ÉTICA A NICÔMACO (RESENHA)

 

O texto a seguir consiste em uma resenha do livro “Ética a Nicômaco” de Aristóteles. A fim de trabalhar as noções desenvolvidas pelo filósofo nessa obra, esta resenha se subdivide nas seguintes partes:


I. A CADEIA DE SUBORDINAÇÃO DOS FINS

II. AS CARACTERÍSTICAS DA EUDAIMONIA

III. A EUDAIMONIA COMO ATIVIDADE RACIONAL EXCELENTE

IV. A DEFINIÇÃO DE VIRTUDE MORAL


Em sua obra “Ética a Nicômaco”, Aristóteles discute em que consiste a vida boa (Eudaimonia), considerando como ela envolve tanto a virtude moral como a intelectual. Para tanto, ele trabalha a relação entre a Eudaimonia e a aretê (virtude). Tendo em vista essa questão, ele considera qual é o tipo de atividade na qual a vida boa consiste e como tal atividade unifica as cadeias de subordinação dos fins. Para tanto, ele trabalha, ainda, o fato de que a vida boa envolve a atividade racional tanto da parte desiderativa quanto intelectiva da alma. 


I. A CADEIA DE SUBORDINAÇÃO DOS FINS


Aristóteles considera o modo como organizamos ou orientamos nossa vida de acordo com certos fins e que, esses fins estão subordinados a outros. Pode-se falar, assim, de uma cadeia de subordinação de fins na qual os fins subordinantes subordinam os fins subordinados. Entre esses fins, há aqueles que são “fins incompletos” (fins que são buscados em vista de outra coisa – instrumentos); “fins completos também buscados em vista de outra coisa” (fins que têm ao mesmo tempo um caráter intrínseco e extrínseco) e “fins completos sem mais” (fins que nunca são buscados em vista de outras coisas). Veremos que este último é, na verdade, um só e consiste naquilo que “nunca é buscado por causa de outra coisa” (EN, I.7, 1097a30).

Importa considerar, de todo modo, que há tanto fins instrumentais, aqueles que são sempre buscados em vista de outros fins, quanto fins constituintes, aqueles que são buscados em si mesmo e ao mesmo tempo em vista de outros fins. A riqueza exemplifica um fim instrumental na medida em que sempre é buscada em vista de outra coisa. Já a contemplação de uma obra de arte é um exemplo de um fim constituinte na medida em que, por exemplo, uma pessoa pode contemplar uma obra de arte pelo prazer da própria contemplação ao mesmo tempo em que o faz tendo em vista uma pesquisa acadêmica. 

Os fins subordinados se organizam em relação a certos fins subordinantes, construindo uma linha com diferentes pesos relativos. Assim, um fim “a” (exemplo: saúde) pode subordinar outros fins (a1: ir à academia; a2: ter uma boa alimentação; a3: fazer exames médicos periódicos; a4: fazer terapia etc.). Ademais, fins mantêm relações de subordinação no seguinte sentido: “alguém pode fazer x1 a fim de obter x2, fazer x2 a fim de obter X3 e assim por diante. Por exemplo, alguém pode trabalhar para conseguir dinheiro, conseguir dinheiro para colocar gasolina no carro, colocar gasolina no carro para ir até a academia, ir até a academia para ter saúde. Assim, um fim “a” subordina fins a1, a2, a3... an. Também posto de outo modo, um fim pode ser buscado em vista de outro fim em uma sucessão em que x1 é buscado em vista de x2, x2 em vista de x3...e xn em vista de xn+1.

Será, no entanto, que essa cadeia prossegue infinitamente? Isto é, será que devemos atribuir a “n” um valor infinito e esperar que a série na qual um fim é buscado em relação a outro nunca se encerre? Se esse for o caso, então não há um fim que seja buscado somente por si mesmo e jamais em vista de outro. A série de fins procederia infinitamente. Se não há uma razão final que orienta os fins intermediários, então o que se busca no final das contas não é nada, não há um telos final. Isso resultaria em nossas ações não terem uma razão final em direção a qual se movem, seria como um buscar indefinido que nada busca em última instância. É nesse sentido que Aristóteles pontua: 


