A TEORIA DAS PAIXÕES HUMANAS E A PASSAGEM DO ESTADO NATURAL PARA O ESTADO CIVIL EM THOMAS HOBBES

 

1. Introdução

 

Thomas Hobbes pode ser considerado, em certo sentido, um anti-aristotélico. De acordo com Aristóteles (1985), os seres humanos organizam-se politicamente porque eles são animais políticos por natureza. Hobbes, por outro lado, considerada a política como uma construção artificial que se constitui justamente pela superação do estado de natureza. No entanto, mesmo a natureza é concebida de modo distinto de como o é no aristotelismo. Para Aristóteles, o mundo e seu movimento é eterno e há uma hierarquia metafísica em que certas coisas são naturalmente superiores em relação a outra. Em Hobbes (1983), ao contrário, a própria natureza tem uma certa artificialidade, pois ela é a arte por meio da qual Deus fez e governa o mundo. A natureza pode ser compreendida, assim, como um mecanismo programado que autoconserva o movimento segundo as regras do Criador.

Deus cria à maneira de um grande Arquiteto ou Projetor, como alguém que traz à existência o mundo enquanto uma obra de engenharia. O ser humano, criado por Deus, é, então, uma máquina. O corpo humano é como um autômato projetado pelo Grande Artífice do Universo. Deus é, portanto, um grande geômetra que tudo cria com ordem, segundo as leis de regularidade, simetria e harmonia. O homem, no entanto, é criado à imagem de Deus, de modo que o humano também é capaz de criar máquinas. Assim como Deus cria o homem segundo sua imagem e semelhança, o Estado é criado segundo a imagem do homem. O Estado é, assim, uma grande máquina. Pode-se dizer, dessa forma, que a arte humana imita a natureza, apreende dela as regras geométricas e, por isso, o Estado é criado como um homem artificial (HOBBES, 1983).

O corpo humano pode ser descrito, então, como um sistema geometricamente projetado, uma máquina complexa em que os sistemas se articulam para cumprir uma mesma função: a autoconservação. O Estado, criado à imagem do homem, pode ser pensado como um corpo também. Hobbes (1983) faz as seguintes analogias com o corpo humano: os magistrados e funcionários são as juntas artificiais; a recompensa e o castigo são os nervos; a riqueza e a prosperidade são a força; o objetivo é a segurança do povo; os conselheiros são a memória; a justiça e as leis são a razão e a vontade; a concórdia é a saúde do corpo; a sedição é sua doença; a morte é a guerra civil. Assim como o corpo humano, o Estado tem como função conservar a si mesmo, conservando, dessa forma, seus cidadãos.

Hobbes (1983) busca  explicar a origem desse Estado tendo em vista as paixões humanas de autoconservação. Assim, o objetivo deste trabalho consiste em mostrar a relação da teoria hobbesiana das paixões e a busca infindável do homem por poder com a passagem do estado de natureza para o estado civil. A fim de discutir tais pontos, este texto consiste nas seguintes partes: (i) origem do conhecimento e linguagem: no qual se discute o processo pelo qual adquirimos conhecimento por meio dos sentidos e como isso possibilita a formação da linguagem, pela qual expressamos nossas paixões; (ii)  origem das paixões: na qual se discute o papel das paixões enquanto movimentos voluntários internos do corpo que visam a autoconservação; (iii) da passagem do estado de natureza para o estado civil: no qual se discute como a busca por poder leva a uma superação do estado natural pelo estabelecimento de um contrato que garante a paz.

