriedade que melhor cumpre o papel de ser o caráter de errado de uma ação:  

(1) Normalmente falamos de ações como sendo certas ou erradas como fatos que existem objetivamente, independentemente de acreditarmos nisso: "Errado" tem a sintaxe de um predicado comum, e nos preocupamos com a possibilidade de estarmos errados em nossos julgamentos éticos. 

(2) A propriedade de ser errado deve pertencer àquelas ações que são consideradas erradas ou pelo menos grande parte delas: mesmo que o senso comum possa se enganar sobre o que é errado, pelo menos uma análise do que é a natureza do errado deve se aplicar em grande parte ao que geralmente se considera errado. 

(3) A característica de ser errado deve desempenhar um papel causal (ou ser objeto de percepção) no fato de as ações passarem a ser consideradas erradas: ela não deve estar conectada de forma meramente acidental à nossa classificação das ações como erradas ou não erradas. 

(4) Entender a natureza do que é errado deve nos dar mais, e não menos, motivos para opor-nos a ações erradas: mesmo que se descobrisse (o que certamente não ocorrerá) que todas as ações erradas geram um certo prazer sensorial, seria absurdo afirmar que a errado é a propriedade de produzir esse prazer, isso porque essa propriedade, por si só, não nos dá nenhuma razão para nos opormos a uma ação que a possui. 

(5) A melhor teoria sobre a natureza do que é errado deve atender a outras intuições sobre o erro, na medida do possível: uma intuição bastante comum e relevante para a metaética teológica é que a correção e a incorreção são determinadas por uma lei ou padrão cuja santidade é superior à de qualquer vontade ou instituição meramente humana. 

Dado as crenças cristãs típicas sobre Deus, parece mais plausível identificar o que é errado com a propriedade de ser contrário aos comandos de um Deus amoroso: (i) Essa é uma propriedade que as ações têm ou não têm de forma objetiva, independentemente de nossa percepção; (ii) os cristãos acreditam que essa propriedade pertence a todas e somente às ações erradas; (iii) ela também desempenha um papel causal na classificação das ações como erradas, já que Deus criou nossas faculdades morais para refletir seus comandos; (iv) devido ao que se acredita sobre as ações, propósitos, caráter e poder de Deus, a contrariedade aos seus comandos é vista como uma razão extremamente relevante para se opor a uma ação; (v) os comandos de Deus constituem uma lei ou padrão que os crentes consideram ter uma santidade não possuída por qualquer vontade ou instituição meramente humana. 

 

IV. ARGUMENTOS MORAIS A FAVOR DA CRENÇA TEÍSTA  

 

A Teoria do Comando Divino pressupõe que certo e errado dependem dos comandos de Deus, de modo que a existência da moralidade conta como argumento a favor do teísmo. A Teoria do Comando Divino envolve duas vantagens: (i) ela torna os fatos morais como sendo objetivos e não-naturais; (ii) ela é inteligível, sem precisar recorrer a entidades estranhas como no platonismo. Podemos considerar, no entretanto, três objeções contra o argumento de que a Teoria do Comando Divino seja vantajosa 

Objeção 1: Certo e errado não podem significar “permitido” ou “proibido” por Deus, pessoas que não acreditam na existência de um Deus que comande ou proíba certas ações ainda utilizam os termos 'certo' e 'errado', e se acredita (mesmo por teístas) que essas pessoas consideram certas ações como corretas e outras como erradas. 

Resposta à objeção 1: A Teoria do Comando Divino não precisa ser uma teoria sobre o que está analiticamente implicado nos conceitos de certo e errado, além disso, a análise dos significados desses termos pode ainda deixar em aberto questões sobre a natureza da propriedade do certo e do errado.  

 

Objeção 2:  A Teoria do Comando Divino implica que se Deus nos ordenar cometer crueldade por si mesma isso seria correto. 

Resposta à objeção 2: Essa objeção só se aplica à Teoria do Comando Divino simples, já que, segundo a Teoria do Comando Divino modificada, Deus nunca comandaria a crueldade por si mesma.  