Se há um fim das ações que queremos por ele mesmo, e queremos as coisas restantes por causa dele e nem tudo escolhemos devido a outra coisa (pois, assim se prosseguiria ao infinito, de modo que o desejo seria vazio, isto é, vão), é claro que este seria o bem, isto é, o melhor. (EN, I.2, 1094a19)


A validade desse argumento tem sido motivo de debates, sendo que alguns acusam Aristóteles de cometer uma falácia de inversão dos quantificadores, também denominada como falácia do menino e da menina. Essa falácia supõe que, se cada elemento de um conjunto “X” mantém uma relação “r” com algum “y”, então todos os elementos do conjunto X mantêm a mesma relação “r” com o mesmo “y”, por exemplo: “Todo menino (elemento do conjunto X) ama (relação r) uma menina (algum y), logo, todos os meninos (todos os elementos do conjunto X) amam (relação r) a mesma menina (o mesmo y)”. De modo similar, o argumento aristotélico estaria dizendo que “se cada ação (cada elemento do conjunto X) tem (relação r) um fim (algum y), logo, todas as ações (todos os elementos do conjunto X) têm (Relação r) o mesmo fim (o mesmo y)”. Desse modo: “Na falácia da inversão dos quantificadores é realizada uma passagem interdita entre um conjunto de relações dispersas de fins para um conjunto de relações convergentes para um único fim” (BIN, 2018, p.15).

No entanto, essa acusação parece não levar em conta o condicional “Se”. O argumento não é que, tendo cada ação um fim, deve haver um mesmo fim para todas as ações. Na verdade, o argumento é que se não há um fim para a qual todas as ações convergem então nosso desejo seria vazio e sem sentido. Outro modo também de colocar isso é que se há um fim para o qual todas as ações convergem então esse fim é o melhor. O argumento pode, pois, ser colocado como: A: “Há um fim universal”; B: “Há algo que nunca é escolhido em razão de outra coisa”; C: “Nosso desejo seria vazio e sem sentido”; D: “O bem completo seria o melhor”. Temos, pois:


1. Se não-B, então C 

2. Se A e B

3. Então D


Portanto, como considera Peter Vranas (2005, p.116): “Aristóteles usa B juntamente com A para inferir a validade de que há um fim universal não-instrumental, e, portanto, único (logo, D)” (tradução minha, grifos do autor). O argumento é composto, pois, de duas partes “Se não-B, então C” e “Se A e B, então D”. Nesse modelo, alguns ainda veem essa formulação problemática, objetando que não-B não implica necessariamente C. De qualquer modo, se não há um fim para o qual convergem todas as ações, nada interrompe as cadeias de subordinação. 

Consideremos, por exemplo, uma série de cadeias A, B, C e D, em que A, B, C e D são fins subordinantes como saúde, vida, social, riqueza e honra e cada um desses fins subordina outros fins tal qual “A” subordina “a1, a2, a3, a4 ... an" ; “B” subordina “b1, b2, b3...bn”; “C” subordina “c1, c2, c3... cn” e assim por diante. Se não há um fim último (chamemos de T) que encerra as cadeias de subordinação, então não há nada que unifique as cadeias A, B, C e D. Ademais, se o fim T fosse buscado em razão de outro fim e esse fim fosse buscado em razão de outro e assim infinitamente, então nosso desejo seria vazio e vão. Para evitar, pois, tanto a consequência de ausência de unificação e de um fim que dê sentido ao nosso desejo, então somos levados a afirmar um fim T que nunca é buscado em razão de outra coisa. 



II. AS CARACTERÍSTICAS DA EUDAIMONIA 


O bem que é buscado por si mesmo e que jamais é buscado em razão de outra coisa é a eudaimonia. No entanto, Aristóteles considera que embora as pessoas concordem em como denominar esse bem ou fim, elas divergem sobre no que ele consiste: “Embora talvez pareça haver um acordo quando se diz que a realização plena [eudaimonia] é o melhor, ainda é manifestamente requerido dizer o que ela é” (EN, I.7, 1097b22). Daí que é preciso colocar a questão sobre em que consiste esse bem, dado que muitas pessoas o tomam como o prazer, a honra, a saúde, a riqueza, a ideia platônica de bem, entre outros.

