SOBRE A FÉ - ROBERT ADAMS (RESUMO)
O que se segue é um resumo da parte I do livro The Virtue of Faith and Other Essays in Philosophical Theology, intitulada “Faith” e que reúne os seguintes ensaios do autor: (1) A virtude da fé (The Virtue of Faith); (2) Os argumentos de Kierkegaard contra a razão objetiva na religião (Kierkegaard's Arguments Against Objective Reasoning in Religion); (3) O salto da fé (The Leap of Faith). É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.
1. A VIRTUDE DA FÉ
É uma característica proeminente e muito conhecida da tradição cristã que a fé é considerada uma virtude, e a descrença (pelo menos em muitos casos) é vista como um pecado. Isso é intrigante por duas razões: (1) Crença e descrença parecem ser estados principalmente involuntários, e costuma-se pensar que o involuntário não pode ser eticamente elogiado ou condenado. (2) Se a crença deve ser elogiada, estamos acostumados a pensar que seu valor depende de sua racionalidade. Muitas falhas cognitivas, embora não sejam voluntárias, são eticamente condenáveis, e há muitos casos em que é a correção, e não a racionalidade, que deve ser elogiada nas crenças.
Existem muitas falhas cognitivas que consideramos moralmente repreensíveis. Alguns exemplos incluem: acreditar que certas pessoas não possuem direitos que, na verdade, elas têm; perceber membros de um determinado grupo social como menos capazes do que realmente são; não perceber indícios dos sentimentos de outras pessoas; e ter uma opinião excessivamente elevada sobre as próprias conquistas. Essas falhas, em geral, não são voluntárias. Nem todas as falhas cognitivas são falhas morais; por exemplo, acreditar em algo incorreto na matemática não envolve uma questão moral. Sem pretender ser exaustivo, pode-se mencionar três tipos de erro cognitivo ou pecados cognitivos que são moralmente condenáveis:
(1) Crenças éticas falsas mesmo que não resultem em ação: crenças éticas falsas tendem a ser culpáveis, mesmo que não resultem em ações, por exemplo, se alguém acredita que não há problema em furtar, isso é moralmente condenável mesmo que a pessoa nunca furte por medo de ser pega. Isso não significa necessariamente que todas as crenças éticas falsas podem ser consideradas pecados;
(2) Crenças falsas prejudiciais resultadas de negligência: crenças falsas prejudiciais sobre qualquer assunto são culpáveis se forem resultado de negligência, ou seja, são moralmente condenáveis se mantidas porque negligenciamos realizar ações voluntárias que deveríamos ter feito e que teriam corrigido ou evitado o erro em nós.
(3) Crenças falsas que manifestam desejos maus: Crenças falsas e outras falhas cognitivas são, às vezes, moralmente condenáveis, pelo menos em parte, porque revelam desejos ruins ou más intenções que se manifestam nelas, indicando uma motivação má.
Muitas crenças moralmente ofensivas também são irracionais, mas não é por isso que são falhas éticas. Visões éticas corretas também podem ser mantidas de maneira irracional, e isso não necessariamente diminui o valor de alguém por sustentar essas crenças. Comumente, é mais importante que as crenças morais sejam corretas do que racionais. Quando elas estão erradas, podemos condená-las mesmo que não sejam irracionais. Pode, por exemplo, não ser possível provar que é irracional considerar o infanticídio como um método moralmente permissível de controle populacional, mas ainda assim parece que é errado ter essa crença.
Estamos acostumados a ver a racionalidade como a virtude intelectual suprema, mas há áreas da vida em que é moralmente ou, pelo menos, humanamente importante estar certo de uma maneira que não se explica apenas pela racionalidade. Por exemplo, a comunicação entre os seres humanos depende de adivinhar o significado do outro a partir de evidências fragmentárias. A crença que vai além das evidências é tão importante para confiar nas outras pessoas quanto para compreendê-las. O autoconhecimento é outra área em que é crucial acertar e a racionalidade por si só não é suficiente. É uma falha ética ser cego para os próprios defeitos. No entanto, a dificuldade em reconhecer os verdadeiros desejos e atitudes de alguém é frequentemente uma questão de cegueira, mais do que de irracionalidade. Isso também se aplica a convicções éticas e à fé religiosa. A racionalidade, por si só, não nos garante alcançar tudo o que deveríamos nessas áreas.
