A ANATOMIA DA MENTE HUMANA SEGUNDO HUME
O objetivo deste texto consiste em apresentar a teoria de Hume sobre o entendimento humano, em especial como ele realiza uma anatomia da mente humana a partir de suas reflexões sobre a natureza das ideias e das percepções. Parte do texto deve ser creditado, além da minha autoria (Sunkey), a textos do meu amigo Ryan Pablo Batista Oliveira. O texto a seguir também foi construído a partir de trabalhos apresentados para a disciplina de Teoria do Conhecimento ministrada pelo professor Marcos Seneda no curso de Filosofia da UFU em 2024. O texto se divide nas seguintes partes:
I. Crítica de Hume aos sistemas
filosóficos anteriores;
II. A proposta de Hume de uma
anatomia da mente humana;
III. Tipos de percepções da mente e
suas relações;
IV. O papel da linguagem em Hume.
I.
CRÍTICA DE HUME AOS SISTEMAS FILOSÓFICOS ANTERIORES
Hume faz uma crítica à abordagem
anterior das investigações e ao estado atual dos sistemas filosóficos. Ele
observa que os pensadores tendem a estar excessivamente confiantes em seus
próprios sistemas, resultando em mais debates e desacordos do que consenso.
Essas disputas proliferam e obscurecem a verdade. Hume percebe facilmente a
fragilidade dos fundamentos mesmo dos sistemas mais aceitos. A confiança
excessiva é a principal motivação por trás dessas teorias. Isso o leva a ter
uma visão desfavorável da metafísica, que é frequentemente marcada por
investigações abstrusas e obscuras, que geralmente resultam em erros e ilusões.
Aqui Hume tem em mente diversos
sistemas metafísicos, como aqueles presentes nos racionalistas, desde Leibniz,
Descartes, Malebranche, entre outros. Os metafísicos diziam poder, pelo mero
usa da razão e sem recurso à experiência, encontrar verdades necessárias que
poderiam ser dadas à consciência por uma intuição intelectual pura ou pelo
acesso a ideias inatas. Tal pretensão, contudo, resultou em cada um dos
filósofos criando seus próprios sistemas, como a monodologia de Leibniz, o
sistema metafísico cartesiano ou o ocasionalismo de Malebranche. Cada um desses
sistemas se fundamentava em conceitos de coisas que não eram dadas na
experiência, como a substância, o ego puro, a alma ou a ideia de Deus.
Hume argumenta que, dado que todas
as disciplinas têm alguma relação com a natureza humana, compreender melhor
essa natureza é fundamental para o avanço das ciências. Até mesmo disciplinas
aparentemente distantes, como Matemática, filosofia da natureza e religião
natural, têm conexões com o ser humano, pois são os objetos pelos quais ele
busca compreender a realidade. Compreender a mente humana poderia, portanto,
auxiliar no desenvolvimento de todas as outras disciplinas, ajudando a
discernir questões pertinentes e evitando desperdício de tempo com assuntos
irrelevantes.
Disciplinas mais intimamente
relacionadas à natureza humana, como moral, política, crítica de arte e lógica,
teriam um entendimento aprimorado se baseado em uma compreensão mais profunda
da natureza humana. A lógica, em particular, está intrinsicamente ligada à
ciência humana e serve como ponto de partida para a investigação, desempenhando
um papel propedêutico e fornecendo a base para uma ciência empírica. Assim, a
lógica, na medida em que estuda as ideias e suas relações, pode ser considerada
uma propedêutica a uma ciência do entendimento humano.
A proposta de Hume é que, ao
tornarmos objeto de nosso próprio raciocínio, podemos melhorar nossa capacidade
de raciocinar. Ele argumenta que, para a filosofia e todas as ciências terem
sucesso, é crucial investigar a natureza humana. O filósofo oferece, assim,
duas razões adicionais para esse empreendimento: primeiro, todas as questões
relevantes estão contidas na ciência da natureza humana; segundo, nenhuma
questão relevante será bem compreendida sem uma análise prévia da natureza
humana.