Dois entre os candidatos considerados por Aristóteles são a vida de prazer e a vida política. Quanto à vida de prazer, ele considera que ela não pode ser esse fim porque uma pessoa que vive em função dos prazeres imediatos não é capaz de ordenar sua vida de modo relevante, isto é, de modo que saiba orientar seus fins conforme seus pesos relativos. Quanto à vida política, Aristóteles considera que ela não pode ser considerada esse fim, porque ela está relacionada à honra (reconhecimento público), que não depende da própria pessoa. A eudaimonia mantém, no entanto, alguma relação com a vida contemplativa (teorética), como será considerado mais adiante. 

Para identificar a eudaimonia é preciso considerar suas características. Aristóteles elenca três características da eudaimonia. A primeira é a completude, isto é, a eudaimonia é um bem de valor intrínseco na medida em que é sempre buscada em razão de si mesma e nunca por outra coisa, Assim, designamos completude como a relação em que, “dado um fim A, ele é mais completo que um fim B, se B é buscado em vista de A”. Eudaimonia é um bem completo porque é o fim em relação ao qual tudo é, em última instância, buscado. A segunda característica da eudaimonia é a autossuficiência, significando que a realização plena faz a vida ser elegível de tal forma que nada falte para que tal vida seja boa. A terceira característica diz respeito ao fato de que a eudaimonia não é contada entre outros bens, o que requer uma consideração mais detida: “A realização plena [eudaimonia], que é o acabamento das ações realizáveis, parece ser, portanto, algo completo e autossuficiente.” (EN, I.7, 1097B6)

A afirmação aristotélica de que a eudaimonia é um bem não contado entre outros tem gerado intepretações diversas. De um lado, há a interpretação inclusivista da eudaimonia, segundo a qual a eudaimonia é um bem de segunda ordem que inclui bens de primeira ordem. Desse modo, a eudaimonia pode ser compreendida como um conjunto de bens T que inclui outros bens, tal que T: {saúde, riqueza, amizade, prazer..., honra}.  Do outro lado, há a interpretação exclusivista, para a qual a eudaimonia é outro bem, um bem específico, que supera todos os demais bens em dignidade, consistindo na vida contemplativa:


O texto de Aristóteles parece oscilar entre uma versão em que ela seria o bem supremo de natureza inclusiva, de modo que a eudaimonia operaria como uma noção de segunda ordem, caracterizando o modo harmônico e ordenado de agir segundo as mais diversas virtudes morais, e uma versão segundo a qual a eudaimonia seria não a atividade harmônica de todas as virtudes, mas a atividade segundo uma só dentre elas, a virtude intelectual da contemplação, vista assim como um bem supremo dominante ou monolítico (ZINGANO, 2017, p.10)

A interpretação exclusivista não explica adequadamente a importância dada por Aristóteles às virtudes morais. Ainda que o autor, no livro X, afirme que a vida contemplativa é a mais relevante, isso pode ser entendido no sentido de que tal vida tem maior importância entre os demais bens que compõem o conjunto inclusivo da eudaimonia. Ademais, é importante considerar que não é qualquer coisa que entra no conjunto de bens da eudaimonia. Não se trata, ainda, de uma mera soma de bens, antes esses bens encontram-se estruturados de uma determinada forma segundo certos critérios de organização.


III. A EUDAIMONIA COMO ATIVIDADE RACIONAL EXCELENTE


Para desenvolver melhor em que tipo de atividade a eudaimonia consiste, Aristóteles apresenta o “argumento da função” ou “argumento do ergon.” Tal argumento parte do princípio de que a função é dada pela natureza essencial de algo, considerando “bem” como quando algo realiza sua função e “boa condição” como a coisa em seu melhor estado. Nesse caso, o filósofo se pergunta por qual é a função característica do humano. Dado que se considera o que é específico do homem, as operações das partes vegetativa e animal da alma, como crescimento, nutrição e sensação, não podem ser entendidas como funções características do ser humano. Aquilo que caracteriza o ser humano enquanto humano é atividade da parte racional de sua alma. Desse modo, o argumento da função pode ser colocado como se segue:


1. O melhor estado de algo é o desenvolvimento de sua função de modo excelente;

2. A função do ser humano consiste na atividade racional;

3. Assim, o melhor estado do ser humano é a atividade racional excelente;

4. A eudaimonia é o melhor estado do ser humano;

5. Logo, a eudaimonia consiste na atividade racional excelente.


Aristóteles considera, entretanto, duas partes da razão: aquela que pensa e aquela que obedece. A parte que pensa diz respeito ao intelecto, tanto prático quanto teórico, e a que obedece diz respeito às afecções e desejos (parte desiderativa). O exercício de uma atividade do melhor modo se dá pela excelência (areté). A virtude ou areté é, pois, a qualidade de algo em cumprir bem sua função. Tanto o obedecer quanto o pensar podem ser realizados com excelência, daí que cada parte da alma racional possui uma virtude relacionada. A virtude relacionada com a parte que obedece é a virtude moral, enquanto a virtude relacionada com a parte intelectiva é a virtude intelectual. Assim, Aristóteles define eudaimonia como: “a atividade da alma de acordo com a excelência” (EN, I.7, 1908a7).

A eudaimonia consiste, pois, na atividade da alma racional de acordo com a excelência (areté) tanto moral como intelectual. Entre as virtudes intelectuais podem ser distinguidas aquelas relacionadas à atividade teórica (sophia) e à atividade prática (phronesis). A atividade teórica supera as demais em dignidade, pois nos aproxima mais de Deus, aquele que sempre pensa a si mesmo. Por isso, a vida contemplativa ou teorética é a que mais aproxima o ser humano de Deus. Há eudaimonia tanto na vida dedicada às virtudes intelectuais quanto na dedicada às virtudes morais, no entanto, a vida contemplativa é mais digna.

Por fim, Aristóteles considera que a virtude é resultada do hábito, que consiste em sentir e desejar corretamente. O hábito é o processo inicial de formação da virtude, constituindo afecções e desejos corretos apropriados ante o que cada situação exige. O filósofo observa, ainda, que “nenhuma virtude moral se engendra em nós por natureza” (EN, II.1, 1103a18). Assim, a virtude não decorre de uma tendência significativa de nossa natureza para a ação virtuosa. É o hábito que origina as virtudes e as aperfeiçoa. O hábito possibilita a formação da héxis (disposição, habilitação), que é o estado de estar em posse de uma da competência moral: “é preciso que as atividades exprimam certas qualidades, pois as disposições seguem as diferenças das atividades” (EN, II.1, 1103b23).

A pessoa virtuosa é aquela que sente prazer em agir bem. Tanto aqueles que querem fazer o bem, mas não o fazem (acrasia/incontinência), quanto aqueles que fazem o bem, mas em parte não querem (encrasia/continência) não podem ser designados propriamente como pessoas virtuosas. A aquisição da virtude envolve a superação do conflito moral. Por fim, é importante dizer que a Ética aristotélica não oferece um conjunto de prescrições sobre o que deve ser feito, não impõe regras a serem obedecidas em todas as situações simulares. Ao invés disso, ela propõe o cultivo de nossos hábitos para que tenhamos uma competência moral de sabermos como reagir em cada situação, de acordo com as especificidades que cada caso demanda.


IV. A DEFINIÇÃO DE VIRTUDE MORAL


A Virtude moral pode ser definida como uma disposição (héxis) para escolher por deliberação (prohairesis), consistindo em uma medianidade (mesotés) em relação a nós que é determinada pela razão de acordo com a sensatez (phronesis), conforme definição que aparece na Ética a Nicômaco II.6 1106b36 - 1107a2. Desse modo, a prudência ou sensatez (phronesis), que é a virtude intelectual prática, está inclusa na própria definição de virtude moral. A princípio, a definição de virtude moral envolve, pois, os seguintes elementos: (i) a disposição (héxis); (ii) a medianidade (mesotés); (iii) a escolha por deliberação (prohairesis) e; (iv) a sensatez (phronesis). É importante, pois, analisar cada um desses elementos com cuidado. 

Consideremos, pois, em primeiro lugar, a disposição (héxis) como elemento presente na definição de virtude moral. Podemos entender a disposição, como já considerado, como uma habilitação que consiste em estar de posse de certa competência boa resultante do hábito. De acordo com Lucas Angioni (2011), quando Aristóteles emprega o termo héxis, ele tem em mente tanto uma disposição que é interna ao agente quanto certa capacidade para agir de um modo. Em relação à disposição interna, a héxis significa que a pessoa habilitada reage com as emoções e desejos apropriados que cada situação requer. Quanto à capacidade, ela diz respeito “a uma capacidade de agir sedimentada no agente pela prática habitual das mesmas ações que caem sob o domínio dessa capacidade.” (ANGIONI, 2011, p. 307). Portanto, a héxis é uma disposição para sentir e desejar apropriadamente, bem como uma habilitação para agir corretamente. 