 

Objeção 3: As vantagens da Teoria do Comando Divino poderiam ser mantidas mesmo se Deus não existisse, poderia se dizer que a moral se baseia no que um Deus amoroso comandaria, caso ele existisse.  

Resposta à objeção 3: Poderia se responder que se descobrirmos que errado e proibido por Deus são idênticos em nosso mundo, isso então se tornaria uma identidade necessária entre dois designadores rígidos, válida em todos os mundos possíveis; além disso, se consideramos a crueldade errada em um mundo sem Deus, isso se deve à nossa desaprovação no mundo real, se essa atitude reflete um fato moral objetivo e não natural, por que esse fato não poderia ser real em nosso mundo, ao invés de depender da mera suposição de um Deus? 

Pode-se salientar quatro pontos sobre o argumento a favor do teísmo a partir da noção de certo e errado: (i) o argumento oferece uma explicação para fatos morais que já consideramos verdadeiros, sugerindo um Deus cujos comandos e caráter estão alinhados com nossos julgamentos morais, sendo necessário que ele seja um Deus amoroso: (ii) Deus deve ser um ser inteligente, capaz de emitir comandos, possuindo grande conhecimento dos fatos éticos relevantes, mas não necessariamente a onisciência absoluta; (iii) argumento não implica que Deus seja onipotente; (iv) não está claro se o argumento apoia a crença na unidade ou singularidade de Deus, pois os comandos divinos poderiam ser representados por um grupo de deuses, o que levanta questões sobre a moralidade que governaria as relações dos deuses entre si. 

Os argumentos morais mais influentes a favor da crença teísta são conhecidos como argumentos kantianos. Eles compartilham a ideia de uma ordem moral no universo e são argumentos práticos, não teóricos. O objetivo não é demonstrar a verdade ou a probabilidade da crença em Deus, mas fornecer razões práticas para acreditar em Deus. O argumento moral prático em Kant pode ser colocado da seguinte maneira: 

(1) Seria desmoralizante não acreditar que existe uma ordem moral do universo, pois então teríamos que considerar muito provável que a história do universo não será boa no geral, não importa o que nós fazemos. 

(2) A desmoralização é moralmente indesejável. 

(3) Portanto, há vantagem moral em acreditar que existe uma ordem do universo. 

(4) O teísmo fornece a teoria mais adequada de uma ordem moral do universo. 

(5) Portanto, há uma vantagem moral em aceitar o teísmo. 

Pode-se ressaltar dois problemas com esse argumento: (i) não podemos atribuir uma tendência desmoralizadora significativa à descrença em uma ordem moral no universo, pois existem pessoas que não acreditam nessa ordem e não demonstram sinais de desmoralização; (ii) é questionável o quanto a maioria das pessoas é influenciada por crenças ou expectativas sobre a história do universo como um todo; a crença de que podemos realizar algo significativo e bom para nossas coletividades imediatas pode ser suficiente para manter nossa motivação moral. 

Tanto a filosofia kantiana quanto o teísmo cristão sugerem que o verdadeiro interesse pessoal está em harmonia com a moral. Os argumentos práticos desse tipo individualista kantiano baseiam-se na ideia de que seria desmoralizador não acreditar nessa harmonia entre interesse próprio e virtude. A fim de obter um argumento mais plausível sobre a vantagem moral de acreditar nessa harmonia, devemos focar não nas questões mais grosseiras, mas nas sutilezas da desmoralização—não apenas na evitação do crime, mas nas dimensões mais elevadas da vida moral. É plausível supor que, para alcançarmos essa harmonia entre interesse próprio e dever, precisamos recorrer ao sobrenatural e, presumivelmente, a um agente virtuoso que seja enormemente poderoso e dotado de grande conhecimento. 

 

V. Santos 

 

São Francisco de Assis, Madre Teresa e Gandhi são exemplos de santos morais, embora difiram de como Susan Wolf define santos morais. Wolf estabelece três critérios para a santidade moral: (i) uma pessoa cuja cada ação é tão moralmente boa quanto possível; (ii) uma pessoa que é tão moralmente digna quanto pode ser; (iii) uma pessoa cuja vida é dominada por um compromisso de melhorar o bem-estar dos outros ou da sociedade como um todo.  