Hume enfatiza, desse modo, que o
fundamento de todas as ciências deve ser um sistema completo baseado na
experiência e observação, evitando assim disputas e ideias obscuras. Ele
acreditava que essa abordagem metodológica para investigações humanas tem o
potencial de ser extremamente útil para a humanidade. Podemos ver nessa
abordagem uma teoria do significado.: algo só tem significado cognitivo na
medida em que é passível de ser verificado ou ser remontado às impressões
sensíveis. Essa tese requer um compromisso de qualquer teoria, que queira ser
substantiva e cognitivamente informativa, de se manter fiel à experiência.
Aquilo que não pode ser remontado às impressões é um contrassenso, pois carece
de conteúdo inteligível.
A filosofia que se lança a
especulações metafísicas obscuras sobre a natureza de Deus, da alma, do mundo,
da substância e da identidade do ego, já se perdeu desde o início. Isso porque
ela entrou em um labirinto de conceitos que não tem conteúdo impressional
correspondente, que não podem ser decompostos de modo inteligível em ideias
simples que, por sua vez, remontem às nossas impressões sensíveis. Os filósofos
que usam esses conceitos apenas usam nomes sem compreender de fato do que
falam, não porque aquilo que dizem é de difícil compreensão, mas porque aquilo
do qual falam é vazio de sentido. Um retorno à experiência e à observação deve
ser o lema de uma filosofia comprometida com uma teoria significativa.
Pode-se, para exemplificar a
diferença de Hume em relação a outros sistemas filosóficos, explicitar as
propostas de Descartes e Locke. Tanto Descartes quanto Locke oferecem
perspectivas distintas sobre essas questões, que se relacionam entre si e
influenciam nossa compreensão do conhecimento e das ciências. Locke, partindo
de uma abordagem empirista, argumenta que todas as ideias derivam da
experiência, seja através da sensação ou da reflexão. Por outro lado, Descartes
adota uma abordagem diferente, questionando a confiabilidade dos sentidos e
propondo a existência de ideias inatas como base para o conhecimento humano.
Embora se
diga de modo simplificado que para o empirismo todo conhecimento vem da
experiência e para o racionalismo há conhecimentos inatos, essa caracterização
não é completamente exata. Tanto racionalismo quando empirismo funcionam mais
como guarda-chuvas que incluem sob si diferentes filósofos com compreensões e
teses diversas. Talvez fosse mais correto dizer que, para os racionalistas,
certos fenômenos são dados à consciência para fins cognitivos de modo puramente
intelectual, embora possam ser despertados pelos sentidos. Assim, se alguém
defende que se pode ter uma intuição intelectual pura, ainda que ela seja
despertada pelos sentidos, podemos caracterizar tal proposta como racionalista.
Um racionalista pode, portanto, perfeitamente dizer que todo conhecimento começa
pela experiência. Por outro lado, a tese de que nada é dado à consciência para
fins cognitivos a não ser por meio dos sentidos, chamamos essa posição de
empirista. Alguém pode defender que a gênese de todo conhecimento é a
experiência sem ser empirista, como no caso de Kant, mas nesse caso certos
conhecimentos dependem, ainda, das formas puras da intuição sensível e das
categorias do entendimento.
Nesse
contexto, Descartes é um racionalista, para o qual certos conteúdos cognitivos
podem ser dados à consciência de modo a prescindir dos sentidos, sendo o caso
daquilo que conhecemos, por exemplo, por meio de ideias inatas, ainda que essas
ideias só possam ser despertadas pela experiência. Para Locke, por outro lado,
tudo o que se dá à consciência para fins cognitivos se fundamenta nos sentidos,
não havendo quaisquer ideias ou princípios inatos. Apesar disso, não é a noção
de ideias inatas que deve ser tomada como a marca que separa empirismo de
racionalismo. Um filósofo que defendesse que conhecemos certas coisas por meio
de uma intuição intelectual pura poderia ser classificado como racionalista,
ainda que não trabalhasse com a noção de ideias inatas, esse pode ser o caso de
Malebranche.
O cogito
cartesiano pode ser considerado um conteúdo cognitivo apreendido por meio de
uma intuição intelectual pura. De acordo com Descartes, o primeiro passo para
alcançar a verdade consiste em colocar sistematicamente em dúvida tudo aquilo
que não se mostra como certeza indubitável. Primeiro, podemos colocar em dúvida
as informações dos sentidos, na medida em que eles se mostram enganosos. Em
segundo lugar, como não temos como saber se estamos sonhando, não podemos ter
certeza da existência do mundo, nem do nosso corpo. Terceiro, visto que um
gênio maligno poderia estar nos enganando sobre as verdades mais simples e
certas, podemos colocar em dúvida até mesmo as verdades matemáticas. A única
certeza que não pode ser objeto de dúvida é a do “eu pensante”, já que não
posso duvidar que duvido.
