O JESUS HISTÓRICO COMO PROFETA APOCALÍPTICO



O objetivo deste texto é apresentar uma das teses sobre quem foi de fato Jesus de Nazaré. O Jesus Cristo que conhecemos é uma construção teológica, trata-se de alguém considerado como a encarnação de Deus, nascido em Belém de uma Virgem e que teria fundado uma nova religião chamada de Cristianismo. Hoje se sabe, do ponto de vista histórico, que Jesus foi na verdade um camponês da pequena vila de Nazaré, que foi batizado por João Batista, um profeta apocalíptico e que teve seu projeto interrompido por uma morte abrupta na cruz. Esse Jesus era no pleno sentido da palavra um judeu, nunca reivindicou ser Deus, nem pretendia fundar uma nova religião.

            No entanto, há um debate sobre qual era a essência do ministério de Jesus. Ao lermos os Evangelhos sinóticos vemos que um conceito central da mensagem de Jesus é a vinda do Reino de Deus. Uma das hipóteses levantadas para entender o contexto da mensagem de Jesus de Nazaré é a Tese do Jesus Apocalíptico. A hipótese apocalíptica parte de um conjunto de textos evangélicos que parecem mais prováveis de serem históricos, conforme critérios que já apresentei (aqui). Sabe-se que no tempo de Jesus, os profetas apocalípticos eram comuns. Se tratava de pessoas que profetizavam que o Reino de Deus seria iminentemente estabelecido.

            Este texto é composto das seguintes partes:

I. Bases Textuais da Tese Apocalíptica;

II. A Mensagem Apocalíptica de Jesus;

III. Atos Apocalípticos de Jesus;

 

I. BASES TEXTUAIS DA TESE APOCALÍPTICA

 

            Bart Ehrman, no livro Jesus: Apocalyptic prophet of the New Millennium, pontua que a mensagem apocalíptica de Jesus é encontrada nas fontes mais antigas, tais como Marcos 8:38 – 9:1; 13:24-30, naquilo que tem sido chamado de Fonte Q (Lucas 17:24; 26-27, 30; Mateus 24:27, 37-39; Lucas 12:39; Mateus 24:44), na Fonte M (Mateus 13:40-43) e na Fonte L (Lucas 21:34-36). Importante dizer que Marcos, Q, L e M são consideradas as fontes mais antigas a respeito de Jesus. Marcos é o primeiro entre os Evangelhos Canônicos a ter sido escrito, e ele serviu de base para a redação de Mateus e Lucas. A Fonte Q diz respeito aos relatos que existem em comum entre Mateus e Lucas, mas que não foram tirados de Marcos, sugerindo um recurso comum mais antigo. Por sua vez, L diz respeito aos textos que aparecem em Lucas, mas estão ausentes em Mateus e Marcos; e M aos textos que aparecem em Mateus, mas estão ausentes em Marcos e Lucas. Geralmente, atribui-se a esses textos uma origem mais antiga, o que dá a eles maior probabilidade de serem autênticos.

            Assim, os textos de origem mais antiga presentes nos Evangelhos apresentam Jesus como anunciador de uma mensagem apocalíptica. No entanto, à medida que os textos se tornam mais tardios essa mensagem sofre transformações. Por exemplo, se compararmos Marcos (mais antigo) com Lucas (mais recente), se verifica mudanças. É importante considerar que ao que tudo indica o autor de Lucas ao escrever seu Evangelho tinha Marcos em mãos e copiou passsagens de Marcos ao compor sua obra (confira Lucas 1:1-3).  Marcos 9:1 diz: “Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder.” Lucas tendo o Evangelho de Marcos em mãos pega esse mesmo verso e o reescreve de outra maneira: “Garanto a vocês que alguns que aqui se acham de modo nenhum experimentarão a morte antes de verem o Reino de Deus" (Lucas 9:27). Observe que Lucas omite a expressão “em poder”. O fato é que Lucas quer defender a tese, presente no seu Evangelho, mas não em Marcos, de que o Reino de Deus já veio com Jesus e já estava no meio deles (Lucas 11:10; 17:21).

            Outro exemplo se encontra em Marcos 14:62: “E Jesus disse-lhe: Eu o sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu.” Jesus se dirige ao sumo sacerdote e demais do Sinédrio, garantindo que eles estariam vivos para ver o Filho do Homem vindo nas núvens do céu para estabelecer o Reino em poder. Observe, no entanto, como Lucas, tendo em mãos esse mesmo versículo, o modifica: “Mas de agora em diante o Filho do homem estará assentado à direita do Deus Todo-poderoso" (Lucas 22:69). Provavelmente Lucas escreve quando o sumo sacerdote já se encontrava morto, e, portanto, ele muda o dito de Jesus de modo a não mais significar que o sumo sacerdote estaria vivo para ver o estabelecimento do Reino de Deus em poder.