 

2. Origem do Conhecimento e Linguagem

 

Para entender a teoria de Hobbes das paixões é preciso acompanhar sua discussão sobre a origem de nosso conhecimento e da linguagem, já que é por meio da linguagem que expressamos nossas paixões. Para tanto, esta seção segue em linhas gerais as considerações de Hobbes (1983) nos capítulos I ao V do Leviatã. Ao tratar do conhecimento, Hobbes assume a tese de que todo conhecimento se origina, totalmente ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos. Isso significa que a origem de toda ideia, representação ou conceito pode ser remontada à sensação. O que causa a sensação é a impressão que um corpo exterior exerce sobre nossos sentidos. Assim, o conhecimento que temos do mundo exterior resulta da pressão dos objetos sobre nossos órgãos sensoriais. Os corpos exteriores se movem, mas em obediência à lei da inércia que diz que um corpo tende a manter-se em repouso a menos que algo se choque contra ele, o agitando. Por outro lado, um corpo tende a preservar seu movimento a menos que algo o impeça.

Do mesmo modo que os corpos físicos se encontram em movimento, há movimentos internos ao corpo humano: como o ver, o sonhar, entre outros. Podemos manter a imagem de um objeto que afeta nossos sentidos mesmo quando esse objeto se encontra ausente, o que se chama “imaginação”. A imaginação é a percepção da imagem criada pelos sentidos e que conserva uma certa representação do objeto, mais fraca do que quando este encontra-se diretamente presente à nossa visão. Assim, a imaginação pode ser compreendida como um obscurecimento da sensação, no qual a sensação aparece diminuída. Essa diminuição é diretamente proporcional ao tempo transcorrido desde que o objeto foi percebido. Por sua vez, dá-se o nome de “memória”, à recuperação da imagem imprimida por uma sensação passada. Quando a imaginação surge por meio de palavras ou sinais voluntários, temos o que pode ser chamado de “entendimento”.

Uma cadeia de imaginações forma o que pode ser chamado de “discurso mental”. O discurso mental pode ser de dois tipos: (i) discurso mental espontâneo: consiste em um encadeamento de pensamento que ocorre de forma livre, sem desígnio e de forma inconstante; (ii) discurso mental constante: consiste em um encadeamento de pensamentos que ocorre com desígnio ou desejo e se dá de forma regulada. Por sua vez, o discurso mental regulado também pode ser distinguido em dois tipos: a primeira espécie consiste na busca das causas de um efeito imaginado, algo que os animais também fazem; já a segunda espécie consiste na capacidade de invenção, na imaginação do que pode ser feito a partir de múltiplas possibilidades.

Os homens são capazes de registrar seus pensamentos por meio da linguagem, que consiste na designação de certas coisas por meio de nomes que operam a transformação do discurso mental em discurso verbal.  A linguagem pode ser utilizada tanto para registrar nossos pensamentos quanto para comunicar aos outros nossos conhecimentos. No entanto, o mau uso da linguagem pode gerar enganos e confusões. Nomes podem ser conectados a fim de formar proposições que afirmam ou negam certas coisas. Uma proposição pode ser verdadeira, quando o que significa consiste na atribuição adequada de um predicado a um sujeito, ou falsa, quando ocorre o contrário. A verdade pertence, pois, ao campo da linguagem, não das coisas. Um conjunto de proposições forma raciocínios, que bem formulados nos oferece o conhecimento científico.

 

2. Origem das paixões

 

A discussão de Hobbes sobre conhecimento e linguagem é importante para compreendermos sua teoria sobre as paixões, pois, como já dito, é por meio da linguagem que as expressamos. A fim de tratar da origem das paixões, Para tanto, esta seção segue em linhas gerais as considerações de Hobbes (1983) nos capítulos VI do Leviatã. As paixões consistem em nossos movimentos voluntários internos. Os movimentos voluntários diferem dos involuntários, os quais são chamados de “movimentos vitais”. Os movimentos vitais são aqueles que se iniciam com o nosso nascimento e só se encerram com a nossa morte, como a respiração, a circulação e a digestão. Já os movimentos voluntários, que também são chamados de movimentos animais, consiste em mover certos membros do corpo em conformidade com algo previamente determinado, o que ocorre quando caminhamos, por exemplo.