A partir
dessa verdade autoevidente, podemos deduzir outras verdades. A primeira é a
existência de Deus. Enquanto substância finita, o eu nunca seria capaz de ser a
causa da ideia de uma substância infinita e infinitamente perfeita, visto que o
efeito não pode conter mais realidade que a causa. Portanto, somente Deus pode
ter causado a ideia de Deus e, visto que o espírito possui a ideia de Deus,
Deus existe. Dessa verdade deduzimos que podemos confiar em nossos sentidos e
em nossos outros conhecimentos. Visto que Deus é infinitamente perfeito, é
impossível que Ele esteja nos enganando. Graças a isso, a ciência humana não
está mais ameaçada pela falsidade. Assim, Descartes chega ao conhecimento do
cogito e de Deus de modo que prescinde aos sentidos.
Locke, por
sua vez, sustenta que todas as ideias têm origem na experiência, seja através
da sensação de objetos externos ou da reflexão sobre ideias internas. Ele
fundamenta sua tese observando não apenas a si mesmo, mas também crianças,
argumentando que as ideias se desenvolvem conforme a experiência. Locke entende
que todo nosso conhecimento é adquirido a partir de nossos sentidos, logo não
existem ideias com as quais a gente já nasceria. Isso vale também para os
princípios morais: não existe uma moralidade inata. Se os princípios morais
fossem inatos, eles não precisariam ser provados e todos os homens concordariam
sobre eles. Como este não é o caso, temos que concluir que nem as ideias, nem
os princípios morais são inatos.
Locke
define ideia como tudo aquilo que é objeto do entendimento quando o homem
pensa. Ele divide as ideias em dois grupos: (i) ideias simples: são
aquelas surgidas no entendimento diretamente a partir da experiência; (ii)
ideias complexas: são aquelas que surgem a partir da combinação de ideias
simples. As ideias são comunicadas por meio de palavras, que formam a
linguagem, cujos sinais são arbitrários. A percepção da relação entre as ideias
é no que consiste o conhecimento. Existem três tipos de conhecimento: (i)
intuitivo: percepção imediata da relação entre as ideias; (ii)
demonstrativo: quando a mente necessita de provas; (iii) sensitivo: percepção
que temos de objetos externos particulares.
Por fim,
Locke faz uma distinção de três áreas do conhecimento: (i) Física:
conhecimento das coisas como elas são em seus próprios seres; (ii) Prática:
trata daquilo que o homem deve fazer para a obtenção das coisas boas e úteis e;
(iii) Semiótica: trata dos meios pelos quais os conhecimentos da física e
da prática são apreendidos ou comunicados. Nesse sistema, portanto, nenhum conhecimento
prescinde da experiência e todo conhecimento pode ser remontado às nossas
ideias de sensação e de reflexão. Locke, contudo, adota uma espécie de realismo
ingênuo, supondo que as nossas ideias sensíveis correspondem aos objetos
externos.
Em
relação a Hume, suas ideias diferem das de Locke e Descartes em vários
aspectos. Ele rejeita a noção de causa para as impressões simples e sustenta
que toda ideia é uma cópia de uma impressão. Além disso, Hume questiona a
existência de objetos externos independentes da mente e argumenta que a ideia
de Deus é uma construção da mente humana baseada em atributos elevados dos
seres humanos. Quanto à ideia de substância, Hume discorda de Descartes,
argumentando que não há identidade para além das percepções singulares. Embora
Hume e Descartes tenham sistemas de pensamento distintos, suas ideias encontram
pontos de concordância e discordância em relação às perspectivas de Locke sobre
a origem das ideias e o fundamento do conhecimento e da ciência. Algo que é um
ponto comum entre os três autores é o conceito de ideia, que não é colocado em
questão. Apesar disso, Hume distingue entre ideias e impressões enquanto Locke
usa o termo ideia para se referir a todas as percepções da mente. Em Descartes,
há ideias inatas, adventícias e ficctícias, enquanto em Hume nem em Locke
existem ideias inatas.