            A maior mudança acontece, no entanto, quando chegamos no Evangelho de João, escrito décadas depois dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Nele já desaparece a ideia de um Jesus apocalíptico em favor da tese joanina de um Jesus divino. O escritor de Lucas provavelmente ainda esperava a vinda do Reino em seus dias, mesmo o apóstolo Paulo mantinha essa esperança (1 Tessalonicenses 4:17), mas em João esse Reino é tomado, não mais como uma manifestação poderosa, mas como um Reino espiritual. Ver o Reino de Deus tem a ver com um “nascimento espiritual” e não com a vinda nas nuvens do Filho do Homem em poder e grande glória: “Jesus respondeu: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus.” (João 3:5). O Evangelho de João se concentra na promessa de vida eterna e toda a mensagem de um Reino apocalíptico encontrada em Marcos desaparece (João 6:40).

 

II. A MENSAGEM APOCALÍPTICA DE JESUS

 

Barth Ehrman, na série de vídeos que pode ser vista (aqui), propõe que Jesus teria sido um profeta apocalíptico, que cria que o Filho do Homem viria durante o período de sua vida. Jesus acreditava que antes que ele e seus discípulos morressem,  o Reino de Deus seria plenamente estabelecido: "Com toda a certeza vos afirmo que alguns dos que aqui se encontram não experimentarão a morte até que vejam o Filho do homem vindo em seu Reino” (Mates 16:28) "Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas essas coisas se cumpram." (Mateus 24:34) “E vocês (que estão vivos) verão o Filho do Homem sentado do lado direito do Deus Todo-Poderoso e descendo com as nuvens do céu!"(Mateus 14:62).  "Eu asseguro a vocês que não passará esta geração até que todas estas coisas aconteçam." (Marcos 13:30)

Essa hipótese propõe que, pelo menos num primeiro momento, Jesus acreditava ser esse Filho do Homem outra pessoa, que não ele mesmo. A ideia da vinda do Filho do Homem já existia na tradição apocalíptica (Daniel 7:13; Enoque 46:2-3), como Jesus não esperava que fosse morrer, e muito menos tinha-se a ideia mítica de que ele ressuscitaria, iria para o céu para depois voltar, podemos entender que quando Jesus fala do Filho do Homem vindo no céu em terceira pessoa, ele não falava, a princípio, dele mesmo. Jesus esperava que enquanto ele mesmo estivesse vivo, o Filho do Homem surgiria no céu para estabelecer o Reino. Por isso, seus discípulos deveriam se manter sempre alertas e vigilantes (Lucas 21:34-36, Mateus 24:44). No entanto, diante da morte de Jesus e a crença mítica em sua ressurreição, os discípulos teriam erroneamente identificado a figura do Filho do Homem com o próprio Jesus. Assim, os textos que identificam o Filho do Homem com Jesus são aqueles que falam de sua morte e ressurreição (confira: Marcos 9:31; João 8:28; Mateus 12:40; Apocalipse 1:13).

Dada a crença de que o Reino de Deus seria estabelecido naquela geração, Jesus teria pregado o desfazer-se de todos os bens materiais (Marcos 10:21; Mateus 13:44), não se preocupar com comida e vestimenta, colocando em primeiro lugar a esperança do Reino (Mateus 6:25-34) e; não priorizar os laços familiares acima de se preparar para o Reino (Mateus 10:34-35; Lucas 14:25-27; Mateus 12:46-50). Isso poderia explicar por que Jesus nunca se casou, já que não faria sentido construir uma família visto que o Reino “no qual ninguém se casa” estava prestes a ser estabelecido (Mateus 22:30). Mesmo depois da morte de Jesus, essa ideia perdurou e é ecoada por Paulo que sugere o celibato dada a iminência apocalíptica (1  Coríntios 7:1, 29).

Na medida em que o Reino estava próximo, os discípulos deveriam viver conforme as regras desse Reino. Visto que no Reino de Deus não haveria mais guerra, opressão ou ódio, os discípulos deveriam ser pacificadores, não se engajar em violência e agirem em conformidade com o amor e com a prática da justiça (Mateus 5; Lucas 6). Há assim, a ideia de que o Reino de Deus já deveria ser vivido no presente como uma antecipação de seu estabelecimento, o que também encontramos simbolizado por meio das parábolas do Reino contadas por Jesus, na qual o Reino é pensado como começando como algo pequeno na vida dos discípulos mas que será estabelecido na terra inteira (Mateus 13:33; Lucas 13:20). Era comum que profetas apocalípticos fossem perseguidos e mortos por Roma, pois a mensagem de um Reino a ser estabelecido subjugando o poder do Império, era tido como uma ameaça. João Batista é um exemplo entre muitos outros de um profeta apocalíptico morto pelo poder romano (Marcos 6:14-29).