No entanto, antes que os movimentos animais se expressem externamente, como em nosso caminhar, ocorrem certas moções precedentes internas ao nosso corpo. Esses movimentos internos ao corpo humano que se dão antes das ações visíveis, é o que se denomina de “esforço”. Por sua vez, chama-se de “desejo” ou “apetite” quando se considera seu movimento em direção a algo que o causa. Por outro lado, quando o esforço visa a evitação de algo, ele é denominado como “aversão”.  A depender do modo como são considerados, apetite e aversão se expressam como uma gama de variadas paixões: amor e ódio; alegria e tristeza; esperança e desespero; coragem e medo; entusiamos e desalento etc.

Todas essas paixões podem, de algum modo, ser expressa por uma forma de linguagem. Por exemplo, expressamos nossa opinião de excelência de algo pelo louvor e a opinião de poder pela exaltação. O desejo de conhecimento pode se expressar no discurso e o assentimento a dada crença envolve, em certa medida, a confiança em uma autoridade. Desse modo, podemos entender que o assentimento a uma crença está relacionado à autoridade humana: “De modo que é evidente que, seja o que for que acreditamos tendo como única razão para tal a que deriva apenas da autoridade dos homens e de seus escritos, quer eles tenham ou não sido enviados por Deus, nossa fé será apenas fé nos homens” (HOBBES, 1983, p.42)

No estado de natureza, os homens são movidos por uma paixão de amor próprio, que consiste em um desejo em buscar tudo aquilo que garante sua autoconservação e evitar tudo aquilo que ameaça sua sobrevivência. Assim, as paixões se originam da necessidade de autoconservação. Dado que cada homem, no estado da natureza, busca garantir esse desejo por autoconservação, estabelece-se um estado de guerra já que os homens disputam entre si pelos recursos naturais disponíveis. São os apetites do homem que o levam a agir e são seus medos que os levam a evitar o que os ameaça.

Para que possa se autoconservar, o homem deseja o poder, almejam o domínio e por isso precisam guerrear para assegurá-lo. Por outro lado, o homem projeta em seu semelhante o mesmo desejo, por isso sabe que o outro também almeja poder. Por isso, o homem também luta por preservar a sua própria vida e, nesse sentido, a paixão do medo de sofrer uma morte violenta exerce um papel importante. No entanto: “Como a vida não pode ser preservada numa condição de guerra e insegurança generalizada, torna-se necessário estabelecer a paz. A primeira lei natural “ordena”, portanto, a autopreservação e o provimento da paz.” (GUIMARÃES, 2014).

 

3. Da passagem do estado de natureza para o estado civil

 

Para tratar da passagem do estado natural para o civil, esta seção segue em linhas gerais as considerações de Hobbes (1983) nos capítulos XIII do Leviatã. A busca infindável do homem, em sua condição natural, pela autoconservação e, por consequência, pelo poder conduz à necessidade de um poder soberano. No estado de natureza, todos têm igual capacidade, sendo as diferenças na força do corpo e da vivacidade do espírito não suficientemente relevantes quando tomadas em conjunto. Em consequência dessa igualdade de capacidades, temos que os homens compartilham de igual expectativa em relação aos bens que podem usufruir. Em vista disso, os homens precisam empenhar-se para aniquilar ou dominar o outro caso queira garantir seu acesso a um bem que não pode ser usufruído por todos:

 

Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível que ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. (HOBBES, 1983, pp. 74-75)

 

No estado de natureza, os homens desconfiam-se um do outro e antecipam que o outro também agirá para o subjugar ou destruir. Nessa condição de desconfiança generalizada, não há uma convivência harmoniosa e prazerosa entre os homens. Os homens vivem, assim, em completa discórdia, competição e busca de poder e domínio. Trata-se, pois, de um estado de guerra. A guerra não é resultado de paixões artificiais ou da organização das pessoas em sociedade, na verdade, a condição de guerra entre os homens surge de sua busca natural pela autoconservação. No entanto, não se deve avaliar tal guerra em termos morais, pois no estado de natureza não há justiça ou injustiça, bem ou mal, já que não há lei e a moralidade é estabelecida por convenções sociais: “onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça” (HOBBES, 1983, p. 77).