II.
A PROPOSTA DE HUME DE UMA ANATOMIA DA MENTE HUMANA
No Abstract do seu Tratado
sobre a Natureza Humana, escrevendo como se fosse um outro comentador a
prefaciar o seu livro, Hume introduz sua própria obra e escreve sobre si mesmo
que ele tem a pretensão de fazer, de modo metodologicamente rigoroso, uma
anatomia da natureza humana. A partir disso, ele enuncia seu compromisso de
permanecer fiel à experiência e se ater somente àquilo que pode ser verificado
por meio da observação. Com isso, ele se aproxima da mesma proposta que deu a
Isaac Newton sucesso na Física. A autoridade deve ser dada, não aos grandes mestres
do passado, como os filósofos antigos, os escolásticos ou os modernos
racionalistas, mas sim à experiência. A autoridade final pertence à experiência
e ela deve ser o critério de todo significado cognitivamente relevante.
Com isso, Hume revela que a
investigação filosófica deve sempre ser orientada pela experiência e revela
ter, para a filosofia, a mesma pretensão epistêmica que Newton teve para a
Física. O que Hume propõe pode ser cunhado pelas expressões “filosofia experimental”
ou, se quisermos usar um termo que ele não usa, “empirismo”. Enquanto para as
filosofias racionalistas algo pode ser dado ao entendimento para fins
epistêmicos por um acesso intelectual puro, para o empirismo, todo conteúdo
dado à mente para fins cognitivos pode ser remontado à experiência. Se o
racionalista espera encontrar princípios racionais acessados por uma intelecção
pura que, embora possa até ser excitada por ideias adventícias (vindas da
experiência), nos coloca em contato com ideias cujo conteúdo cognitivo
prescinde à experiência, o empirista dá toda autoridade à experiência e relega
como misteriosa e obscura qualquer intuição intelectual pura.
Em sua crítica ao racionalismo e à
metafísica, podemos dizer que Hume reformula a noção de autoridade. Não é a
autoridade dos mestres do passado que deve ter a palavra final, pois, se assim
o fosse, a autoridade dos filósofos se interporia entre nós e a experiência.
Nesse sentido, a própria dissecação da mente humana, a sua anatomia, não pode
prescindir dos pressupostos de uma filosofia experimental. Não devemos pensar
ingenuamente que somos um ego sempre idêntico a si mesmo que funciona como
unidade sintética de nossas percepções, já que nada como um ego nesse sentido é
experimentado por nós. No feixe que é o fluxo de nossas experiências nenhum
núcleo articulador prévio à experiência se manifesta a nós. Uma filosofia do
entendimento humano que se queira fiel à experiência deve abandonar, pois, as
ideias de uma substância pensante, de um ego permanente ou de uma alma.
É preciso reconhecer, se conferimos
toda autoridade à experiência, que mesmo as chamadas faculdades da nossa mente
são constituídas pela experiência. É no próprio fluxo da experiência que nossa
sensibilidade, nosso entendimento, nossa memória e nossa imaginação se
constituem. A mente humana não pode ser mais pensada em uma anatomia fechada,
como se fôssemos uma espécie de um conjunto de caixas fechadas ou de sistemas
modulares, cada qual com sua operação própria, a trabalharem sobre os dados dos
sentidos. Nenhuma existência anterior à própria experiência deve ser dada às
ditas faculdades da alma. A origem do próprio entendimento humano está na
experiência. Não se deve pensar a mente como dotada de faculdades que formatam
a experiência e que funcionem como condições de possibilidade dela, antes é a
experiência que é a condição de possibilidade para as operações da mente.
III.
TIPOS DE PERCEPÇÕES DA MENTE E SUAS RELAÇÕES
No início de sua investigação sobre
a natureza humana, Hume ressalta que todas as percepções da mente podem ser
categorizadas em dois tipos distintos: ideias e impressões. Em um primeiro
momento, ele enuncia a relação entre ideias e impressões postulando o chamado princípio
da cópia, segundo o qual, todas as ideias são cópias de impressões. Essa
enunciação colocada assim é incompleta. Em seguida, o filósofo adicionará o
denominado princípio da distinção entre o simples e o complexo, segundo
o qual há ideias simples irredutíveis, como a ideia da cor azul, e ideias
complexas compostas por ideias simples, como a ideia de uma cidade ou uma
quimera. Desse modo, o princípio da cópia enunciado de modo mais preciso é o de
que todas as ideias simples são cópias de impressões simples.