            De acordo com John Hick, no livro, The Metaphor of God Incarnate, Jesus teria sido um profeta escatológico que proclamou a iminente chegada do Reino de Deus ainda em seus dias. Ele e seus seguidores provavelmente criam que faltavam poucos anos ou até meses para o estabelecimento do Reino divino na Terra. Desse modo, a essência do ensino de Jesus era de que a transformação do mundo estava prestes a acontecer: “Jesus veio pela Galileia, pregado a nova notícia de Deus, dizendo: o tempo está cumprido e o Reino de Deus está às portas, arrependam-se e acreditem nessa nova notícia” (Marcos 1:14-15).

            Nesse sentido, Jesus não seria, como alguns pensam, algo como um revolucionário. Muitas pesquisas sobre o Jesus histórico buscaram associá-lo a pautas ideológicas progressistas, cometendo um anacronismo. Paula Fredriksen, no livro, Jesus of Nazareth, King of the Jews, observa que Jesus não era primariamente um reformador social, mas um verdadeiro seguidor da religião judaica.  Seguindo o ensino de seu predecessor, João Batista, Jesus trazia uma mensagem urgente, baseada na expectativa de que a vinda do Reino de Deus era imediata. Isso também significa não cometer o erro de pensar que Jesus era essencialmente um mestre moral, sua ética era fundamentalmente uma vida de preparação para a nova condição prestes a ser estabelecida.

            Segundo, John P. Meier, no livro A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus, Vol. 2, se focarmos nos textos evangélicos que mais tem probabilidade de serem autênticos segundo critérios de historicidade, podemos concluir que:

1.  Que Jesus esperava a vinda imediata e definitiva de Deus para reinar sobre a terra,

2. Que os discípulos deveriam orar pela vinda desse Reino: “Venha a nós o teu Reino” (Mateus 6:10).

3. Que o Reino de Deus traria fim à pobreza, à fome e às opressões.

4. Os oprimidos e excluídos seriam incluídos nesse Reino.

5. Que o próprio Jesus faria parte desse Reino.

 

III. ATOS APOCALÍPTCOS DE JESUS

 

            Não é apenas a mensagem de Jesus em palavras que confirma que ele anunciava a vinda apocalíptica de um Reino, na verdade, seus atos confirmam a sua expectativa. Bart Ehrman, no livro já citado, Jesus: Apocalyptic prophet of the New Millennium, cita os seguintes atos:

1. O Batismo de Jesus: o fato de que Jesus foi batizado por João Batista é considerado um dos textos de historicidade mais bem estabelecida. João Batista era um profeta apocalíptico, o que explica o fato de Jesus ter se associado com ele logo no início de seu ministério.

2. A associação de Jesus com os oprimidos: Jesus era um camponês avesso às grandes cidades. Quando ele entra em uma grande cidade, Jerusalém, é no momento de sua morte. Assim, Jesus evitou os grandes centros urbanos, e sempre pregou por vilarejos, associando-se a pessoas excluídas, como prostitutas, cobradores de impostos e mulheres. Jesus acreditava que o Reino seria estabelecido, e a situação seria revertida, os opressores da aristocracia seriam os últimos, e os oprimidos seriam os primeiros (Mateus 20:16): "Em verdade vos digo, que os cobradores de impostos e as prostitutas entrarão antes de vocês (líderes religiosos) no Reino de Deus" (Mateus 21:31).

3. Os seguidores de Jesus: Os Evangelhos relatam que os seguidores de Jesus eram trabalhadores de classe baixa, tais como pescadores, que abandonaram seus empregos e família para segui-lo (Mateus 4:18-20). Abandonar tudo era algo que faria sentido, já que eles estavam abraçando uma mensagem de que iminentemente o Reino de Deus seria estabelecido e eles ganhariam muito mais do que estavam perdendo (Marcos 10:28-31).

4. A escolha dos Doze: Jesus escolheu para si doze discípulos em especial. Ao fazer isso, ele selecionou aqueles que iriam reinar sobre Israel, cada um sendo rei de cada uma das doze Tribos (Mateus 19:28).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Não há nada de errado em olhar para os Evangelhos e buscar extrair deles doutrinas teológicas, mensagens espirituais, princípios morais ou estímulo para reformas sociais. No entanto, se queremos entender quem de fato foi Jesus, sua vida e ensinos, precisamos deixar de lado, suspender, isto é, colocar entre parênteses tais pretensões e buscar compreender a mensagem de Jesus de Nazaré à luz de seu contexto histórico. Umas das propostas de fazer isso é a apresentada nesse texto. Jesus foi um camponês nascido em Nazaré que anunciou a vinda do Reino de Deus em poder ainda em seus dias, mas que teve seu projeto interrompido por uma morte repentina. Há outras propostas que tem sido levantadas para pensar o Jesus Histórico, foi, no entanto, escopo desse texto, considerar especificamente a tese o Jesus apocalíptico e a tentativa de entender seus ensinos à luz desse contexto.


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