Na discussão sobre falhas cognitivas, a descrença também pode ser vista como um pecado. Podemos pensar na descrença de duas formas: (1) não acreditar em Deus quando Ele nos fala (ou seja, não acreditar no que Ele diz); e (2) não acreditar em Deus (seja não confiar Nele, não acreditar que Ele existe ou não acreditar em verdades importantes sobre Ele). O pecado da descrença sempre envolve a rejeição de algo que Deus disse ao pecador. Simplesmente não acreditar na existência de Deus não constitui o pecado da descrença, caso Deus nunca tenha falado com a pessoa. E é por meio do testemunho interno do Espírito Santo que Deus fala com uma pessoa.
A forma central do pecado da descrença na vida cristã não é a recusa de aceitar intelectualmente verdades teológicas, mas a falha em confiar nas verdades às quais já assentimos. Falhas cognitivas frequentemente devem sua natureza moralmente ofensiva, pelo menos em parte, a desejos ruins que se manifestam nelas. Podemos nos perguntar se a falta de confiança em Deus é pecaminosa devido a desejos pecaminosos que se refletem nessa falha. Essa é uma questão difícil. O emaranhado do pecado é uma confusão de medos e desejos que não conseguimos desvendar completamente. Por outro lado, pode ser que os desejos pecaminosos todos pressuponham uma falta ou fraqueza de confiança no amor a Deus. Assim, a questão do pecado da descrença não está principalmente no campo da discussão do assentimento intelectual a uma doutrina, mas da confiança em Deus. É nosso apego emocional à racionalidade que nos faz ver a questão da intelectualidade como o mais importante.
Nosso apego emocional à racionalidade está relacionado com o fato de contarmos com ela como uma parte crucial de nossas ferramentas intelectuais para controlar nossas vidas. Dependemos da racionalidade por pelo menos três razões: (1) para nos permitir saber para onde estamos indo ao planejar, formular estratégias ou seguir um capricho; (2) para nos orientar em como manipular situações e pessoas a fim de alcançar nossos objetivos; e (3) para nos fornecer julgamentos de probabilidades, permitindo que limitemos riscos e façamos investimentos emocionais nas áreas mais seguras e promissoras.
A maior ameaça ao nosso senso de controle, no entanto, é o próprio Deus. Na fé cristã, somos convidados a confiar em uma pessoa tão grandiosa que não podemos compreendê-la completamente. O desejo obsessivo por controle pressupõe uma falta de confiança em Deus. Talvez esses dois pecados se sustentem mutuamente, e nenhum deles seja absolutamente anterior ao outro. A oposição entre confiar e o desejo de controlar a própria vida está intimamente ligada à questão: qual é o valor da fé ou da confiança? A resposta que pensadores cristãos frequentemente dão é que, como nosso maior bem é estar em uma relação de amor com Deus, e como precisamos acreditar que Ele existe e nos ama para que essa relação seja possível, a fé em Deus é necessária para alcançarmos nosso maior bem. É certamente verdade que, da forma como o mundo está estruturado, precisamos ter fé em Deus para nos relacionarmos corretamente com Ele no presente. Mas por que isso deve ser assim?
A Bíblia fala de fé como confiar em Deus mesmo nas coisas que “não se veem”. Nesse sentido, parece que a fé é mais importante que a visão. Devemos confiar em Deus na escuridão. Saber tudo sobre o outro e como ele reagiria, abriria espaço para manipulá-lo, por isso, a fé e a confiança envolve não saber algo. É verdade que não necessariamente saber sobre o outro envolve manipulação, mas relações significativas envolvem cooperação. Deus nos exige a maior confiança, a aceitação da dependência mais completa e é a incerteza sobre o outro que dá um caráter pessoal às nossas relações. A relação com o outro, como diria Martin Buber, não é uma relação manipulativa Eu-Isto, mas uma relação Eu-Tu. Por mais extrema que seja nossa dependência de Deus, ela envolve mutualidade, Deus também se abre para ser influenciado por nós, o que é exemplificada pela prática da oração.