A relação entre ideias e impressões
pode ser pensada em relação a três eixos: vivacidade, tempo e tipo de
percepção. Em relação à vivacidade, dizemos que as impressões são mais
vivas e intensas do que as ideias. Quanto ao tempo, a impressão está
relacionada ao presente imediato, enquanto as ideias se relacionam ou com o
passado (memória) ou com o futuro (presente). Quanto ao tipo de percepção,
as impressões estão relacionadas à sensação ou às paixões e as ideias ao
pensamento. Quando algo se apresenta à mente de forma intensa e vívida,
experimentamos uma impressão; por outro lado, quando lembramos ou concebemos
algo de forma menos intensa, tratamos de uma ideia. Dessa forma, a distinção
entre essas percepções está na forma como se manifestam na mente. Em relação às
impressões elas podem se originar tanto dos cinco sentidos quanto de nossas
paixões, estas últimas correspondendo ao que Locke denominava como ideias de
reflexão.
Após estabelecer essa distinção,
Hume argumenta que qualquer pessoa, desde que mentalmente saudável, reconhece
as capacidades de sentir e pensar, mesmo que em momentos de confusão, como
durante a loucura ou no sonho. Ele considera essa distinção evidente e
suficiente para iniciar a reflexão sobre a natureza humana. Além disso, como já
considerado, essas percepções podem ser classificadas como simples ou
complexas. As simples são aquelas que não podem ser decompostas em partes
menores, enquanto as complexas podem ser divididas em partes. Aliado ao
princípio da cópia, tal tese deve significar que não podemos ter ideia simples
daquilo que não temos impressão. O maior desafio a essa tese é dado pelo
problema da tonalidade de cor entre tonalidades diferentes de uma cor. Parece
razoável supor que uma pessoa seria capaz, conhecendo um tom de azul mais fraco
e outro mais forte, ter ideia, pela imaginação, de um tom de azul
intermediário. Esse experimento mental traz dificuldades ao chamado princípio
da cópia, já que a pessoa teria ideia simples de uma tonalidade de cor sem a
impressão correspondente.
Apesar dessa dificuldade, Hume
prossegue sua investigação sustentando sua tese de que toda ideia simples tem
sua origem em uma impressão e que toda impressão pode evocar uma ideia
correspondente. Por exemplo, a impressão do azul pode gerar a ideia dela em
nossa mente e a ideia de azul evoca a impressão correspondente. No entanto, o
filósofo nota que essa correspondência não se aplica necessariamente às ideias
complexas, as quais nem sempre correspondem a uma impressão complexa. Um
exemplo disso é a ideia de uma cidade celestial, como a nova Jerusalém do
Apocalipse, coberta de ouro, que não tem uma correspondência exata com qualquer
impressão, ou a cidade de Paris, da qual Hume teve uma impressão, mas não
consegue reproduzir essa complexidade como uma ideia. Isso nos lembra, pois,
que o princípio da cópia requer ser complementado pelo princípio do simples e
complexo.
Dessa forma, embora impressões e
ideias pareçam manter uma relação de similaridade uma à outra, essa relação nem
sempre é direta. Em relação às ideias simples, Hume sustenta firmemente que
todas têm uma impressão simples correspondente, isso deve se aplicar, como
considerado, às ideias que temos das diferentes cores. Ele desafia qualquer um
que negue isso a apresentar uma ideia simples que não tenha uma impressão
correspondente. Essa correspondência é considerada a prova de que as percepções
são mutuamente relacionadas. Portanto, ideias complexas que não têm uma
correspondência direta com impressões são compostas de ideias simples.
Se tenho a ideia de uma árvore, não
devo supor necessariamente que toda a ideia complexa de árvore corresponda a
uma única impressão. Posso ter formado a ideia de árvore a partir das ideias de
caule, folha, tronco, raízes etc. Contudo, as ideias simples com as quais
componho a ideia de árvore devem todas poder ser remontadas a impressões.