Os homens não podem preservar a vida por muito tempo em um estado assim, e a paixão de aversão que os faz temer a morte os levam a buscar mudar sua condição, passar de um estado de guerra para um estado de paz. Daí que abrem mão de seu direito e liberdades naturais transferindo o poder para o Estado. Pode-se definir o direito natural como “a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida.” (HOBBES, 1983, p. 78).

O homem, no entanto, além do medo da morte, também tem uma paixão de desejo, uma paixão de esperança de que pode alcançar a paz. Para atingir essa paz, os homens estabelecem entre si um pacto, no qual todos concordam, com a condição de que os demais o fazem, em abrir mão de seu direito natural sobre todas as coisas, privando-se da liberdade de usufruir dos bens que os demais também almejam. Além dessa renúncia, ocorre uma transferência do poder a uma instância reguladora que passa a assegurar a obrigação de todo o homem com os demais de não reivindicar aquilo que originalmente era de seu direito no estado natural. Essa instância reguladora é o Estado: “A transferência mútua de direito é aquilo que se chama contrato” (HOBBES, 1983, p.80).  O Estado civil garante, assim. o comprimento do contrato, coagindo e punindo aqueles que porventura queiram violá-lo.

 

4. Considerações finais:

 

Como considerado, a passagem do estado de natureza para uma sociedade política com um Estado instituído, se dá, segundo Thomas Hobbes, por meio de um contrato. O estado de natureza é aquele marcado pela guerra de todos contra todos, no qual cada um cuida de sua própria conservação à medida que precisa lutar contra os demais para sobreviver. Esse estado de coisas tem a vantagem da liberdade, no entanto, é um estado de constante tensão e o acesso aos recursos que garantem a sobrevivência é dificultado. Além disso, mesmo aqueles que alcançam algum bem, devem lutar para mantê-lo pela força. Cada homem vê o outro como um inimigo, pois projeta a si mesmo no outro, compreendendo que o outro também deseja lutar pela sua autoconservação. Trata-se, pois, de uma condição de hostilidade e desconfiança generalizada.

O homem se vê, assim, tendo que decidir entre manter o estado de natureza, isto é, uma condição de guerra ou estabelecer um contrato que traga paz. Mas esse contrato implica renunciar à própria liberdade e ao direito natural que o homem tem sobre todas as coisas. No entanto, se todos têm direito a tudo, ninguém tem direito a nada. No estado de natureza, não há bem ou mal, justiça ou injustiça, pois a moralidade é estabelecida por meio da vida dos homens em comunidade. Os homens abrem mão de seus direitos sobre tudo e o transferem para o Estado. Renunciar ao direito de todas as coisas consiste em privar-se da liberdade de negar ao outro o seu direito. Essa transferência faz, do Estado, o monopólio da violência.

Para Hobbes, são as paixões do homem que o conduzem à formação do Estado. Nesse sentido, sua tese política precisa ser compreendida em articulação com sua teoria das paixões. As paixões são interpretadas, na concepção hobbesiana, como associadas com a aplicação do método geométrico das ciências físicas no campo da política. Assim como os corpos físicos se movem impulsionados pela força dos choques entre si, as paixões são os motores do corpo. A geometria é, assim, uma ética no sentido de que ela rege, não só o movimento dos corpos físicos, mas também o pensamento e ações humanas. Essas paixões visam a autoconservação. No entanto, essa autoconservação depende do poder, e é por isso que tais paixões conduzem o homem à vida em sociedade.

 

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política. Tradução, notas e apresentação de Mário da Gama Cury. Editora da UnB, Brasília, 1985.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). Col. Os Pensadores. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

GUIMARÃES, Pedro Augusto Pereira. Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. Filogênese (Marília), v. 7, p. 104-115, 2014.


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