2. OS ARGUMENTOS DE KIERKGAARD CONTRA A RAZÃO OBJETIVA NA RELIGIÃO
Para Søren Kierkegaard, há algo na própria natureza da fé religiosa que torna inútil ou indesejável recorrer à razão objetiva para apoiar essa fé, mesmo que o raciocínio tenha uma plausibilidade considerável. Um raciocínio R é raciocínio objetivo se toda (ou quase toda) pessoa inteligente, imparcial e suficientemente informada considerar que R demonstra ou tende a demonstrar (nas circunstâncias em que é usado e na medida do que é reivindicado em R) que a conclusão de R é verdadeira ou provavelmente verdadeira.
Pode-se considerar três argumentos a favor da tese de Kierkegaard:
(1) Argumento da aproximação: O argumento da aproximação de Kierkegaard afirma que não é possível basear a felicidade eterna em raciocínios objetivos sobre fatos históricos, pois a maior certeza que podemos alcançar em relação a eventos históricos é apenas uma aproximação. Essa aproximação, sendo insuficiente para sustentar algo tão significativo quanto a felicidade eterna, resulta numa incompatibilidade. No entanto, Kierkegaard sustenta que é possível basear a felicidade eterna em uma crença nos fatos históricos, independente de evidências objetivas, e que essa é a exigência para ser cristão.
(2) Argumento do adiamento: A investigação histórica objetiva nunca é totalmente concluída, de modo que quem tenta fundamentar sua fé nela adia seu compromisso religioso indefinidamente. A primeira premissa deste argumento é que não se pode ter uma fé religiosa autêntica sem estar totalmente comprometido com ela. Para estar totalmente comprometido com uma crença, no sentido relevante, é necessário estar determinado a não a abandonar sob nenhuma circunstância que se reconheça como epistemicamente possível. A segunda premissa afirma que não se pode estar totalmente comprometido com uma crença baseada em uma investigação na qual se reconhece a possibilidade de uma futura revisão dos resultados. O compromisso total com qualquer crença dessa natureza será inevitavelmente adiado. A conclusão a ser tirada dessas duas premissas é que uma fé religiosa autêntica não pode ser fundamentada em uma investigação que admita a possibilidade de revisões futuras dos resultados.
(3) O Argumento da Paixão: Kierkegaard acredita que a fé religiosa deve ser baseada em um esforço intenso da vontade: uma busca apaixonada. A primeira premissa do argumento é que a característica mais essencial e valiosa da religiosidade é a paixão, uma paixão infinita, com a maior intensidade possível. A segunda premissa afirma que uma paixão infinita exige uma improbabilidade objetiva. Assim, a conclusão é que o que há de mais essencial e valioso na religiosidade depende da improbabilidade objetiva.
Ironicamente, as opiniões de Kierkegaard sobre a paixão religiosa sugerem uma maneira pela qual suas crenças religiosas poderiam ser baseadas em raciocínio objetivo — não em um raciocínio que demonstraria que elas são objetivamente prováveis, mas em um raciocínio que as mostra como objetivamente vantajosas. A visão de Kierkegaard pode levar a algo análogo à aposta de Pascal, segundo a qual seria mais vantajoso acreditar em Deus do que não acreditar.
Suponha que haja, objetivamente, alguma chance, por menor que seja, de que o Cristianismo seja verdadeiro. Existem duas possibilidades: ou o Cristianismo é verdadeiro, ou é falso. Se o Cristianismo for falso, é impossível para alguém alcançar S (um estado de coisas desejável), já que S inclui a verdade do Cristianismo. Apenas se o Cristianismo for verdadeiro é que qualquer ação de alguém pode ajudar ou impedir a obtenção de S. E se o cristianismo for verdadeiro, obter S dependerá de se tornar um verdadeiro crente cristão. Parece óbvio que aumentar as chances de se tornar um verdadeiro crente cristão seria uma vantagem, mesmo que a verdade das crenças cristãs seja objetivamente incerta ou improvável no momento. Portanto, parece vantajoso para qualquer um que deseje S, tanto a ponto de sacrificar tudo pela menor chance possível de obtê-lo, tornar-se um verdadeiro crente cristão agora. Assim, o argumento apresentado é um exemplo de raciocínio objetivo e, portanto, que a crença cristã é objetivamente vantajosa para quem deseja S.
3. O SALTO DE FÉ
Como considerado, o argumento da aproximação é o seguinte:
[1] A maior certeza alcançável em relação a qualquer evento histórico é apenas uma aproximação.
[2] E uma aproximação, quando vista como base para uma felicidade eterna, é completamente inadequada.