Algumas ideias carregam tanta complexidade que sua decomposição seria
impossível, como é a ideia da cidade de Paris. As ideias complexas podem se
referir tanto a coisas que geralmente tomamos como reais, como a ideia de uma
árvore, quanto a coisas que geralmente tomamos como fictícias, como a ideia de
uma quimera ou de um unicórnio. Mesmo as ideias complexas fictícias, contudo,
remontam, se decompostas, a ideias simples que, por sua vez, possuem uma
impressão correspondente.
Para concluir essa parte de sua
análise sobre as relações perceptivas, Hume sugere que existe uma dependência
entre impressões e ideias. Ele argumenta que, se pudermos determinar qual vem
primeiro, poderemos entender a relação de dependência entre elas. Hume defende
que as impressões precedem as ideias, oferecendo duas razões para isso.
Primeiro, ele ilustra que quando tentamos ensinar a uma criança o sabor de um
abacaxi, simplesmente oferecemos a fruta para que ela tenha a impressão e,
consequentemente, a ideia do sabor do abacaxi. Segundo, ele observa que uma
pessoa privada de um sentido não pode ter as ideias correspondentes a esse
sentido. Seria, por exemplo, impossível fazer um cego de nascença ter a ideia
da cor azul. Assim, fica evidente que as ideias dependem das impressões, ou
seja, nossas impressões são a causa de nossas ideias.
É importante considerar, por fim,
que as impressões são os limites para onde a teoria de Hume nos leva. Diferente
de John Locke, que adota uma espécie de realismo ingênuo, Hume é cético sobre a
realidade do mundo exterior. Não somos capazes de determinar a origem de nossas
impressões, nem se elas correspondem ou são cópias de algo externo. O homem
sábio deve se manter nos limites daquilo que é possível reconhecer, deve
reconhecer as fronteiras de seu próprio entendimento, precavendo-se de fazer
afirmações sobre o que não tem acesso. Portanto, o eixo de relação entre os
dois tipos de percepção, impressões e ideias, estabelece o limite seguro da
investigação sobre a natureza do entendimento humano.
Como considerado, o sistema de Hume,
as ideias são cópias de nossas impressões sensoriais. Ao observarmos a mente
humana, notamos que algumas impressões são mais fortes ou intensas do que
outras, e que algumas podem ser decompostas em partes, enquanto outras não.
Embora algumas ideias complexas não pareçam ter uma origem direta nas
impressões, a relação entre impressões simples e ideias simples sugere que as
impressões vêm primeiro e servem como base para a formação das ideias, como
cópias das impressões. Essa observação nos leva a reconhecer dois tipos de
percepções mentais, uma fundada na outra, e explica como ideias complexas podem
surgir da combinação de ideias simples através da imaginação. Essa compreensão
é fundamentada na observação e na experiência direta de nós mesmos.
No cerne
do sistema de Hume, portanto, está a ideia de que cada ideia tem uma
correspondência em uma impressão. Essa observação, contudo, precisa, como dito,
ser melhor qualificada dizendo que cada ideia simples é cópia de uma impressão
simples. Combinamos aqui, portanto, dois princípios: o princípio da cópia e o
princípio do simples e complexo. Hume, ao categorizar as percepções mentais em
ideias e impressões, subdivide, dessa forma, as ideias em simples e complexas.
As ideias simples são aquelas que não podem ser decompostas em partes, ao
contrário das ideias complexas, que consistem em múltiplos elementos. Por
exemplo, a cor, o sabor e o aroma são ideias simples que compõem a ideia
complexa de um abacaxi.
Hume
argumenta, assim, que as ideias são cópias das impressões, manifestando-se de
forma menos intensa na mente. Tanto ideias como impressões são percepções da
mente que não diferem em tipo, mas em intensidade. Ao desenvolver esse argumento, Hume observa
que nem todas as ideias complexas têm origem em impressões complexas e
vice-versa. No entanto, ele sustenta que há uma exceção: a concepção de ideias
simples. Qualquer impressão simples, como a da cor vermelha ou o aroma de um
abacaxi, necessariamente resulta em uma ideia simples correspondente. Embora
essa relação não possa ser completamente examinada, qualquer um poderia
verificar em si mesmo que não há a presença de uma impressão simples que não
tenha uma ideia correspondente, confirmando assim a validade dessa conexão.