O segundo elemento da definição de virtude moral é o de medianidade (mesotés), também traduzida como “mediania” ou “mediedade”. A mesotés pode ser entendida como a medida ou proporção correta dos desejos que geram ações, estando relacionada com a reta razão. Ela consiste naquilo que garante a melhor condição de nossas ações. A mediedade não deve ser pensada como uma média aritmética universal que serve de parâmetro absoluto para todos os casos. Não se trata daquilo que está no meio como a média e que poderia ser calculada como uma regra que se aplica com uma certeza matemática. A Ética não tem condições de dar regras absolutas para cada caso, de modo que não é possível esperar dela uma precisão absoluta, como aquela presente nas ciências exatas. Por isso, a mediania requer uma disposição que torna a pessoa sensível a cada caso. Em relação a essa imprecisão, Marco Zingano (2008, p.25) observa que “O mundo moral é, assim, permanentemente opaco, um mundo no qual jamais se fará plena luz”.

Pode-se compreender a mediania tendo em mente que ela é aquilo que se encontra entre a falta e o excesso, como a coragem que está entre os vícios da covardia e o da temeridade; ou a temperança que está entre a insensibilidade e a intemperança. É importante considerar, entretanto, que há ações que não são suscetíveis de excesso e falta. Por exemplo, não se deve encontrar uma medida em que a tortura ou estupro podem ser feitos sem excesso. Ações desse tipo são sempre más e não há medida em que possam ser praticadas. Quando Aristóteles fala da mediania, deve-se, portanto, entender que isso se limita ao caso de ações que são suscetíveis a excesso e falta, assim: “a virtude moral é um meio termo, como o é, que é um meio termo entre dois males, um pelo excesso e outro pela falta, que é tal por mirar o meio termo nas emoções e nas ações” (EN, II.9, 1109a20).  

O terceiro elemento presente na definição de virtude moral é a escolha por deliberação (prohairesis), também traduzida como “propósito” ou “decisão”. Trata-se de um termo importante que implica que a responsabilidade moral pertence ao campo da ação voluntária. Para tanto, é preciso discutir o que distingue uma ação voluntária de uma ação involuntária. Conforme considerado em EN III.1, 11109b35, ações involuntárias podem ser de dois tipos: (i) ação involuntária realizada por força: é aquela que tem uma causa externa que não está sob o poder do agente, isto é, que é resultante de coação; (ii) ação involuntária realizada por ignorância: é aquela ação que gera arrependimento dado que a pessoa não teria agido assim se soubesse do que realmente se tratava a ação. Assim, pode-se definir a ação involuntária como aquela em relação a qual o agente não tem responsabilidade, de modo que não lhe cabe nem elogio nem censura. 

Aristóteles, em EN III.2, 1110b25,  faz uma distinção entre ações feitas por ignorância de ações feitas em ignorância. No caso da primeira, a pessoa não é responsável, já que age de modo involuntário, enquanto no caso da segunda há responsabilidade moral. Como considerada, a ação por ignorância é aquela que gera arrependimento e em relação à qual a pessoa teria agido de modo diferente caso soubesse o que é o caso. A ação feita em ignorância, por outro lado, diz respeito aos casos em que o agente sabia que entraria em um estado de ignorância, um exemplo disso é a embriaguez e o que geralmente se denomina como “dolo eventual”. Aristóteles fala, ainda, da ação não-voluntária que, embora não gere responsabilidade moral, revela algo sobre o caráter do agente. Trata-se de um tipo de ação na qual a pessoa faz sem saber o que realmente é o caso, mas que, depois, não gera arrependimento. Nesse caso, a pessoa faz algo imoral sem saber do que se trata no momento, mas quando descobre do que se tratava, sente prazer por ter agido assim. 