[3] Portanto, uma felicidade eterna não pode ser baseada em uma certeza (racional) sobre qualquer coisa histórica.
Uma primeira interpretação do argumento é:
(1a) O maior grau de justificativa que uma crença pode ter com base em raciocínio histórico objetivo é apenas uma aproximação da certeza (ou seja, uma probabilidade inferior a 100%).
(2a) Um grau de justificativa que apenas se aproxima da certeza é completamente inadequado como base para uma felicidade eterna.
(3a) Portanto, uma felicidade eterna não pode ser baseada em raciocínio histórico objetivo.
Nessa interpretação, uma objeção que pode ser levantada contra o argumento é que ele supõe erroneamente que a única boa razão para desconsiderar um risco de erro é que o risco seja muito pequeno para se preocupar. No entanto, alguém teria uma boa razão para desconsiderar um risco de erro grande, se ignorá-lo fosse a maneira mais provável de alcançar seus principais objetivos. Segundo o Argumento da Aproximação de Kierkegaard, pode ser racional para um aspirante a cristão ignorar uma chance de 30% de erro, se o raciocínio histórico objetivo mostrar uma probabilidade de 70% de que Jesus ressuscitou dos mortos.
No entanto, o argumento de Kierkegaard pode ser interpretado de uma outra maneira. A outra interpretação do Argumento da Aproximação considera que 'certeza' e 'aproximação', na formulação de Kierkegaard, se referem não ao grau de justificativa da crença em questão, mas à própria crença. Nessa leitura, a questão não é quão próxima a probabilidade da crença chega a 100%, mas quão próxima a crença está da convicção completa. Kierkegaard está certamente correto ao situar a fé religiosa nessa categoria de crenças para as quais 'provavelmente' não é suficiente. 'Provavelmente Jesus ressuscitou dos mortos' de fato não é uma afirmação de fé. Um "salto" da avaliação de probabilidade, por mais favorável que seja, para um tipo diferente de convicção é necessário.
Assim, uma segunda formulação do Argumento da Aproximação pode ser:
(1b) A crença mais forte que pode ser baseada em raciocínio histórico objetivo é uma probabilidade menor que 100%.
(2b) Qualquer probabilidade menor que 100% é totalmente inadequada como uma forma de fé religiosa e como base para uma felicidade eterna.
(3b) Portanto, uma felicidade eterna não pode ser baseada em raciocínio histórico objetivo.
Essa interpretação, entretanto, também está sujeita a uma objeção. O argumento assume erroneamente que, se o raciocínio histórico objetivo revela uma probabilidade de no máximo n por cento para uma proposição p, então a crença mais forte que tal raciocínio pode justificar é apenas uma probabilidade—como "provavelmente p" ou "quase certamente p". No entanto, isso está errado. Por exemplo, se o raciocínio histórico objetivo demonstra que é 98,5% provável que você tenha cometido um erro ético grave, isso não implica que a crença mais forte que você pode ter seria apenas "provavelmente eu cometi o erro". Pelo contrário, a importância moral da contrição pode justificar uma crença firme e incondicional, como "eu cometi o erro", mesmo com uma probabilidade inferior a 100%.
De forma semelhante, dada a natureza e a importância da fé religiosa, um raciocínio que estabelecesse uma alta probabilidade de que Deus ressuscitou Jesus dos mortos também poderia justificar a transição de uma atribuição de probabilidade para uma crença firme e incondicional na ressurreição de Jesus. Isso não nega que exista um "salto" envolvido nessa transição, da probabilidade para uma crença de uma natureza diferente. No entanto, esse salto poderia ser racionalmente justificado.
Talvez a segunda versão do Argumento da Aproximação possa ser defendida dessa objeção com outra interpretação. A expressão "baseado em" em (1b), ao invés de entendida como equivalente a "justificado por", no entanto, poderia ser interpretada de forma mais genética, como significando "alcançado por meio de". Essa interpretação, no entanto, não é muito plausível como está formulada. Isso porque é razoável supor que a fé religiosa envolve algo a mais, algo ainda mais difícil de ser alcançado por um processo de raciocínio. A afirmação "Provavelmente sim" não pode ser transformada em uma afirmação de fé apenas acrescentando "E, portanto, decidi agir resolutamente com base na suposição de que é verdade". O que ainda pode estar faltando em tal resolução é uma convicção profundamente sentida de que a proposição acreditada é verdadeira.
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