A santidade é um fenômeno essencialmente religioso, e mesmo um santo político como Gandhi viu sua poderosa preocupação humanitária no contexto de uma devoção mais abrangente a Deus. Isso toca o centro do argumento de Wolf e ajuda a explicar por que os verdadeiros santos são tão diferentes de sua imagem do santo moral. Sendo a santidade um fenômeno essencialmente religioso, é razoável buscar sua característica central (pelo menos para as religiões teístas) na relação do santo com Deus. Os santos são pessoas nas quais o sagrado ou o divino pode ser percebido. Em uma perspectiva religiosa, eles são indivíduos que se submetem, em fé, a Deus. O objeto máximo da devoção de um santo não é a moralidade, mas a piedade. 

Pode-se perguntar se todo mundo deveria ser um santo. Nem todos devem aspirar a ser um Gandhi, um Martin Luther King ou um São Francisco, mas pode ser precipitado concluir que ninguém deve aspirar à santidade. Talvez existam outras formas de se ser um santo. Gandhi, Martin Luther King e São Francisco exemplificam apenas certos tipos de santidade, e outros tipos podem ser compatíveis com diferentes excelências humanas, especialmente com uma grande variedade de excelências artísticas e intelectuais exigentes.  

 

VI. AMOR PURO 

 

Franlois Fenelon distingue três tipos básicos de amor a Deus: (i) amor meramente servil: amor, pelos dons de Deus, distintos dele, e não por ele mesmo; (ii) amor concupiscente: amor em que Deus é amado apenas como meio e instrumento de felicidade; (iii) caridade: amor a Deus por si mesmo. Há casos em que o amor de caridade pode aparecer mesclado com o amor concupiscente, consideremos, no entanto, apenas o caso da caridade pura ou amor puro. Esse estado de amor puro é chamado por Fenelon, seguindo São Francisco de Sales, de indiferença santa. O estado de amor puro é um de indiferença, pois, nesse estado, a alma é indiferente a todas as coisas criadas, e especificamente ao seu próprio bem, exceto na medida em que acredita que a vontade de Deus está envolvida. 

A característica mais dramática que define o estado de santa indiferença é o sacrifício da felicidade eterna. Fénelon enfatiza o aspecto condicional desse sacrifício, de que uma pessoa continuaria amando a Deus, se Deus o mandasse ao inferno sem perder o amor pelo condenado. Fénelon, no entanto, por vezes fala de um "sacrifício absoluto, ou seja, incondicional, do próprio interesse pessoal pela eternidade. No entanto, os argumentos considerados aqui não precisam se basear na doutrina do sacrifício absoluto, mas só do sacrifício condicional da felicidade eterna. A razão pela qual o sacrifício da salvação normalmente não pode ser incondicional é que os cristãos devem acreditar que Deus quer a sua salvação. Portanto, eles também devem desejá-la, não por interesse próprio, mas porque essa é a vontade de Deus. Se tudo o que alguém deseja como fim em si mesmo é que a vontade de Deus seja feita, essa pessoa se verá, volitivamente, como apenas mais uma pessoa, de modo que há aqui, como nas teorias éticas seculares, uma neutralização da importância especial da própria pessoa 

Pode-se objetar contra a visão de Fénelon que deve ser parte de desejar o que Deus deseja, que desejemos que nós mesmos amemos a Deus. Se parte do que devo desejar por si só é não apenas que a vontade de Deus seja feita, mas também que eu ame e obedeça a Deus, então parece que meu amor por Ele não deve ser completamente desinteressado. Deve haver um elemento de preocupação consigo mesmo nesse amor, uma vez que inclui o desejo de amar e obedecer a Deus como um fim em si mesmo, o que introduz um certo grau de autoconsideração. A posição de Fénelon pode ser modificada, com base na distinção entre preocupação consigo mesmo e interesse próprio, para torná-la consistente. Ele poderia dizer que o amor cristão deve estar completamente livre de desejo autointeressado, embora não completamente livre de preocupação consigo mesmo. Certos tipos de preocupação consigo mesmo ocupam um lugar importante na vida cristã; e o interesse próprio de fato também tem um papel ali. 

 

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