Devemos encontrar, portanto, os
argumentos que sustentam as teses de Hume na experiência e observação. Se algo
é tomado como ponto de partida de seu método, é que devemos retornar sempre à
experiência. Não se busca autoridade nos antigos nem nos sistemas de grandes
filósofos, mas submete-se tudo à prova da observação. Cada um pode observar a
própria mente e poderá perceber nela a distinção entre essas ideias e suas
intensidades. Observando a própria mente, qualquer um é capaz de se dar conta
de que as ideias encontram lugar na mente através de diferentes graus de
vivacidade. É a partir dessa constatação, que podemos concluir que há na mente
humana dois tipos de percepções, que são as impressões e ideias. Vemos que as
percepções têm maior vivacidade se são presentes em tempo real, sendo derivadas
das sensações e das paixões. Essa diferença fica clara quando consideramos em
nossa mente a diferença, que qualquer um reconhece, entre sentir (impressões) e
pensar (ideias).
Quando
consideramos em nós mesmos as ideias complexas, vemos que nem todas elas têm
uma impressão correspondente. Isso a princípio poderia parecer um desafio ou
objeção ao sistema de Hume. Isso é resolvido quando vemos que é possível
decompor as ideias complexas em ideias simples e, então, encontrar para cada
ideia simples uma impressão correspondente. Desse modo, o princípio da cópia é
refinado e confirmado pela possibilidade de decomposicão. Podemos, também, usar
a imaginação para combinar ideias simples e formar novas ideias complexas.
Assim, vemos que as ideias complexas são constituídas pela junção de ideias
simples, como evidenciado pela capacidade da imaginação em compor ideias.
Podemos falar, assim, de um princípio da separabilidade, que consiste em
distinguir ideias e objetos por meio da imaginação.
IV.
O PAPEL DA LINGUAGEM EM HUME
A ideia central no sistema de Hume é
que cada ideia (simples) tem sua origem em uma impressão (simples)
correspondente. Ele argumenta que uma ideia é essencialmente uma versão menos
intensa de uma impressão, e que usamos a linguagem para comunicar essas ideias.
Essa perspectiva levanta uma questão linguística fundamental: podemos analisar
um termo com base na ideia associada a ele, remetendo à impressão que o
originou. Se um termo não puder ser relacionado a uma impressão, então ele
carece de sentido, pois não há uma ideia associada a ele. Desse modo, se uma
ideia simples tiver um conteúdo cognitivo significativo, então deve ser
possível remontar essa ideia a uma impressão simples. No caso das ideias
complexas, deve ser possível decompô-las em ideias simples e, por fim, remontar
cada ideia simples à impressão simples correspondente.
Do ponto
de vista linguístico, as ideias são representadas por palavras, que são signos
sensíveis dessas ideias. Como usamos termos gerais, pode parecer que
precisaríamos ter ideias gerais correspondentes. Locke interpretou que essas
ideias gerais seriam ideias abstratas que incluiriam o que há de universal em
um determinado conceito. Contra isso, Berkeley pontuou que ideias abstratas não
fazem sentido, dando o exemplo de que não poderíamos ter ideia de um triângulo
geral que fosse ao mesmo tempo isósceles, equilátero e escaleno. Hume está mais
próximo de Berkeley, ressaltando, contudo, que ao pensar em um termo geral,
pensamos em uma ideia particular que é geralmente representativa de determinada
classe.
A partir
de sua teoria, Hume propõe um método de verificação que descarta muitas
terminologias e conceitos metafísicos obscuros. Sua investigação do
entendimento humano revela porque usamos certos termos sem uma ideia
correspondente, embora pareçam ter sentido. Isso impõe limites ao pensamento
metafísico, como demonstrado pelo exemplo do termo “substância”. Os metafísicos
frequentemente usam esse termo para expressar várias ideias, mas Hume argumenta
que não podemos identificar nenhuma impressão que dê origem a essa ideia. Portanto,
de acordo com Hume, esse termo não possui o significado que comumente
atribuímos a ele, pois não está fundamentado em uma ideia e uma impressão
correspondente, revelando-se, assim, como um conceito vazio. Embora usemos esse
termo com frequência, uma análise cuidadosa mostra sua falta de sentido.
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