A ação voluntária, por sua vez, precisa envolver necessariamente dois elementos: um princípio interno e o conhecimento da ação. O princípio interno diz respeito ao fato de que a causa da ação é interna ao sujeito, de modo que ele tem controle sobre a ação. Já o conhecimento da ação refere-se ao fato de que o agente conhece as circunstâncias de seu agir. Conforme observa Fernando Mendonça (2011, p.11): “Um ato é voluntário quando:  i- o agente tem o princípio da ação interno e; ii- se ele atua com conhecimento de sua ação.” Em outro artigo, ele também observa que esse conhecimento envolve uma percepção adequada das circunstâncias da ação, algo que também será considerado quando tratarmos da sensatez. Ele observa: “É requisito para a ação voluntária que o agente tenha conhecimento dos elementos particulares da ação, tais como: que ele mesmo é quem age, o instrumento com que faz a ação, quem sofre a ação, etc.” (MENDONÇA, 2014, p. 87) 

É possível falar ainda de “ações mistas”, que podem ser consideradas tanto voluntárias como involuntárias a depender do modo como é descrita. Isso pode ser ilustrado pelas ações feitas em vista do menor mal. Por exemplo, o tripulante de uma embarcação pode precisar jogar a carga ao mar para salvar uma tripulação em uma tempestade. Essa mesma ação pode ser descrita de dois modos d1: “jogar a carga ao mar” e d2: “salvar a tripulação”, em d1 tem-se a descrição de uma ação involuntária que é um mal menor, enquanto em d2 tem-se a descrição de uma ação voluntária que é moralmente boa. No entanto, as duas descrições cobrem, na prática, a mesma ação que, por isso, pode ser considerada mista. Sobre as ações mistas, Aristóteles observa:


Age voluntariamente, pois o princípio do movimentar os membros do corpo em tais ações reside no próprio agente; estão no poder do agente fazer ou não fazer as ações cujo princípio reside nele próprio. Tais ações são, então, voluntárias, mas absolutamente, presumivelmente, são involuntárias, pois ninguém escolheria quaisquer destes atos por si mesmos (EN III.1 1110a11-19)   


Portanto, tais ações são, de um lado, mistas; de outro, assemelham-se mais às voluntárias, pois são escolhidas no momento em que são praticadas, e o fim da ação se dá conforme a ocasião. 

Entendido o que é a ação voluntária em distinção às involuntárias, podemos ter em mente o domínio da responsabilidade moral. A ação moralmente boa é feita como resultado de uma escolha deliberada, daí que podemos falar da prohairesis. A prohairesis pode ser entendida como um processo pelo qual é determinado o melhor modo de agir por um cálculo eletivo que precede a ação. Aristóteles pensa a prohairesis como um desejo, ou ao menos como aquilo que é acompanhado de um desejo. Pode-se definir “desejo” como certo tipo de estado mental que nos move a agir de um determinado modo. Sem um impulso que move a ação, não há ação. Não é suficiente um cálculo racional para que se produza uma ação. A ação requer um conteúdo conativo ou orético a fim de ser produzida. 

Se a prohairesis é um desejo, é preciso se questionar que tipo de desejo ela é. De acordo com Aristóteles, podemos identificar três tipos de desejo (oréxis): (i) apetite (epithymia): diz respeito aos desejos sensuais do paladar e do sexo; (ii) impulso (thymos): diz respeito ao desejo de preservar a vida diante de perigos; (iii) querer (boulesis): diz respeito a um tipo de desejo que envolve capacidades racionais complexos. Impulso e apetite são desejos também presentes nos animais, enquanto o querer é um tipo de desejo exclusivamente humano. Dado isso, a prohairesis é caracterizada pela boulesis. É importante considerar que, em Aristóteles, desejo e cognição não são pensados em oposição. Como já considerado, a cognição sem o desejo não é capaz de mover a ação, de modo similar, todo desejo humano envolve cognição, pois desejamos aquilo que conhecemos e julgamos bom. 

O cálculo deliberativo presente na prohairesis envolve tomar um fim realizável e especificar o que é preciso ser feito para alcançá-lo. Desse modo, a prohairesis diz respeito mais especificamente ao que promove um fim, e não propriamente ao fim. Desse modo, embora Aristóteles considere a prohairesis um desejo ou algo acompanhado por desejo, ela não se identifica completamente com o querer. O querer diz respeito ao fim, a prohairesis ao que o promove; o querer pode direcionar-se a coisas impossíveis, enquanto a prohairesis diz respeito apenas àquilo que é alcançável. Podemos colocar, então, que a prohairesis envolve tanto calcular o que fazer quanto desejar fazer o que foi calculado. 

Outro termo que se relaciona com a prhairesis, é a “bouleusis”, palavra que pode ser traduzida como “deliberação”. A deliberação pertence ao mesmo campo da prohairesis, pois consiste em deliberar sobre como alcançar um desejo que está em nosso poder ou controle. Podemos entender que a prohairesis é o desejo sobre o que a boulesis calcula como aquilo que deve ser feito para se alcançar um determinado fim. A boulesis pode ser entendida como a atividade da razão prática. A razão é capaz de determinar os meios para se alcançar um fim, mas é importante considerar que ela não coloca o fim. O fim é determinado pelo desejo e nós não possuímos controle direto sobre os nossos desejos. 

O quinto elemento presente na definição de virtude moral é a phronesis, que pode ser traduzida como “prudência”, “sabedoria prática” ou “sensatez”. Para entendê-la, é preciso ter em mente que a parte da alma que possui razões pode ser subdividida em duas subpartes, a parte científica e a parte calculativa. A parte científica é aquela que diz respeito às explicações por meio de princípios que não podem ser de outro modo. A virtude relacionada com essa parte é a sophia, que consiste na excelência de dar explicações sobre os fatos. Já a parte calculativa, também denominada de deliberativa, é aquela à qual cabe determinar modos de se alcançar algo. A phronesis é justamente a virtude relacionada à parte deliberativa, podendo ser entendida, assim, como a excelência em deliberar bem. 

O bom deliberar delibera sobre o que é melhor para o ser humano, isto é, a eudaimonia (vida boa). Trata-se, pois, de calcular modos de alcançar um fim de acordo com o plano maior que é a realização plena. Deliberar bem requer uma compreensão apropriada dos particulares, de modo que é preciso saber o que é apropriado conforme cada circunstância. Destarte, não é suficiente que o agente seja capaz de deliberar, é preciso que ele tenha uma percepção apropriada da realidade. É preciso, pois, que o agente compreenda bem a circunstância na qual se encontra inserido. Portanto, a phronesis envolve tanto deliberar de forma acertada sobre como promove fins quanto uma percepção adequada dos particulares. Aquele que sabe deliberar com prudência, Aristóteles denomina como “phronimos” (o prudente). 

O “phronimos” está incluso na definição aristotélica de virtude moral. Há uma relação de interdependência entre virtude moral e prudência. De um lado, a virtude moral estabelece o fim a ser desejado e sobre o qual o prudente deliberada, de outro, o prudente delibera sobre como agir de forma moralmente apropriada. Assim, podemos entender, combinando os cinco elementos analisados, que a virtude moral diz respeito a uma disposição de nossos desejos, aprendida por hábito, e que nos habilita para fazer escolhas em conformidade com a mediania, que é determinada pelo prudente, isto é, aquele que é capaz de deliberar bem ante uma avaliação adequada das circunstâncias. 


REFERÊNCIAS


ANGIONI, Lucas. Phronesis e virtude do caráter em Aristóteles: comentários a Ética a Nicômaco VI 1.  Dissertatio [34] 303 – 345, 2011. 


EN: ARISTÓTELES. EN – Ética a Nicômaco.


BIN, Adriano Sotero. A Phronêsis na Ética a Nicômaco, Dissertação de Mestrado (Filosofia). Brasília: Universidade Federal de Brasília, 2018.


MENDONÇA, Fernando.  A responsabilidade moral pela ação e pelo caráter em Aristóteles. Horizonte científico, vol. 5, n.1, 2011. 


MENDONÇA, Fernando. Aristóteles e a refutação do intelectualismo socrático na explicação da acrasia em EN VII 1-3. Philósophos, Goiânia, v.19, n.2, pp. 69-109, 2014.  


VRANAS, Peter B. M.  Aristotle on the Best Good: Is ‘Nicomachean Ethics’ 1094a18-22 Fallacious?  Phronesis, vol. 50, no. 2, 2005, pp. 116–28. 


ZINGANO, Marco. Ethica Nichomachea I 13-III 8: Tratado da virtude moral. São Paulo: Odysseus Editora, 2008. 

ZINGANO, Marco. Eudaimonia, Razão e Contemplação na Ética Aristotélica. ANALYTICA, Rio de Janeiro, vol 21 nº 1, 2017, p. 9-46

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